Declaração Ecumênica sobre Maria Santíssima – EB

Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 273 – Ano 1984 – p. 90

 

Em síntese:  Teólogos católicos, protestantes (luteranos,
reformados, anglicanos) e ortodoxos reunidos na linha de Malta de 8 a 15/09/83 emitiram uma
declaração que, baseando-se na Bíblia, expõe o significado e a justificativa do
culto a Maria. Existe, sim, entre Cristo e os cristãos uma comunhão de vida e
solidariedade, que não é interrompida pela morte dos cristãos peregrinos: os
fiéis defuntos continuam solidários com os viandantes deste mundo. Entre
aqueles que participam da glória celeste, sobressai Maria SS., intimamente
associada a Cristo na qualidade de Mãe. Ela, que orava com os Apóstolos na
expectativa de Pentecostes, há de continuar a louvar a Deus e interceder pelos
homens na liturgia celeste, da qual fala o Apocalipse. A intercessão de Maria
em nada derroga à honra devida a Deus só, pois é fruto da obra do Redentor e
nada acrescenta à única fonte de salvação que é Jesus Cristo.

Tal Declaração reveste-se de
grande importância, visto que procede não só de mestres católicos, mas também
de teólogos protestantes (os orientais ortodoxos sempre veneraram Maria SS.).

Comentário: Reuniu-se na
ilha de Malta, de 8 a
15 de setembro de 1983, um Congresso Mariológico destinado a estudar o papel de
Maria na história da salvação; promovido por mestres católicos, esse certame
contou com a presença de teólogos anglicanos, luteranos, reformados
(calvinistas) e ortodoxos, que apresentaram suas contribuições ao
aprofundamento do tema. Ao fim do Congresso, quatorze participantes, de
diversas denominações cristãs (como se poderá ver à pág. 92), assinaram uma
Declaração sobre a figura e a posição de Maria SS. na piedade cristã. Este
documento reveste-se de grande importância, pois provém da reflexão não só de
católicos, mas de irmãos protestantes, cuja tradição é infensa à piedade
mariana. Significa, pois, um passo momentoso na linha de convergência entre
cristãos que ultimamente vem sendo trilhada em reafirmação dos artigos da fé.

Segue-se o texto português
da Declaração em pauta, ao qual se acrescentará breve comentário.

I. Declaração

“Em prosseguimento dos cinco
Congressos Mariológicos Internacionais precedentes, o Congresso de Malta (8-15
de setembro de 1983) permitiu a um grupo de teólogos anglicanos, luteranos,
reformados e ortodoxos reunir-se com um grupo de teólogos católicos para
refletir sobre a Comunhão dos Santos e sobre o lugar que Maria ali ocupa.
Reconhecidos ao Senhor pelos encontros precedentes, e pelas convergências que
surgiram, acreditam poder apresentar ao Congresso as conclusões do seu diálogo.

1. Todos reconhecemos a
existência da Comunhão dos Santos como comunhão daqueles que na terra estão
unidos a Cristo, como membros vivos do seu Corpo Místico. O fundamento e o
ponto central de referência desta comunhão é Cristo, o Filho de Deus feito
homem e Cabeça da Igreja (Ef 4,15-16), para nos unir ao Pai e ao Espírito Santo.

2. Esta comunhão, que é
comunhão com Cristo e entre todos os que não são de Cristo, implica uma solidariedade
que se exprime também na oração de uns pelos outros; esta oração depende
daquela de Cristo, sempre vivo para interceder por nós (cf. Hb 7, 25).

3. O fato mesmo de que, no céu
à direita do Pai, Cristo ora por nós, indica-nos que a morte não rompe a comunhão
daqueles que durante a própria vida estiveram pelos laços da fraternidade
unidos em Cristo.
Existe, pois, uma comunhão entre os que pertencem a Cristo,
quer vivam na terra, quer, tendo deixado os seus corpos, estejam com o Senhor
(cf. 2Cor 5,8; Mc 12,27).

4. Neste contexto,
compreende-se que a intercessão dos Santos por nós existe de maneira semelhante
à oração que os fiéis fazem uns pelos outros. A intercessão dos Santos não deve
ser entendida como um meio de “informar” Deus das nossas necessidades. Nenhuma oração
pode ter este sentido a respeito de Deus, cujo conhecimento é infinito.
Trata-se de uma abertura à vontade de Deus por parte de si mesmo e dos outros,
e da prática do amor fraterno.

5. No interior desta
doutrina, compreende-se o lugar que pertence a Maria Mãe de Deus. É
precisamente a relação a Cristo que, na Comunhão dos Santos, lhe confere uma
função singular de ordem cristológica. Além disso, a oração de Maria por nós
deve ser considerada no contexto cultural de toda a Igreja celeste descrito no
Apocalipse, ao qual a Igreja terrestre quer unir-se na sua oração comunitária.
Maria ora no seio da Igreja como outrora o fez na expectativa do Pentecostes
(cf. At 1,14). Por outro lado, quaisquer que sejam as nossa diferença
confessionais, não há razão alguma que impeça unir a nossa oração a Deus no Espírito
Santo com a da liturgia celeste, e de modo especial com a da Mãe de Deus.

