Doze anos entre as Testemunhas de Jeová

As Testemunhas de Jeová atraem muitos adeptos, talvez por prometerem próxima intervenção de Deus, que deverá fazer ordem neste mundo “submetido ao domínio de Satanás”. – Diante deste fenômeno é oportuno tomar conhecimento das experiências de pessoas que aderiram plenamente a tal denominação, e de lá voltaram para a Igreja Católica. Tal foi o caso de Jean-François Blanchet, atualmente Presidente do Tribunal de Apelação de Forbach (Alsácia, França).

Em 1966 Jean-François Blanchet, católico fervoroso, mas pouco instruído, deixava-se levar pelas Testemunhas de Jeová. Estava então no último ano do Curso de Liceu e ia entrar na Faculdade de Medicina. Abandonou os estudos e cortou parcialmente com a família. Depois de doze anos de militância na Sociedade das Testemunhas, regressou à Igreja Católica. Hoje é Presidente do Tribunal de Apelação de Forbach (Alsácia, França) e anima, de acordo com o Bispo de Mets, um grupo de trabalho no âmbito da Pastoral das Seitas, procurando pôr de sobreaviso as pessoas contra a ação proselitista dos seus antigos companheiros, que ele julga muito nociva.

A revista hebdomadária France Catholique, de Paris, publicou aos 12/05/89 uma entrevista com J. F. Blanchet, que vai, a seguir, transcrita na íntegra a partir do texto português de “A Voz de Fátima”, ano 67, n.º 803, de 13/08/89.

A Entrevista

France Catholique (F.C.) – Quando é que encontrou as “Testemunhas de Jeová”?

Blanchet (B.) – Conheci as “Testemunhas de Jeová” no final dos meus estudos liceais: eu era um estudante bem comportado, sem problemas, católico, indo à Missa várias vezes na semana.

F.C. – Um estudante aparentemente sem problemas…

B. – Exteriormente pelo menos. Interiormente eu experimentava uma certa instabilidade confusa. Com o recuo do tempo apercebo-me agora de que as minhas convicções católicas não assentavam sobre algum conhecimento, mesmo sumário, da Bíblia e, designadamente, dos Evangelhos. Eu aceitava mecanicamente o ritual, sem procurar enraizá-lo no saber. Os nossos padres não se preocupavam por nos dar uma educação religiosa que fosse além daquela que nos era ministrada no ensino do catecismo.

F.C. – Como é que se deu o seu primeiro contato com as “Testemunhas de Jeová”?

B. – O primeiro encontro teve lugar precisamente ao sair da Missa. Um membro das “Testemunhas de Jeová”, que pregava de casa em casa, esperava-me na minha. Ele tinha vindo ali, estando eu ausente e deixando revistas que eu havia lido. Disse a minha mãe que, se esse “sujeito” voltasse, gostaria de me encontrar com ele para lhe explicar o que eu pensava acerca destas publicações na época, que se relacionavam sobretudo com a filosofia. O meu interlocutor era um homem simples, que depressa se mostrou incapaz de me acompanhar no terreno para o qual o conduzira. Não tinha sido formado para isso. No final do encontro, dando conta das suas carências, o homem prometeu que voltaria acompanhado de alguém “mais instruído do que ele para discutir com pessoas como eu, que tinham feito estudos”. Alguns dias depois voltou, efetivamente, acompanhado de um outro da “sociedade”. Este não se deixou impressionar pelos meus raciocínios.

F.C. – Como é que a entrevista se desenrolou?

B. – O homem começou por me perguntar se eu conhecia a Bíblia. Fiquei embaraçado, pois eu não conhecia a Bíblia, pelo menos no sentido fundamentalista segundo o qual ele a interpretava. Diante da minha hesitação perguntou-me: – Segundo a sua opinião, o que é a alma? É um espírito, respondi eu. – Será que a alma é imortal? Prosseguiu o meu interlocutor. – Sem dúvida, foi a minha resposta. – Mas veja que não é isso que a Bíblia diz. E começou a apontar me os textos do Êxodo e do Levítico onde se diz: “A alma de toda a carne está no sangue”, e continuou a citar-me textos bíblicos em que se faz a identificação da alma com o sangue (essa é uma das grandes preocupações das  “Testemunhas de Jeová”).

