Conversando com as almas do purgatório – EB

Em síntese: A princesa Eugênia von der Leyen (1867-1929) diz ter tido visões de almas do purgatório; ter-lhe-ão aparecido sob formas de seres humanos e animais asquerosos; ter-se-ão irritado com ela, por julgarem que ela não os sufragava suficientemente; em suma, terão atormentado a vidente desde 1921 a 1929. A princesa narra as ocorrências no livro em foco. – A propósito notamos que não é de crer que as almas do purgatório apareçam na terra com tanta frequência e assumam for­mas corpóreas tão diversas; as almas do purgatório estão separadas de seus corpos, aguardando a ressurreição da carne no fim dos tempos. O livro concebe o purgatório como um lugar de tormentos semelhantes aos do inferno, o que é falso e deturpa a ideia de purgatório. Este é um esta­do em que as almas dos falecidos se arrependem de haver perdido tem­po na terra alimentando com lerdeza e complacência os “pecadinhos” de cada dia.

Vão-se multiplicando os casos de “revelações” particulares em nos­sos dias. Entre todas merece atenção o que afirma a Sra. Eugênia, Prin­cesa von der Leyen, de família bávara, a respeito de aparições de almas do purgatório e do estado em que se encontram as mesmas. O livro já conhecia quatro edições alemãs em 1985 e foi publicado no Brasil em 1994 com o título “Conversando com as almas do Purgatório”¹. Além das notícias transmitidas por Eugênia von der Leyen, o livro contém Apresentação, Prólogo de Arnold Guillet, Prefácio do Dr. Peter Gehring, editor da obra, e alguns anexos, como “A doutrina da Igreja sobre as Almas do Purgatório” do Pe. Kaspar Demmeler, “O sofrimento purificador” de Ro­mano Guardini, “As Almas do Purgatório segundo a doutrina de São Bernadino de Sena” e Oração pelas almas do Purgatório.

As páginas subsequentes apresentarão brevemente alguns traços do livro em questão e um comentário aos mesmos.

1. TRAÇOS DE LIVRO

A princesa Eugênia von der Leyen und zu Hohengeroldseck nasceu aos 15 de maio de 1867 em Munique (Alemanha). Desde 1921 até o ano de sua morte, diz-se que gozou do carisma especial de contactar almas do purgatório, com as quais conversava. O seu diretor espiritual, Pe. Sebastião Wieser, estimulou-a a escrever as suas experiências e acom­panhou a vidente nos últimos doze anos de vida dela.

Eugênia von der Leyen deixou, em conseqüência, seus apontamen­tos, quase à guisa de um diário, onde relata os seus colóquios com as almas do purgatório, que lhe apareciam sob a forma de seres humanos (homens e mulheres) desfigurados e horrendos ou até sob a forma de animais asquerosos (macacos, serpentes…). Um deles tinha o corpo esburacado e penetrado por vermes:

“Vi o que é simplesmente indescritível. Seu corpo estava inteiramente como que esburacado, e em cada cavidade se mexiam milhares e milhares de vermes. Tudo nele estava sendo roído por vermes e mais ver­mes. Acho que nunca em minha vida eu tinha visto algo tão nojento” (p. 155).

Tal corpo era “o símbolo dos pecados que ainda deviam ser pagos” (ibid.).

“10 de outubro –  Passei uma noite medonha. Talvez essas visitas façam parte da necessária renúncia à minha vontade própria. Quero, pois, referir apenas os fatos, e não quero lastimar-me.

O macaco tem o tamanho de uma porta; enraivece-se qual louco enfurecido. Parece nem escutar a minha oração. Entrou pela janela, o que para mim já tem uma conotação sinistra. Expele seu bafo no meu rosto e bufa qual animal selvagem. Ele quis estrangular-me, mas eu colo­quei depressa meu crucifixo de agonizantes no meu pescoço, e aí me deixou.

14 de outubro – O macaco vem todos os dias, mais exatamente to­das as noites. Eu estranho que tenha o couro molhado como se viesse da chuva. Mas estou contente que essa alma apareça em forma de ma­caco e não de cobra; pois, se fosse de cobra, seria demais para mim”.