6. Esta inserção de Maria no
culto ao redor do Cordeiro imolado (aspecto cristológico), associada a toda a
liturgia celeste (aspecto eclesiológico), não pode dar lugar a alguma
interpretação que venha atribuir a Maria uma honra que é devida só a Deus. Além
disso, nenhum membro da Igreja saberia acrescentar qualquer coisa à obra de
Cristo, que é a única fonte de salvação; não é possível passar senão por Ele,
nem recorrer a uma via “mais cômoda” que a do Filho de Deus, para se chegar ao
Pai. Ao mesmo tempo é claro que Maria tem o seu lugar na Comunhão dos Santos.

Ao término destas reflexões,
nós desejamos dar um testemunho público da fraterna experiência vivida nestes
dias. Ela não se limita à atmosfera em que o diálogo se realizou, mas
entende-se a todas as atividades do Congresso e à mentalidade religiosa do povo
maltês, que, no fervor da sua oração com Maria, nos acompanhava. Conscientes de
que há muitos problemas teológicos aos quais o diálogo deverá ainda levar, nós
declaramos a nossa vontade de continuar as nossas reflexões no Nome do Senhor.

Não é supérfluo recordar,
como se fez ao término do Congresso de Saragoça em 1979, que os signatários,
como membros da Comissão Ecumênica do Congresso, não querem senão empenhar-se,
bem que tenham trabalhado com a preocupação constante de exprimir a fé das suas
respectivas Igrejas.

Malta, 15 de setembro de
1983.

WOLFGANG BOROWSKY, Luterano

HENRY CHAVANNES, Reformado

JOHN DE SATGE, Anglicano

JOHANNES KALOGIROU, Ortodoxo

JOHN MILBURN, Anglicano

HOWARD ROOT, Anglicano

JOHN EVANS, Anglicano

FRANZ COURTH, S.A.C.

THEODORE KOEHLER, S. M.

CÂNDIDO POZO, S. J.

CHARLES MOLETTE, Sac.

ENRIQUE LLAMAS, O. C. D.

STEFANO DE FIORES, S. M. M.

PIERRE, MASSON, O. P.

Secretário”

II. Comentário

Como se vê, o texto procura
ater-se às afirmações bíblicas a fim de depreender das mesmas o lugar que toca
a Maria na piedade cristã.

Eis em poucas palavras o seu
conteúdo:

1) A S. Escritura nos diz
que Cristo é Cabeça de um corpo, do qual nós somos membros. Ora desta realidade
de Cabeça-Corpo segue-se que existe comunhão de vida e de interesses entre
Cristo e os cristãos, como também entre os próprios cristãos.

2) Comunhão é solidariedade.
E solidariedade se exprime pela oração: a) oração de Cristo por nós na medida
em que é nosso Sacerdote (cf. Hb 7, 25)¹; b) oração dos cristãos uns pelos
outros.

3) A morte de um cristão na
terra não extingue essa comunhão; por isto ela subsiste entre os fiéis
peregrinos neste mundo e aqueles que já passaram para a glória do Pai.

A declaração fundamenta as
suas afirmações no fato de que Cristo está sempre vivo a interceder por nós
(cf. Hb 7,25), como também em textos bíblicos que professam a existência póstuma
dos “falecidos”: “O Deus de Abraão, Isaque e Jacó não é Deus de mortos, mas de
vivos!” (cf. 12,27); “os que deixam a mansão deste corpo, vão morar junto do
Senhor” (cf. 2Cor 5,8). – poder-se-iam citar ainda duas outras passagens escriturísticas,
que, embora não sejam reconhecidas como canônicas pelos protestantes, são o
testemunho das crenças dos judeus nos séculos II/I a.C.

Em 2Mc 15,11-16, narra-se
que Judas Macabeu teve uma visão na qual lhe apareciam Onias, sumo sacerdote já
falecido, e o profeta Jeremias, também já falecido, como intercessores em prol
do povo de Judá ao Senhor Deus. Eis o texto bíblico em pauta:

“Tal foi o espetáculo que tocou
a Judas apreciar: Onias, que tinha sido sumo sacerdote, homem honesto e bom,
modesto no trato e de caráter manso, expressando-se convenientemente no falar,
e desde a infância exercitado em todas as práticas da virtude, estava com as mãos
estendidas, intercedendo por toda a comunidade dos judeus. Apareceu a seguir,
da mesma forma, um homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo
maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava. Tomando então a
palavra, disse Onias: “Este é o amigo dos seus irmãos, aquele que muito ora
pelo povo e por toda a cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus”.