Em seguida, leu-me outra passagem da Bíblia que era totalmente surpreendente para mim (era o versículo 5 do capítulo IX do Eclesiastes): “Não há nem sabedoria nem pensamento na morada dos mortos para onde tu vais”. Esta era uma afirmação que contrariava o meu pensamento de Católico. Depois ele continuou a contrapor versículos bíblicos a todas as respostas que eu lhe dava.¹ – Crê que Jesus é Deus e que ele é igual ao Pai? Essa era de fato a minha crença. Ele, porém, com provas bíblicas em seu apoio, demonstrou-me que eu estava errado. Todo o encontro se desenrolou dentro deste esquema. Eu era incapaz de me opor aos seus argumentos – argumentos que estavam escritos na própria Bíblia -, incapaz de me confrontar com tal dialética. Quando ele se foi embora, fiquei profundamente abalado no mais íntimo das minhas convicções católicas. Deixou-me como que sem bússola e imerso em plena dúvida. ²

F.C. – Foi este desconhecimento dos textos que fez de você uma “Testemunha de Jeová”?

B. – Foi, pelo menos, o ponto de partida. Mais tarde apercebi-me de que, se eu tivesse as bases necessárias para colocar no seu contexto as passagens que ele tinha citado, não me teria deixado apanhar por esta interpretação sumária. É preciso também dizer que esta linguagem maniqueia, simples e direta, praticada pelas “Testemunhas”, atinge facilmente o homem médio ou o adolescente instável à procura de certezas. Estes versículos, que caem como marteladas, têm uma grande força de persuasão e produzem um efeito de sedução e segurança para aqueles que sentem necessidade de verdades imediatamente apreensíveis. Nesta dialética visualiza-se rapidamente onde se situam o bem e o mal, sem ter necessidade de recorrer a uma reflexão profunda. É aqui que está o perigo de uma tal linguagem.

F.C. – O seu compromisso com as “Testemunhas de Jeová” deu-se logo de seguida a este encontro?

B. – Não; não foi logo de seguida. Estávamos no fim do ano escolar e eu parti para férias. Levei comigo as publicações que o meu “visitante” me tinha deixado. À medida que as ia lendo, eu ficava convencido de tudo: do absurdo da Trindade, do culto dos ídolos na Igreja Católica, do fim dos tempos que estava próximo, da falsidade da crença no inferno. Tudo isto se tornava claro. A minha “catequização” foi feita praticamente a sós.

No princípio do ano escolar seguinte continuei, apesar de tudo, a ir à Missa. Aos meus amigos católicos eu punha as questões que me tinham sido postas pelas “Testemunhas de Jeová”. Como me tinha acontecido a mim, eles eram incapazes de  responder.Procurei também alguns sacerdotes. Receberam-me distraidamente, repetindo aquelas fórmulas tranquilizadoras que se dizem aos adolescentes em crise. Foram todas estas vãs tentativas de esclarecimento que me levaram a tomar a decisão de me fazer “Testemunha de Jeová”. Um dia em que o “pregador” me tinha visitado, passava nas ruas da minha cidade, eu fiz parar o seu automóvel para lhe dizer que estava decidido a entrar para a sociedade.

F.C. – Em 1966, quando o senhor entrou para a “Sociedade”, as “testemunhas de Jeová” previam o fim do mundo para 1975. Em que é que se fundava essa profecia?

B. – De momento senti uma decepção, que todavia não conseguiu deitar por terra a minha convicção nem a dos meus irmãos. Imputamos este erro de data à falta de rigor dos nossos estudos bíblicos e refizemos, em seguida, os nossos cálculos, sempre persuadidos de que estávamos na verdade absoluta. As “Testemunhas de Jeová” estão aliás muito habituadas a este tipo de enganos. Há mais de um século que os seus adeptos vêm adiantando datas precisas para o fim do mundo, sem que o acontecimento se tenha verificado. Fazem-nos compreender que cada novo fracasso é uma prova da nossa fé.

