Com Maria (Parte 3)

Discurso de João Paulo II, na Sala Paulo VI

O nosso Jubileu é antes de tudo um convite a medir-nos com o
amor que pulsa no coração de Cristo Muito significativo foi o encontro do Santo
Padre com milhares de Bispos de todo o mundo, vindos a Roma para o seu Jubileu
e reunidos na Sala Paulo VI, no final da manhã de sábado, 7 de Outubro, para
uma manifestação de profunda comunhão com o Sucessor de Pedro.

Ao lado do Papa estavam os Cardeais Bernardin Gantin, Decano
do Colégio Cardinalício, Jozef Tomko e Achille Silvestrini, respectivamente
Prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos e da Congregação para as
Igrejas Orientais, e D. Giovanni Battista Re, Prefeito da Congregação para os
Bispos, o qual dirigiu ao Sumo Pontífice uma deferente homenagem de saudação,
reafirmando a plena adesão de todos à pessoa e ao magistério do Santo Padre, e
agradecendo-lhe o corajoso testemunho e exemplo de dedicação a Cristo e à sua
Igreja.

No final do encontro, todos recitaram a oração do “Angelus”
com João Paulo II que, em seguida, saudou os 54 Cardeais presentes, os
responsáveis dos Dicastérios da Cúria Romana e os Presidentes de cerca de 100
Conferências Episcopais. Eis o texto do discurso do Papa:

Caríssimos Irmãos no Episcopado

1. “Quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum!”
(Sl 133 [132], 1). A alegria do salmista, eco do júbilo dos filhos de Israel, é
hoje a nossa felicidade. O espetáculo de muitos Bispos, reunidos de todas as
partes do mundo, não se verificava desde os tempos do Concílio Vaticano II. O
nosso encontro hodierno faz-me remontar com a mente aos anos de graça em que se
sentiu com vigor, como frémito de um novo Pentecostes, a presença do Espírito
de Deus. É bonito que o grande Jubileu nos tenha oferecido a ocasião propícia
para nos encontrarmos em número tão elevado. A comunhão fraterna, que nos une em
virtude da colegialidade episcopal, alimenta”nos também nestes sinais.

Agradeço-vos os sentimentos de comunhão que me expressastes
pelas palavras do caríssimo D. Giovanni Battista Re, que precisamente nestes
dias, após anos de serviço como meu estreito colaborador na Secretaria de
Estado, assumiu o delicado e importante cargo de Prefeito da Congregação para
os Bispos. Exprimo também a minha gratidão aos Cardeais Bernardin Gantin e
Lucas Moreira Neves pelo precioso trabalho por eles desempenhado com diligência
e sabedoria, na presidência da mencionda Congregação.

2. À primeira vista, o encontro de hoje poderia parecer
supérfluo, uma vez que cada um de vós se abriu amplamente à graça do Jubileu,
acompanhando os próprios fiéis a vários lugares jubilares da própria Diocese e
Nação. Contudo, sentimos a necessidade de uma celebração, por assim dizer,
totalmente nossa, destinada a aumentar o nosso compromisso e, antes ainda, a
jubilosa gratidão pela dádiva da plenitude do Sacerdócio. Foi como se voltasse
a ouvir o convite que certo dia o Mestre dirigiu aos Doze, marcados pelo
cansaço do afã apostólico: “Vamos sozinhos para algum lugar deserto, para que
descanseis um pouco” (Mc 6, 31). Sem dúvida, vir hoje a Roma não significa
retirar-se para um lugar deserto! Em contrapartida, junto da Sé do Sucessor de
Pedro cada um de vós pode sentir”se à vontade, como se estivesse na própria
casa, e todos juntos podemos viver uma hora de “repouso” espiritual,
congregando”nos em redor de Cristo. Deixastes por um momento as vossas preocupações
pastorais para viver uma pausa de carga interior num encontro especial com
quantos, como vós, trazem a sarcina episcopalis. Ao mesmo tempo, com este gesto
sublinhastes o fato de vos sentirdes membros do único Povo de Deus, a caminho
com os outros fiéis rumo ao encontro definitivo com Cristo. Sim, também os
Bispos, bem como todos os cristãos, estão a caminho da Pátria e têm necessidade
do auxílio de Deus e da sua misericórdia. Neste espírito, estais aqui para
implorar comigo a graça especial do Jubileu. Desta forma, podemos experimentar
juntos toda a consolação da verdade enunciada por Santo Agostinho: “Para vós,
sou bispo; convosco, sou cristão. O primeiro é o nome de um cargo assumido; o
segundo, de uma graça. Aquele é o nome de um perigo; este, de salvação” (Sermão
340, 1: PL 38, 1483). São palavras fortes!

