E você, mataria esse bebê? (Parte 1)

por Bete
Garcia – Carta de Ana Lúcia para Vítor  

Onde houver
dúvida que eu leve a fé, onde houver erro que eu leve a verdade, onde houver
desespero que eu leve a esperança”

Existem
momentos em nossas vidas e em nossa sociedade onde precisamos nos posicionar,
não podemos e não devemos mais dizer: – Não tenho nada a haver com isso, não é
problema meu, não estou nesta situação, logo não preciso opinar nem agir.
Quando se trata de vidas humanas, temos que opinar e agir sim, calar num caso
desses é quase como consentir. Recebí esta carta-testemunho de uma mãe,
compartilho-a com vocês e deixo no ar a pergunta: E você,
mataria este bebê? 

Que Deus
tenha piedade da raça humana!

Cataguases
– MG, 8 de dezembro de 2003.

Há oito
anos, quando meu quarto filho, Vítor Alonso Guimarães, faleceu devido a ser
portador de uma má-formação cerebral – anencefalia, pediram-me que relatasse
numa carta os momentos que passei.

Confesso
que só hoje consegui, talvez porque outras pessoas me tenham feito o mesmo
pedido ou talvez porque pela falta de histórias reais e de conhecimento, muitos
têm defendido o aborto de crianças com anencefalia, como se não passassem de
“uma coisa” defeituosa, sem vida ou existência e que se tem de
extirpar do mundo, porque inúteis para a sociedade e causadoras de sofrimento
“insuportável” para os pais.

Foi a
partir dessas atitudes que decidi escrever a história do Vítor – “aquele
que venceu”. E espero que de alguma forma contribua para os pais que
passam ou que venham a passar pelo mesmo problema que passei e que tantas
outras famílias também já passaram, com coragem e fortaleza divinas. Que
entendam com a mesma sabedoria que foi dita, naquelas palavras do Papa João
Paulo II, na Carta Salvifici Doloris de 1984:

“O
sofrimento está presente no mundo para provocar amor, para fazer nascer obras
de amor ao próximo, para transformar toda a civilização humana na civilização
do amor”.

Querido
Vítor

Você não
sabe como ultimamente tenho me lembrado de você. Sabe porquê? Anda em voga o
assunto de se permitir o aborto em caso de anencefalia, como foi o seu,
lembra-se? Você não pode imaginar as barbaridades que mamãe tem escutado
de pessoas grandes, não no sentido de grandes de coração, alma e inteligência,mas
só por que são bem maiores do que você era quando esteve em meu ventre por nove
meses, no entanto parecem não saber de nada.

Lembra-se
daquela tarde, logo depois de mamãe sair da casa do vovô Inaldo quando foi
fazer a primeira ultra-sonografia, no 3° mês de gestação? Estava tão
tranqüula afinal quantas e quantas ultras mamãe já havia feito quando esperava
os seus irmãos, Gabriel, Marcus e Raquel. Lembro-me como se fosse hoje,
deitada na cama, o médico fazendo a ultra quando, de repente, me fez aquela
pergunta: -É o seu primeiro filho? Logo respondi com toda a tranqüilidade –
Não. É o quarto, por quê? Vi que demorava a responder e percebi que havia algum
problema com você. Indaguei novamente: – Por quê? Está tudo bem com meu
filho? O que ele tem?

A resposta
foi seca e dura, como alguns médicos, ainda bem que nem todos, costumam tratar
dessa forma a doença dos outros. Respondeu-me: – O seu filho tem um problema,
não tem cérebro. Lembro-me de que comecei a chorar e perguntei a ele, na
inocência de obter uma resposta científica: – O que vou fazer agora? E mais uma
vez veio a frieza que na hora a mamãe não conseguiu captar, veio aquela
resposta fria: – O seu médico sabe o que você tem que fazer! Perdoe-me,
filho, por não ter dado uma resposta dura e clara ao médico naquele momento,
mas a mamãe não conseguiu naquele instante captar a malícia do que ele queria
dizer. Com certeza queria que eu te matasse.

Lembra como
foram difíceis para mamãe aquelas primeiras horas? Ligava para o obstetra e
dizia que você tinha uma má formação, perguntava o que eu poderia fazer, se
havia alguma cirurgia para seu caso. Mas ao contrário do médico que havia dado
a primeira notícia, este já dizia com todo o carinho, o carinho que eu
precisava naquele momento tão difícil. – Não, infelizmente a medicina ainda não
avançou tanto.

