Cruzando o limiar da esperança – EB

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
nº 395 Ano 1995 p. 183

Papa João Paulo II
O Papa João Paulo II publicou um livro que foge ao estilo dos documentos oficiais da Igreja. Vem a ser a livre expansão dos sentimentos do Pontífice frente a questões fundamentais que lhe foram colocadas em estilo jornalista pelo entrevistador Vittorio Messori.
O livro tem sido altamente elogiado por causa da franqueza e espontaneidade com que o autor se exprime em linguajar que não pretende ser magisterial, mas a expressão do pensamento profundo do Pontífice. Nem todos, porém, entenderam os dizeres do Papa; esperavam dele uma argumentação filosófico-teológica ou escolástica – o que seria próprio de um livro didático ou de uma Encíclica. Assim, por exemplo, parece ter ficado decepcionado o  articulista Marcelo Coelho, da FOLHA DE SÃO PAULO, 21/12/94, 5º. Caderno, p. 8.

O presente artigo, devido a D. Karl Josef, Bispo Auxiliar do Rio de janeiro, oferece a chave de leitura para se entenderem as explanações do Papa: são algo que procede da experiência do autor, revelando um homem de grande ideal, que sofreu em sua juventude sob os golpes da guerra e do comunismo e que aprendeu não somente nos livros, mas  também na escola da vida, a conhecer o coração humano e seus anseios profundos. É ao homem que João Paulo fala como homem que pertence à geração dos batalhadores deste século: “Também eu pertenço àquela geração, e penso que o heroísmo dos meus companheiros ajudou-me a definir a minha própria vocação… É preciso dar a vida” (p. 122).
A D. Karl Josef Romer a Redação de PR agradece a gentileza deste artigo.

Comentário
Há exatamente dezesseis anos desde que João Paulo II, no dia de sua posse como Papa, clamou diante de uma imensa multidão na praça de São Pedro: “Homem, que maravilha és tu!”.¹
É este um dos grandes temas deste Pontificado. O Papa, em santa emoção, vibra com cada ser humano, capaz de experimentar já aqui, e de ser para o próximo, um presságio do céu, da felicidade. Mas ele luta por cada homem, por cada mulher, que, nascidos para a felicidade, parecem experimentar tantas vezes só infortúnio e degradação. A infelicidade é ameaça total ao ser humano, como, de outro lado, o amor  e a compreensão são o mais puro indício de ser o homem criado para a transcendência, para o absoluto, para uma vida sem fim.
É esta a primeira vez na história que um Papa escolhe esse tipo de púlpito. João Paulo II dá-se conta de que, neste mundo em transformação e desintegração de tantos valores, o exercício de seu Magistério já não se pode ater somente a encíclicas e cartas pastorais. O Evangelho precisa também de outros meios, para alcançar novos horizontes. Por isto, o Papa, primeiro evangelizador, opta pelo estilo moderno de uma entrevista jornalística.
O próprio entrevistador, o mundialmente conhecido jornalista Vittorio Messori, atesta na TV italiana: “O Papa aceitou, num gesto de humildade e de generosa abertura, ser entrevistado, interrogado por um homem que vem deste mundo profano e complexo”.

Um imprevisto e uma surpresa
Urgentes compromissos, como a visita à Letônia, à Lituânia e à Estônia, países da ex-União Soviética, tornaram para a data do 15.º aniversário do Pontificado, em outubro de 1993. “Era de se prever”, escreve Messori, “que, passado o aniversário, ninguém mais tocaria no assunto”. Nesta altura, no entanto, um telefonema do Vaticano informou que o Papa fazia questão de responder às perguntas apresentadas.
As respostas, elaboradas e manuscritas pelo próprio Papa, são o conteúdo do livro, no qual se intercalam apenas as 35 perguntas do jornalista Messori. – São páginas essenciais e fascinantes.

Páginas essenciais
Não cai em casuísmo o supremo Pastor da Igreja, nem se deixa prender a questões clericais ou a qualquer forma de moralismo. Move-o a mais original certeza da fé cristã. Não são opiniões que se degladiam neste livro, mas aparece a pura luz da fé em Jesus Cristo a revelar a verdadeira grandeza de tudo o que seja realmente humano.
O homem encontra-se exposto a crises internas, como também a adversidades externas. “Também eu pertenço àquela geração” cuja experiência e suprema coragem são descritas no livro do grande sobrevivente do campo de concentração de Sachsenhausen, Michalski, Entre heroísmo e bestialidade (cf. p. 122). Para o homem que exatamente com sua fé venceu naquelas hediondas catacumbas do sofrimento, existem certezas, capazes de consolidar toda a existência da pessoa e da comunidade. Estas raízes luminosas são descobertas no livro.
O Papa não fala primeiramente como filósofo ou como cientista. Valeu-se de seu profundo conhecimento do coração humano, e, mais ainda, daquela função pela qual sua pessoa estabelece uma inegável relação com a verdade absoluta. Ele não é representante de um sistema, nem primeiramente de uma religião. O Papa é o representante de Jesus Cristo. E ele nos faz entrever as mais profundas questões, abrindo perspectivas para uma resposta abrangente: Jesus Cristo é o Messias e Filho de Deus! Sem isto, como nos interessaria o cristianismo?
Este núcleo da mensagem cristã é mais do que uma Moral; porque é fonte e meta de toda Moral. A mensagem do Deus feito homem é hoje e sempre motivo de indizível confiança, de certo modo mesmo para os que não são cristãos.
Esta mensagem central do cristianismo já não pode ficar escondida, nem ser apenas sussurrada entre os piedosos. “Deve ser proclamada a partir dos tetos” (Mt 10,27). O Papa se envolve todo. Não é teoria o que ele escreve. É a fé da Igreja. Mas, ao mesmo tempo, é feliz e dolorosa experiência de sua própria vida. Cristo é de tudo a medida. É com razão que na Introdução ao livro o entrevistador confessa: “Se Jesus não tivesse ressuscitado, de nada nos interessaria a opinião deste homem, vestido de branco, o Papa” (p. 16).
Apaixonadamente, o Papa, em nome de Cristo, oferece ao mundo nova certeza, nova alegria, nova esperança. E isto, mediante as mais profundas verdades da fé, fonte e razão de ser da imperecível dignidade do homem.