O outro texto que vem ao
caso, é o de 2Mc 12,40-45. Atesta, por sua vez, que antes de cristo os judeus
admitiam a comunhão entre os vivos e os mortos e a intercessão daqueles em
favor destes. Julgam os teólogos que, em virtude da solidariedade existente
entre vivos e defuntos, Deus comunica a estes as preces e os grandes interesses
dos seus irmãos ainda peregrinos na terra. De resto, Santa Teresinha de Lisieux
exprimia o senso de comunhão que ela trazia em seu íntimo, ao exclamar:

“Se meus desejos forem
atendidos, o meu céu decorrerá sobre a terra até o fim do mundo. Sim; quero
passar o meu céu a fazer o bem sobre a terra. Isto não é possível porque na visão
beatífica os anjos vigiam sobre nós. Não; eu não poderei tomar repouso até o
fim do mundo e enquanto houver almas a salvar. Mas, quando o anjo tiver dito: “Já
não há mais tempo” (Ap 10,6), então eu repousarei; poderei gozar porque o número
dos eleitos estará completo; todos terão entrado na alegria e no repouso. Meu
coração exulta com este pensamento” (Novissima Verba).

Não há dúvida, a Santa usou
de antropomorfismo ao dizer que no céu não descansaria enquanto houvesse tempo;
desde que entram na visão beatífica, os Santos estão plenamente felizes.

4) A oração dos santos pelos
fiéis peregrinos, como qualquer outra forma de oração, não tem o papel de
informar Deus a respeito de necessidades nossas, como se Ele as ignorasse. O
Senhor Jesus recomendou-nos insistentemente o recurso à oração (cf. Lc 11,9s;
Jo 14,13s; 16,23s), não para “negociarmos” ou “barganharmos” com Deus, tentando
dobrar a vontade do pai ao nosso modo de ver, mas para que colaboremos
conscientemente com o plano de Deus. Com efeito; quem reza, pode pedir a Deus
tudo o que se já honesto, mas dirá sempre no fim, com Cristo: “Faça-se a tua
vontade, e não a minha” (Mc 14,36). Orar, portanto, é apresentar a Deus, de
maneira consciente e generosa, os nossos anseios de que se cumpram os seus
santos desígnios; e, para que se cumpram, sugerimos ao Pai o que nos parece
condizente com a sua santa vontade: dê-nos o pão de cada dia, a saúde, a veste,
a casa…, a alegria; pedimos sugerindo, pedimos supondo que tais objetivos
correspondam realmente ao intento salvífico do Pai; não imperamos. É assim que
colaboramos com a Providência Divina mediante a oração.

5) Neste contexto percebe-se
o lugar de Maria dentro da piedade cristã. Na qualidade de Mão do Redentor, Ela
se acha em especial relação com Cristo. Ademais ela participa da liturgia
celeste de que fala o Apocalipse, como participou da oração dos Apóstolos na
expectativa de Pentecostes. Por conseguinte, Maria ora na Igreja e com a Igreja
e sua oração não pode deixar de ter especial graciosidade, visto que foi
elevada a dignidade singular dentro do plano de Deus.

6. A exaltação da figura de Maria qual Mãe e Advogada do
gênero humano não acarreta detrimento para a glória devida a deus só. Nem Maria
nem algum outro santo pode fazer algo de grande em prol dos homens a não ser
que isto lhes seja concedido pelo próprio Deus mediante Jesus Cristo. É sempre
a obra do Redentor que vemos frutificar nos santos, inclusive na intercessão de
Maria em favor do gênero humano.

A piedade para com Maria
coaduna-se perfeitamente com o Cristocentrismo que deve caracterizar o cristão;
com efeito, este deve ter programa procurar reproduzir em si a imagem e a vida
do Cristo; todavia, quanto mais assemelhado a Cristo, tanto mais o cristão há
de nutrir para com Maria os sentimentos de veneração e estima filial que Jesus
alimentava para com a sua Mãe SS.; tanto mais ele será para Maria um outro
Jesus. Torna-se, pois, lógica a devoção a Maria, desde que o Cristão faça de
Jesus o grande referencial da sua vida; ela decorre naturalmente do
Cristocentrismo.

Como se vê, a piedade
mariana que, entre grupos protestantes mais recentes, se torna objeto de duros
ataques, vem a ser mais e mais entendida e justificada por parte de denominações
evangélicas mais antigas e tradicionais; onde os ânimos serenam, pondo de lado
qualquer atitude fanática ou obcecada, o olho da fé percebe mais nitidamente a
verdade contida na Bíblia e na Tradição e se aproxima de Maria SS., a quem Jesus,
antes de morrer, confiou o gênero humano (cf. Jo 19,25-27).

“Cristo sempre pode conceder salvação
perfeita àqueles que, por seu intermédio, se aproximam de Deus, pois Ele
permanece perpetuamente vivo para interceder por nós” (Hb 7,25).

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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