F.C. – Qual é o balanço que faz destes doze anos passados na “Sociedade das testemunhas de Jeová”?

B. – Foram os melhores anos da minha vida, que eu dei à “Sociedade”. Eu pertencia a um pequeno grupo (a um grupo assim dá-se o nome de “congregação”) que estava em Dieuze, no Mosela. Tornei-me rapidamente um dos pilares dessa congregação. Eu sabia fazer discursos, preparar os temas, aconselhar os pregadores, dirigir os estudos; era igualmente capaz de traduzir as publicações americanas que vinham do “Santuário”. Nesta congregação vim a ser em breve um “ancião” e, depois, “o Presidente”. Eu fazia consequentemente parte do grupo dos profetas eleitos. Era uma situação, ao mesmo tempo, sedutora e sobretudo dadora de segurança. O que é característico da seita, é que os seus membros se mantêm num estado de adolescência permanente, desresponsabilizados na medida em que o único dever que importa assumir, é o de se “manterem fiéis ao ensinamento da sociedade”, para serem do número dos que se salvam no dia do fim dos tempos. Foram, no fim de contas, anos sem história.

F.C. – A sua decisão foi tomada de um dia para o outro?

B. – Não foi tomada de um dia para o outro. Eu tinha terminado os meus estudos liceais e começado o curso de medicina. Só depois é que interrompi os estudos.

F.C. – Por quê?

B. – Porque, segundo a profecia das “Testemunhas de Jeová”, o fim do mundo ia dar-se no ano de 1975. Eu não via, pois, qualquer utilidade em continuar a estudar, em me apaixonar por uma profissão, em fundar uma família. Em suma: em viver como toda a gente.

F.C. – Voltemos aos seus primeiros anos de militantismo. Como é que se deu a sua inserção nas “Testemunhas de Jeová”?

B. – Frequentei, primeiro, as reuniões. Eu sentia-me bem nelas. Era um ambiente cheio de calor humano, muito acolhedor. As pessoas que ali encontrava, tinham resposta para tudo. Em 1967 tomei parte, pela primeira vez, num grande congresso das “Testemunhas de Jeová” em Saint-Dié. Voltei entusiasmado, convencido do ideal destes “cristãos”. O ambiente do congresso era caloroso; cada um que aí falava da sua fé, fazia-o com entusiasmo. No verão do mesmo ano fui batizado por imersão numa piscina em Nancy. Comecei então a pregar, andando de porta em porta, persuadido de que ali estava a verdade.

F.C. – As suas convicções eram totais?

B. – Totais. Eu estava convencido de que nós vivíamos os últimos dias do “presente sistema de coisas” – para usar a fórmula da “Sociedade” -; convencido de que a Igreja era o paganismo e os Estados políticos eram instituições do diabo, que era preciso afastar sob pena de ser condenado aos infernos; convencido de que todas as representações de santos (estátuas, imagens, medalhas, etc.) mais não eram do que objetos para idólatras. Todos os objetos religiosos que eu possuía, deitei-os fora, com grande escândalo da minha avó, que não aprovava que me desfizesse de todas estas recordações de família. Numa palavra: eu estava comprometido dos pés à cabeça.

F.C. – Fugindo a tudo o que não fazia parte da “Sociedade”?

B. – Exatamente, pois, segundo a nossa filosofia, todo o compromisso com a vida cívica era condenado, toda a participação nas festas cristãs um ato pagão. Já não havia Natal nem Páscoa nem nada que pudesse tecer relações normais com o mundo exterior (a família, os amigos…). Toda a nossa vida era centrada permanentemente à volta das “Testemunhas de Jeová”, pois só eles eram os seres puros que seriam salvos da morte no dia do fim do mundo. Nós vivíamos continuamente nessa tensão, com medo de ser destruídos, de ser excluídos da “Sociedade” (portanto mortos) antes do fim dos tempos. Aliás as relações continuadas com pessoas do mundo exterior podiam ser objeto de sanções, indo até à exclusão da “Sociedade”, e ninguém ousava correr esse risco. Ao olhar agora mais de perto essa situação, ela apresenta-se-me mais como um condicionamento do que um real compromisso de fé.