Um Livro fascinante
As páginas deste livro estão permeadas pela paixão do homem que lutou para encontrar o Cristo. Em tudo se reflete algo da experiência vivida pelo próprio autor.
“Tem consciência, seja lá quem fores, de que tu és amado! Lembra-te: o Evangelho é um convite à alegria! Não te esqueças de que tens um Pai e toda vida, mesmo a mais insignificante aos olhos humanos, tem valor eterno e infinito aos seus olhos!” (cf. p. 17s). – “Não tenhais medo!” – “Non abbiate paura!”, tantas vezes repetido, torna-se como que o insistente refrão do livro (cf., por exemplo, cap. 34).
Se o homem moderno pergunta pela justiça de Deus, a resposta é maior do que toda pergunta, por mais radical que esta possa ser: “Deus que é Juiz justo, juiz do bem e do mal, é o Deus de Jesus Cristo, que é seu Filho. Este Deus é, antes de mais nada, Amor. Não é só Misericórdia, mas Amor. Não é somente o Pai do Filho pródigo, mas o Pai que entrega seu Filho para que o homem não pereça e não morra para sempre, mas tenha a vida eterna” (cf. Jo 3,16;  p. 173).
A coragem de anunciar sempre de novo baseia-se, para o Papa, na percepção da ilimitada capacidade, do homem, de se abrir e se transformar, e, muito mais ainda, na absoluta confiança em Deus, que revela seu eterno amor como segredo profundo do tempo e da eternidade. Não se trata de um lirismo. O Papa sabe, e o diz claramente: “Há (hoje) uma antievangelização, que dispõe  de meios e de programas que se contrapõem, com toda força, ao Evangelho. A luta pela alma do mundo é enorme” (p. 116). “Por isso, o Evangelho precisa de todos os púlpitos disponíveis. Estes novos areópagos são hoje o mundo da ciência, da cultura, dos meios de comunicação; são os ambientes nos quais se formam as elites intelectuais, aquelas dos escritores e dos artistas” (p. 116).
Com otimismo, o Papa declara: “Enquanto passam as gerações que se tinham afastado de Cristo e da Igreja, e que aceitaram uma forma laicista de pensar e de viver (…), a Igreja olha sempre para o futuro; sem nunca parar, ela sai ao encontro das novas gerações. E já se vê com clareza que estas acolhem entusiasmadas o que seus pais pareciam recusar” (cf. p. 116).

Amor à juventude
No capítulo 19, revelando imenso amor à juventude, o Papa indica limites e perigos desta geração, que não conheceu nem a segunda Guerra Mundial, nem (muitos dentre eles) a tirania dos Estados totalitários. “Vivem a liberdade que outros lhe conquistaram”, sem conhecer nem o preço nem a meta dessa liberdade. Todavia, neste clima do “neo-liberalismo”, onde tudo parece factível e sem exigir compromissos, é tanto mais importante descobrir o valor essencial da juventude. É mais do que uma determinada faixa etária, é “um tempo dado pela providência de Deus (…) fazendo com que o jovem busque respostas às mais radicais interrogações, procurando o sentido da vida e um projeto concreto da existência a construir” (cf. p. 123). É a fase, em que “o jovem ou a jovem sabe que deve viver para os outros e com os outros, e sabe que sua vida só tem sentido enquanto se torna um dom gratuito para o próximo” (p. 124). Todos os educadores, pais, mestres, pastores, “devem amar esta característica essencial da juventude”.
Numa proximidade aos mais íntimos anseios dos jovens e numa profunda solidariedade com os enigmas próprios desta idade, o Papa diz: “Nos jovens há imenso potencial de bem e de possibilidades criativas. Ao encontrá-los, em qualquer lugar do mundo, espero, antes de tudo, por aquilo que eles me querem dizer a respeito de si próprios, de sua sociedade de sua Igreja. Procuro conscientizá-los: “De modo algum é mais importante aquilo que vou dizer-lhes: importante é o que vocês me dirão”. Talvez não possam dizer isso com as palavras, mas conseguem dizê-lo com a sua presença, com seu canto, quem sabe também através de sua dança, por meio de suas apresentações, enfim, com seu entusiasmo” (p. 126).
Os jovens precisam de guias. Mas não é guia quem não ama. “Ainda sacerdote jovem”, diz o Papa, “aprendi a amar o amor humano (…) Se se ama o amor humano, surge também a viva necessidade de investir todas as forças em prol do belo amor” (pp. 124s).
E se hoje, onde quer que ele fale, os jovens o procuram e aplaudem, o papa o sabe e diz claramente: “Na verdade não é o Papa que é buscado pelos jovens. Quem por eles é buscado, é o Cristo” (p. 125).
 

¹ O artigo é datado de 23 de outubro de 1994 (N.d.R.)

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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