Curando nossa imagem de Deus – EB

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 496 – Ano:  2003  – p. 476

Em síntese:  O livro tenta apagar toda noção de Deus que castiga os homens, chegando a negar o inferno sem fim e outras verdades da fé.  Os autores apresentam assim um Deus “papai bonachão”, que não é o da fé cristã.

Os irmãos Matthew, Sheila e Dennis Linn têm-se dedicado à pregação de retiros, tentando corrigir a imagem de um Deus vingativo, que assusta a criatura.  Desse trabalho pastoral resultou o livro “Curando a nossa imagem de Deus” que, traduzido para o português, tem provocado debates e perplexidade.  Daí as reflexões propostas neste artigo.

O conteúdo do livro

Em poucas palavras a Quarta capa do livro refere a tese do livro.

“Começamos a perceber como é distorcida a imagem que temos de Deus – um Deus que ama, mas (…) se vinga, castiga, manda para o inferno (…).  Os autores vão restaurando a imagem de um Deus que realmente cura de forma incondicional, levando-nos a experimentar uma nova alegria”.

No corpo do livro os autores se referem a Mt 25,31-46, trecho que apresenta a condenação ao fogo eterno, e às pp. 105s comentam:

“Quando Jesus fala do “inextinguível fogo do inferno”, está empregando uma imagem para descrever o caso de uma pessoa voltada para a autodestruição…  Jesus está usando uma imagem contemporânea sua sem se preocupar com sua precisão teológica e sem tentar descrever literalmente um lugar de castigo futuro.  Antes, como em outros trechos em que Jesus fala de ameaças de castigo vingador, ele não está falando porque pretende mandar os outros para o inferno, mas para mostrar quão importante é obedecer, para que seus discípulos possam eles mesmos estar bem e amar-se mais uns aos outros (….)

“Perene” ou “eterno”  (em grego, aiónois) era visto por Jesus como uma imagem que poderia descrever um estado transitório.  aiônios é um adjetivo derivado do substantivo grego aión, que o Greek-English Lexicon of the New Testament (Dicionário grego-inglês do Novo Testamento) consigna como significando período indefinido de tempo, que pode variar desde uma “geração” ou “período de vida” de uma pessoa, até aquilo “que dura para sempre”.  É muito provável que para Jesus a imagem do “eterno fogo do inferno” se referisse a um período indeterminado de tempo durante o qual as correntes de ar mantiveram acesas as chamas do depósito de lixo da geena”.

Pergunta-se:

Que dizer ?

Proporemos três observações.

Não às caricaturas de Deus
vingativo

Os autores do livro têm razão ao querer remover a imagem de um Deus vingativo, que manda para o inferno.  Na verdade Deus quer a salvação de todos os homens (cf. 1Tm 2,4), mas não força ninguém a aceitá-la; deixa a criatura optar livremente e respeita a sua opção por Deus ou contra Deus.  Por conseguinte não é Deus quem castiga o homem, mas é o próprio homem quem castiga a si mesmo optando por um bem finito e ilusório em vez de escolher o Bem Infinito. Pensar em Deus há de ser motivo de alegria e estímulo para o ser humano e jamais de pavor.

Os livros do Antigo Testamento apresentam não raro a figura de Deus irado e severo. Fazem-no, porque são destinados a um povo
rude, “de dura cerviz”, que só entendia bem a linguagem do Pai enfurecido; Deus se fez pedagogo ou educador do povo de Israel dentro dos termos mais eficazes nos séculos anteriores a Cristo.  Tal figura cedeu à do Deus que se revelou em Jesus Cristo.

Não à imagem do “Papai bonachão”

Esta imagem seria a extrema oposta do “Deus irado”.  Deus não é aquele pai que dá mesada, paga viagens e atende a todos os pedidos do filho para se ver livre do mesmo e levar vida despreocupada com ou sem a sua esposa.  Tal não é um bom pai, mas um “papai bonachão”.

Deus é bom, mas não é bonachão.  Ele nem sempre atende ao homem como este desejaria, dando-lhe “bombons”, porque Ele quer dar-se; quer que o homem experimente a sede do Absoluto.

Deus tem suas leis, que apontam ao homem inexperiente o caminho da Vida; se não as promulgasse, o homem estaria desorientado e cairia no caos.  Tais leis nem sempre correspondem ao que o homem deseja, podem exigir sacrifício e renúncia, mas sempre para o bem da criatura.

O inferno

Os autores do livro em foco insinuam a não existência do inferno.

Na verdade, não existe um lugar ou um tanque de enxofre fumegante chamado “inferno”, mas é evidente, para quem lê o Novo Testamento, que existe um estado póstumo em que o pecador impenitente sente a dor de haver perdido para sempre o único Bem que ele não podia perder; é o estado da mais profunda frustração; cf. Mc 3, 28s; Jo 5, 28s; Mt 5,29s; Gl 5, 19-21; Ef 5,5.

Esse estado não tem fim, conforme a Escritura e a tradição de vinte séculos de Cristianismo.  No trecho atrás citado, os autores referem que a palavra grega aiônios pode significar não somente eterno (como é costume traduzi-la), mas também um período indeterminado; em conseqüência, para tais autores, o chamado “inferno” seria um estágio provisório.  A este raciocínio deve-se propor a pergunta: será que só no século XXI se compreende com acerto o Evangelho?  Somente após vinte séculos terá começado o
Cristianismo a ser entendido corretamente?
Deus terá deixado sua Igreja errar por tantos séculos.  Ele que prometeu aos Apóstolos a sua assistência até o fim dos tempos?  Cf. Mt 28, 18-20.  Quem melhor podia entender a mensagem de Cristo do que as primeiras gerações cristãs?  Parece evidente que ninguém pode pretender estar vivendo o Cristianismo autêntico pela primeira vez no século XXI.  Daí a necessidade de se guardar fidelidade aos ensinamentos do Evangelho tais como sempre foram entendidos.  Muito a propósito vem a observação de Vicente de Lérins (+ 450 aproximadamente), monge e teólogo na Gália:

“Com grande zelo tratemos de guardar o que em toda parte, sempre e por todos foi acreditado, pois isto é verdadeira e propriamente católico. Magnopere curandum est ut id teneamus quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est; hoc est etenim vere
proprieque catholicum” (Commonitorium adversus Haereses, c. 2).

Esta sábia norma vale até os dias atuais; seria anticatólico negar algum artigo de fé sempre professado pela Igreja.  A fé católica não pode perder o contato com as suas raízes.  O Cristianismo começa com Jesus Cristo e não tolera reforma em seus elementos essenciais.

Eis as principais razões pelas quais o livro “Curando nossa imagem de Deus” tem provocado, a justo título, críticas e objeções da parte de leitores.

***por Matthew, Sheila e Dennis Linn

1 É de notar que a tese da restauração de todas as criaturas na felicidade inicial foi explicitamente condenadas por um Sínodo de Constantinopla reunido em 543 e aprovado pelo Papa Vigílio:  “Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável restauração das mesmas (que é geralmente associada àquela), seja anátema”.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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