3. “Dilexit Ecclesiam!” (Ef 5, 25). Neste momento, no nosso
coração de Pastores emergem as palavras de Paulo aos Efésios: elas recordam-nos
que o nosso Jubileu é antes de mais nada um convite a medir-nos com o amor que
palpita no coração de Cristo. Olhemos para Ele, o Filho eterno de Deus que, na
plenitude do tempo, Se fez homem no seio de Maria.

Fixemos o nosso olhar n’Ele, Salvador nosso e de todo o
gênero humano. Olhemos para Ele que, com a Encarnação, num certo sentido Se
tornou “consanguíneo” de cada homem. O raio do seu amor é tão vasto quanto o
mundo. Ninguém é excluído do seu olhar de amor.

Aberto ao mundo, o amor de Cristo é ao mesmo tempo um amor
de predileção. Amor universal e amor de predileção não se contradizem, mas são
dois círculos concêntricos. É em virtude do amor de predileção que Cristo gera
a Igreja como seu corpo e sua esposa, fazendo deles o sacramento da salvação
para todos. Dilexit eam! Hoje sentimo-nos de novo alcançados, juntamente com
todo o povo de Deus, por este olhar de amor.

Naquele dilexit Ecclesiam cada um de nós encontra o modelo e
a força do seu ministério, o fundamento e a raiz viva do mistério que o habita.
Caríssimos Irmãos no Episcopado, como pessoas sacramentalmente configuradas com
Cristo, Pastor e Esposo da Igreja, somos chamados a “reviver” nos nossos
pensamentos, sentimentos e opções o amor e a abnegação total de Jesus Cristo
pela sua Igreja. Em última análise, o amor a Cristo e o amor à Igreja são um amor
único e indivisível.

Imitando e compartilhando o dilexit Ecclesiam de Cristo,
neste diligere Ecclesiam encontram-se a graça e o compromisso desta nossa
celebração jubilar.

4. O Apóstolo indica de forma luminosa a finalidade suprema
do dilexit Ecclesiam: “Cristo amou a Igreja e entregou-se por ela… e
santificou-a” (Ef 5, 25″26). Assim é também o nosso múnus episcopal: ele está
ao serviço da santidade da Igreja.

Cada uma das nossas atividades pastorais tem como objetivo
último a santificação dos fiéis, a começar pelos sacerdotes, nossos diretos
colaboradores. Por conseguinte, deve ter em vista suscitar neles o compromisso
de responder ao chamamento do Senhor com prontidão e generosidade. E não é
acaso o nosso próprio testemunho de santidade pessoal o apelo mais credível e
mais persuasivo que os leigos e o clero têm direito a esperar no seu caminho
rumo à santidade? Proclamou-se o Jubileu precisamente para “suscitar em cada
fiel um verdadeiro anseio de santidade” (Tertio millennio adveniente, 42).

É necessário redescobrir aquilo que o Concílio Vaticano II
diz sobre a vocação universal à santidade. Não é por acaso que o Concílio se
dirige em primeiro lugar aos Bispos, recordando que devem “desempenhar o seu
ministério santamente e com entusiasmo, com humildade e fortaleza; assim,
encontrarão nele um magnífico meio da santificação própria” (Lumen gentium,
41). Como se vê, é a imagem de uma santidade que cresce ao lado do ministério,
mas através do mesmo ministério. Uma santidade que se desenvolve como caridade
pastoral, encontrando o seu paradigma em Cristo Bom Pastor
e impelindo cada pastor a tornar-se o “modelo da grei” (cf. 1 Pd 5, 3).

5. Esta caridade pastoral deve vivificar os tria munera em
que se articula o nosso ministério. Em primeiro lugar o munus docendi, ou seja,
o serviço do ensino. Quando relemos os Atos dos Apóstolos, ficamos
impressionados perante o fervor com que o primeiro núcleo apostólico semeava a
mãos cheias, com a força do Espírito, a semente da Palavra. Devemos encontrar
de novo o entusiasmo pentecostal do anúncio. Em um mundo que, através dos mass
media, conhece uma espécie de inflação das palavras, o verbo do Apóstolo só
pode distinguir”se e progredir apresentando-se, com toda a luminosidade
evangélica, como palavra repleta de vida. Não tenhamos medo de anunciar o
Evangelho, “opportune et importune” (2 Tm 4, 2). Sobretudo hoje, no meio de
muitas vozes discordantes que criam confusão e perplexidade na mente dos fiéis,
o Bispo tem a grave responsabilidade de esclarecer. O anúncio do Evangelho é o
ato de amor mais excelso em relação ao homem, à sua liberdade e à sua sede de
felicidade.