F.C. – Diga-me: como é que se consegue condicionar assim as pessoas?

B. – Nas “Testemunhas de Jeová”, como em todas as seitas, exploram-se as nevroses que estão latentes em cada um de nós. Para esquematizar, direi que se explora um certo desejo de poder: um membro da “Sociedade” é aquele que possui a verdade, que sabe, que pode explicar tudo, que é eleito, escolhido por Deus, etc.; é valorizando-as, designadamente às pessoas simples – que, de repente, se encontram revestidas de um saber e de uma responsabilidade nada habituais para elas – que se conseguem estes resultados. O segundo fator nevrótico é a segurança. “O Irmão” está encerrado numa malha doutrinal muito forte. A verdade está ao alcance da sua mão: basta que se lhe conforme e será salvo. É esta visão tranquilizante do mundo que permite ao membro da “Sociedade” viver liberto das angústias do futuro ou daquelas que fazem parte da vida quotidiana. Aconteça o que acontecer, tem-se a certeza – se se obedece – de poder sair dessas angústias.

F.C. – Esta filosofia da inação, se lhe desse livre curso, torna-se-ia numa ameaça para a sociedade civil!?

B. – Sem dúvida. Não se sentindo atingidos pelo devir do mundo terrestre – que está irremediavelmente condenado, segundo o pensar dos membros da “Sociedade” – as “Testemunhas de Jeová” recusam qualquer participação na vida social e todos os progressos que possam melhorar a vida humana. Eles rejeitam o progresso social, educativo ou médico (as transfusões de sangue, por exemplo). É uma heresia perfeita (heresia significa uma visão parcial e limitada da realidade).

F.C. – Vamos à história da sua saída da “Sociedade”.

B. – Ela teve origem na falsa profecia de 1975. A partir de então, eu quis saber mais. De uma maneira um tanto fluida, quis-me parecer que nós tínhamos uma visão demasiado simplista das coisas. Esta rigidez desgostava-me, mesmo quando eu repelia o meu embaraço, refugiando-me por detrás da argumentação clássica de que nós, as “testemunhas”, somos os detentores da única verdade.

Em 1979, na altura em que eu estava encarregado de orientar o estudo do Domingo de A Torre de Vigia (jornal publicado pelas “Testemunhas de Jeová” – sai de 15 em 15 dias e contém os estudos que devem ser feitos em cada semana nas diferentes congregações), experimentei como que um bloqueio. Nesse dia o estudo era sobre a ressurreição; não estando totalmente de acordo com o conteúdo do texto, deixei ao meu adjunto a tarefa de ser ele a orientá-lo, dizendo-lhe eu que compreendia mal certas passagens. O meu adjunto não levou a bem as minhas hesitações e foi a partir daí que tudo começou.

Disse-me a mim mesmo que era preciso que eu visse mais claro. Fui a uma livraria em Nancy para comprar uma outra Bíblia – que não a nossa – o que, para a “Sociedade”, é um sacrilégio. Pelas minhas perguntas, o livreiro compreendeu que eu era uma “Testemunha de Jeová”. Mostrou-me, então, um dossiê de fotocópias onde se continha uma compilação de todas as falsas profecias da nossa “sociedade” ao longo de um século. Estes documentos eram a prova de que a sacrossanta “Sociedade” da qual eu fazia parte, não tinha cessado de se comportar como falso profeta no sentido bíblico, desde a sua fundação. Eu voltei ao assalto e rapidamente o meu caso ganhou amplidão. As nossas instâncias regionais meteram-se nele. Tiveram lugar várias entrevistas em que o único argumento que se opunha, no fim de contas, era a necessidade de confiar cegamente na “Sociedade” sem pôr problemas.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 331 – Ano 1989 – p. 550

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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