E eu
chorava por mim, por você, por papai e por seus irmãos. Porque eu te queria
muito. Nós te queríamos muito.

Passei a te
amar mais ainda nos dias que se passaram, por que fui entendendo coisas que até
então não sabia.  Conversei com o obstetra e ele então me explicou como
seria essa “gestação especial”. Enquanto estivesse comigo, dentro de
mim, você estaria seguro, tranqüilo. Hoje entendo por que você não precisava de
uma nova contribuição da mamãe para “ser”, você já existia, já era um
ser humano existente, já era meu filho. Você só precisava crescer, suas
próximas fases seriam de autocrescimento, de desenvolver o que você já
“era”. Nos próximos meses a única coisa que mamãe teria de fazer e que
você precisava como qualquer criança era de nutrição, oxigênio e o tempo. O seu
tempo.

Você sabe o
quanto foi difícil, saber que não te teria nos meus braços por muito tempo
depois que você nascesse. Mas logo resolvi a questão, perguntei ao médico qual
o máximo de tempo que poderia ter você em mim, e ele respondeu de 38 a 40 semanas. Logo eu tinha
pelo menos 38 semanas para estar muito perto de você, te amando. Lembra-se dos
beijinhos que o papai, o Gabriel, o Marcos e a Rachel davam na minha barriga para
você? Lembra-se de nós todos rezando todas as noites pedindo para você ficar
“bom do dodói”, pois era assim que eu explicava para os seus irmãos o
seu problema. E foi assim que os dias se passaram e no lugar da tristeza,
entrou a alegria de ter você perto de nós, pelo tempo que Deus quisesse e fomos
muito felizes.

Você nem
pode imaginar quantas coisas mamãe tem ouvido das pessoas que tem cérebro.
Outro dia mamãe ouviu uma pessoa dizer que matar uma criança assim não era
aborto, pois esse feto já era um aborto da natureza. É, filho, as pessoas falam
coisas absurdas, monstruosas. Parecem não usar o cérebro completo e perfeito
que receberam de Deus. Outras defendem a idéia de que não haveria crime, caso
praticassem um aborto cujo feto tivesse anencefalia, pois não haveria vida
viável. Defendem essa teoria como se o ser que mexe, cujo coração bate dentro
do útero materno já estivesse morto.

Não sabem o
quanto vocês mexem e crescem até o dia de nascerem. Parecem não querer saber
que aos sessenta dias vocês, que um dia fomos nós, estão quase terminados:
mãos, pés, cabeça, órgão, tudo já existe e está no seu lugar, é só desenvolver,
o que não será impedido de acontecer nem mesmo pela má-formação cerebral. Meu
filho, você não sabe do que são capazes de falar e fazer essas pessoas que tem
cérebro, essas pessoas grandes. Alguns têm a coragem de dizer que o que matam é
o nada, sem saber que o que existe e vive no ventre materno desde a concepção é
um sujeito humano concreto, único e irrepetível.

Lembra-se
filho quando mensalmente mamãe ia ao médico, para acompanhar a sua gestação e
eu escutava o seu coração batendo forte dentro de mim? (140 batidas/minutos). E
o quanto era bom saber que você estava ali. Não podia eu dizer que você
era uma parte minha, pois desde a concepção você já existia com um código
geneticamente diferenciado, original em relação ao meu. Como podem algumas
pessoas dispor do que não lhes pertence?

Sabe que
outro dia mamãe leu em um jornal que se autorizava um aborto liminarmente,
sendo que o feto tinha um problema igual ao seu, anencefalia e que o que
fundamentava essa decisão era que “não se podia impor à gestante o
insuportável fardo de ao longo de meses prosseguir na gravidez já fadada ao
insucesso”. Você não acredita? Mas é verdade, estava escrito, chamavam um
filho como se fosse fardo insuportável, parecem não saber que filho nunca é
fardo, muito menos insuportável. Parecem não ter a menor idéia do quanto
vocês são amados apesar dessa deficiência, ou melhor dizendo, má-formação. E o
quanto são importantes para nós, mães de verdade, cuja natureza intrínseca da
mulher nos faz.

Até no
reino animal, que não tem o uso da razão, as fêmeas protegem os seus filhotes.
Será que podemos ainda chamar a nossa natureza de humana, depois do que andamos
pensando, concedendo ou defendendo?