Pode também haver figuras mais brandas e tranquilas:

“30 de maio – Eu estava ajudando as Irmãs do Hospital no arranjo de flores. (Era véspera da festa do Corpo de Deus.) Por algum tempo, fiquei sozinha, quando veio Benedito e se pôs ao meu lado. Perguntei-lhe: “Benedito, sofres muito?” Ele fez que não com a cabeça. Continuei: “Em pouco tempo estarás no céu?” Meneou a cabeça afirmativamente. -“Costumas andar por aqui?” Outra vez o gesto afirmativo com a cabeça. Parecia estar muito à vontade, tal como em vida, de avental azul e de mangas arregaçadas. Ficou olhando algum tempo, saiu porta afora, até a casa, e sumiu.

Graças a Deus que a governanta não vem mais; posso dormir sossegada”.

A vidente refere que esses visitantes do além chegavam a agredi-la fisicamente; punham-se em luta contra ela, pois julgavam que ela não os sufragava suficientemente com orações e sacrifícios:

“28 de novembro – A mão de Egolf parecia estar tingida de sangue. Perguntei-lhe: “Por que tua mão está sangrando?” – “Por causa do meu pecado”. – “Nunca se soube que mataste Susana?” – “Não. Mas a ti devo confessá-lo”.

 – “Quem foi Susana?” – “Uma menina inocente”. – “Não quero saber dos pecados que cometeste”. Aí explodiu em uivos, pegou meu braço, agitou-o violentamente e disse uma palavra que não compreendi. Entendi apenas “domítico”. Deve ter-lhe custado muito fazer essa confissão, pois caiu no chão e gemia terrivelmente. Depois de lhe ter dado água benta, acalmou-se e ficou comigo até a madrugada. Já que o sono para mim é um prazer, quis ele forçar-me a renunciar ao descanso, pois tenho-lhe dado bem pouco até agora”.

Em outra ocasião Eugênia refere que foi visitada por uma alma sob forma de macaco:

“Ele me olhava de modo tão comovedor que tive de acariciá-lo. Ao tocar nele, senti a graixa suja do seu corpo” (p. 154).

Há almas que podem passar o seu purgatório “nos lugares onde pecaram; outras o passam ao pé dos altares (…) para adorar o Santíssimo Sacramento; sofrem menos do que padeceriam no purgatório. Enxergam Jesus com os olhos da fé e, ao mesmo tempo, com a alma. Na sua presença, os seus sofrimentos diminuem de intensidade” (p. 205).

No purgatório haverá fogo, (…) “fogo que penetra sobretudo as partes do corpo com as quais se pecou. Embora o corpo tenha sido deixado na terra, a alma tem a sensação de possui-lo ainda, para que ele participe do castigo que Deus a ele impôs” (p. 204).

A duração do purgatório, para cada alma, pode estender-se por vin­te, quarenta anos ou mais, ou também menos do que isto (cf. p. 207).

Quanto aos sufrágios que se façam na terra pelas almas do purgatório, é de notar que nem sempre constam da celebração de Missas, pois “estas não aproveitam a quem não acreditou no valor da S. Missa antes de se converter à fé” (p.154).

Em suma, são estes os principais traços que o purgatório apresenta no Diário de Eugênia von der Leyen e nos escritos que acompanham esse Diário na obra que estamos recenseando.

Importa agora tecer algumas considerações a respeito.

2. PONDERANDO…

Quatro pontos vêm a mente de quem reflete sobre as impressionan­tes notícias do livro em foco.

1. Revelações particulares. Trata-se de visões e aparições de índole pessoal ou particular, que nunca poderão ser impostas à fé dos cristãos. A Igreja afirma que a Revelação das verdades de fé está encer­rada com a geração dos Apóstolos, de modo que nenhum artigo de fé pode ser acrescentado ao patrimônio revelado por Deus. As revelações particulares são possíveis; Deus pode querer, mediantetal recurso, incu­tir ou corroborar os artigos de fé; geralmente o que elas propõem, é uma exortação à oração e à penitência. As demais mensagens têm que ser confrontadas com as verdades de fé para se examinar a conformidade das mesmas com a fé da Igreja.cpa_o_purgat_rio

2. Purgatório = castigo. Quem lê o Diário de Eugênia von der Leyen, tem a impressão de que o purgatório é um castigo infligido pelo Senhor Deus a quem morre portador de resquícios de pecados antigos. Esta maneira de entender é inadequada. Não se trata de um castigo, mas de uma expressão da misericórdia divina, que concede à alma do falecido a ocasião de fazer o que devia ter feito na vida presente; é durante esta peregrinação que o cristão se deve desapegar de todo resquício de pe­cado, de tal modo que, logo após o término da caminhada terrestre, possa entrar na visão de Deus face-a-face. Caso o cristão não o faça antes de morrer, tem a ocasião, oferecida pela misericórdia divina, para o fazer postumamente.