Talvez você
não saiba Vítor, mas hoje em dia as pessoas querem tirar, eliminar,
“matar” de suas vidas tudo o que lhes traga incômodo ou sofrimento. É
a sociedade do prazer, do belo, do confortável, do extremo egoísmo. Eliminam-se
pessoas como se fossem coisas.

Alguns até
defendem que esse aborto deve ser autorizado porque a má-formação da qual o
feto é portador é incompatível com a vida pós-natal. Todos nós sabemos que em
qualquer gravidez, existe uma margem de possibilidade de que a criança nasça
com alguma deformidade, às vezes congênita, às vezes em conseqüência do próprio
parto, e se for por causa desse risco que há em qualquer gravidez, seja na do
rico, seja na do pobre, dessem aos pais o direito de suprimir essa vida,
estaríamos perante o direito incondicional ao aborto, pois o aborto é a morte
de um ser humano vivo e inocente, assim ou se está a favor da vida ou não se
está.

E o tempo
foi passando não é, filho, e aquele ser pequeno que existia em mim, já estava grande
e pronto para nascer. Lembra-se que mamãe também sofreu muito quando estava
chegando o dia do parto? É que eu sabia que o tempo de ficarmos juntos agora se
tornava mais curto, não ficaríamos mais tão próximos como estávamos. Você tinha
que nascer e seguir o seu caminho, o caminho que Deus-Pai havia traçado para
você desde toda a eternidade. Nunca chorei de revolta, você sabe disso. Chorava
de saudade, a mesma saudade que a mãe sente quando o filho se casa e vai
embora, era a saudade natural de rompermos os laços com os filhos, às vezes
mais cedo, outras mais tarde. Mas, nós seres humanos não somos, por mais que
estejamos tentando ser, “Aquele que é”. Somente Deus é Aquele que é –
só Ele pode dar o ser a outros e somente Ele pode tirar a existência desse ser,
fazendo sua história mais curta ou mais longa, mas todos fazemos história e
ninguém tem o direito de interromper a história de vida de outra pessoa.

Você fez a
sua história de Vida, fez a nossa história de vida, você até hoje é lembrado
pelos seus irmãos. Sabia que muitas vezes a Raquel com apenas três aninhos, me
perguntava quem tomava conta de você no céu? E aquela outra vez que estávamos
eu e seus irmãos esperando em frente ao prédio onde morávamos a Kombi Escolar
do seu Júlio, dias depois que você faleceu e o Gabriel com apenas quatro
aninhos estava perto de mim, junto com a Raquel e o Marcos. De repente surge um
senhor e me pergunta: – São seus filhos? – Sim, respondi. E ele novamente
perguntou: – Você tem três filhos?: – São todos seus? – Sim respondi, tenho
três filhos. O senhor foi embora, afinal era só curiosidade. Mas o seu irmão
Gabriel olhou para mim e disse: – Por que você mentiu para ele? Na hora não
entendi o que o seu irmão tão pequeno queria dizer e resolvi perguntar por que
eu havia mentido para aquele senhor. Foi quando ele disse com toda a
naturalidade e sentimento de família: – Você não tem três filhos, você tem
quatro, por acaso esqueceu do Vitor que está no Céu?

Confesso
que fiquei desconcertada naquele momento, pois é evidente que não havia
esquecido você, afinal tinha poucos dias que você havia nos deixado. Tentei
explicar a ele por que havia dado aquela resposta ao senhor, por que havia dito
três ao invés de quatro, expliquei-lhe que a mamãe não havia mentido, apenas se
reservado, afinal se dissesse quatro filhos, ele perguntaria onde ele
estava e eu teria que falar toda a história para alguém que não conhecia. E
assim expliquei ao Gabriel que às vezes devemos manter nossa privacidade. Mas
ao mesmo tempo, depois daquele questionamento aprendi uma lição. Aprendi que
seus irmãos tinham em você alguém muito presente, alguém que fazia parte
daquela família, mesmo não estando ali entre nós e passei a dar a resposta que
ele queria quando me perguntavam quantos filhos eu tinha. Dizia: – Tenho
quatro, um faleceu. Hoje eu digo: – Tenho seis, um faleceu, pois após você
vieram a Catarina e a Maria Teresa. Pronto estava resolvido o que incomodava o
seu irmão. E ele, seu irmão, estava certo com apenas quatro anos de idade,
porque você Vitor não era alguém que tinha passado pelas nossas vidas,
você fazia parte dela, você era um pedaço de nossa história e eu não tinha que
te esconder. Mas você sabe que nenhum de nós jamais te esqueceu.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.