3. Fogo no Purgatório. O purgatório está longe de ser um lugar de fogo e de tormentos físicos. As almas do purgatório se acham separadas dos respectivos corpos, de modo que não são afetadas por agentes físicos; nem revestem corpos esburacados por vermes, nem corpos de ani­mais…

A purificação póstuma se faz pelo repúdio do pecado e de suas raí­zes. Não temos noção alguma de quanto tempo isto possa durar (exclua-se a contagem em anos); cada qual leva para o além uma carga maior ou menor de resquícios do pecado; embora as almas do purgatório tenham o seu amor voltado para Deus, esse amor ainda é contraditado por som­bras de pecado, com as quais é impossível ver a Deus face-a-face. A própria alma do cristão, ao verificar, após a vida terrestre, que ainda é incoerente e portadora de resquícios de pecado, quer purificar-se es­pontaneamente; ela sabe que não pode sustentar a presença de Deus face-­a-face se é marcada por algum traço de incoerência.

4. Voltar à Terra? A Sra. Eugênia von der Leyen diz ter visto muitas e muitas almas do purgatório em visita à Terra sob formas sensíveis; Deus lhes teria permitido aparecer assim. Na Terra essas almas teriam assumido atitudes passionais, violentas, à semelhança de quaisquer ou­tros seres humanos. Ora isto parece produto de fecunda imaginação: não é de crer que as almas do purgatório, que precisamente estão a se purificar dos resquícios do pecado, venham à Terra mostrando-se passionais para os seus irmãos neste mundo. Recomenda-se a todos os cristãos cautela diante de pretensos fenômenos extraordinários; não raro é simplesmente a fantasia dos “videntes” que projeta tais imagens. Afinal o purgatório não é um cárcere, donde, por permissão de Deus, os prisio­neiros saem de licença e vêm solicitar com animosidade e impaciência os sufrágios dos seus irmãos neste mundo.

Em suma, é de lamentar que o livro em foco dissemine tão caricatural noção de purgatório, noção que mais corresponde a representações folclóricas ou teatrais do que á realidade mesma. –  Na verdade, o purgatório é um estado, não um lugar, sem fogo e sem estímulos físicos…, esta­do póstumo no qual a alma do cristão verifica que foi negligente e tíbia em relação à sua principal tarefa, que era preparar seu encontro final com Deus, a Beleza Infinita a ser contemplada face a face. Verificando que perdeu tempo (kairós, em grego) e oportunidades antes de morrer, a alma sofre por ver diferida a hora do seu encontro face-a-face com Deus (…), diferido porque lhe resta o dever de resgatar o tempo perdido ou de proceder ao repúdio e ao desarraigamento total dos traços de pecado com os quais tenha passado deste mundo para o além. É um sofrimento nobre e espontâneo, inspirado pelo amor a Deus e o horror ao pecado. Tal noção de purgatório é muito lógica; decorre necessariamente das premissas da fé cristã, e se coaduna harmoniosamente com a noção de Deus Santo e Misericordioso. Além do mais, está contida nos textos bíblicos de 2Mc 12,36-45 e 1Cor 3,10-15; deve-se mesmo dizer que já fazia parte do patrimônio da fé dos judeus pré-cristãos, que a transmitiram aos cristãos.

A propósito ver ulteriores considerações em

PR 402/1995, pp. 526;
PR 295/1986, pp. 557s;
PR 306/1987, pp. 458s;
PR 361/1992, pp. 265s;
PR 371/1993, pp. 154s;
PR 376/1993, pp. 400.

Curso de Novíssimos ou Escatologia, Escola “Mater Eclesiae”, Caixa postal 1362, 20001-970 Rio (RJ).
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¹ Editora Ave Maria, Rua Martim Francisco 656, 01226-000 São Paulo (SP), 140 x 210 mm, 223 pp.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 403 – Ano 1995 – p. 567

Por Eugênia von der Leyen

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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