Através da Liturgia, fonte e ápice da vida eclesial (cf.
Sacrosanctum concilium, 10), esta mesma caridade torna-se sinal, celebração e
acção orante. Aqui, o dilexit Ecclesiam de Cristo faz”se memória viva e
presença eficaz. Nesta obra, mais que em qualquer outra, o papel do Bispo
delineia-se como munus sanctificandi, ministério de santificação, graças à
presença operosa d”Aquele que é o Santo por excelência.

Enfim, a caridade do Bispo deve brilhar no vasto âmbito da
orientação pastoral: no munus regendi. Exige-se muito de nós. Em tudo devemos
trabalhar “como bons pastores que conhecem as suas ovelhas e por elas são
conhecidos, como verdadeiros pais que se distinguem pelo espírito de amor e
solicitude por todos” (Christus Dominus, 16). Trata-se de um serviço de
caridade que não deve ignorar ninguém, mas há”de presar atenção especial aos
“últimos”, mediante a “opção preferencial pelos pobres” que, vivida segundo o
exemplo de Jesus, é expressão tanto de justiça como de caridade.

6. Diletos Irmãos, o Jubileu é o tempo da “grande
indulgência”. As graves responsabilidades que nos são confiadas e as não poucas
dificuldades que hoje o nosso ministério episcopal encontra tornam mais
acentuada e sofrida a consciência da nossa pequenez espiritual e, por
conseguinte, mais vigorosa e insistente a invocação ao amor indulgente do Pai.
Mas a misericórdia que nos advém do sacrifício de Cristo, o qual se torna
presente todos os dias na Eucaristia, infunde-nos uma esperança extremamente
sólida. Devemos anunciar e testificar esta esperança perante um mundo que a
extraviou ou deturpou. Trata”se de uma esperança fundamentada na certeza de que
Cristo está sempre presente e operante na sua Igreja e na história da
humanidade.

Às vezes pode parecer, como no episódio evangélico da tempestade
acalmada (cf. Mc 4, 35-41; Lc 8, 22-25), que Cristo dorme e nos deixa à mercê
das vagas agitadas. Porém, sabemos que Ele está sempre pronto a intervir com o
seu amor todo-poderoso e salvífico. Ele continua a dizer”nos: “Tende coragem;
Eu venci o mundo” (Jo 16, 33).

Sustenta-nos em cada um das nossas fadigas a proximidade de
Maria, a Mãe que Cristo nos deu da Cruz, dizendo ao Apóstolo predileto:
“Mulher, eis aí o teu filho” (Jo 19, 26). A Ela, Regina Apostolorum, confiamos
as nossas Igrejas e vidas, abrindo”nos com fé à aventura e aos desafios do novo
Milênio.

(©L”Osservatore Romano ” 14 de Outubro de 2000)

“Não existe um século nem um povo ao qual Maria não tenha
feito sentir a sua presença” Alocução do Santo Padre no encerramento da
recitação do Rosário na Praça de São Pedro Acolhida filialmente pelo Santo
Padre, após a sua chegada ao Palácio Apostólico do Vaticano na tarde de
sexta-feira 6 de Outubro, a imagem de Nossa Senhora de Fátima foi levada para a
Capela particular do Sumo Pontífice. Na manhã de sábado, a imagem foi
transportada para a Basílica do Vaticano e, tendo sido exposta junto do Altar
da Confissão, ali recebeu a piedosa e filial homenagem da parte de milhares de
fiéis e peregrinos ao longo de toda esta jornada consagrada a Nossa Senhora do
Rosário. No final da tarde, a imagem da Virgem de Fátima foi levada
processionalmente para a Praça de São Pedro e, diante da Basílica do Vaticano,
presidiu ao grande ato da recitação do Rosário, com a participação de João
Paulo II juntamente com 1.400 Cardeais, Arcebispos e Bispos vindos a Roma para
o seu Jubileu, e milhares de fiéis e peregrinos que lotaram a Praça.

A contemplação de cada mistério glorioso foi feita por um
Bispo e um Cardeal, que leram respectivamente o trecho bíblico correspondente e
uma citação da Exortação Apostólica pós-sinodal. A recitação do “Pai-Nosso” e
das “Ave-Marias” dos quatro primeiros mistérios foi feita por alguns casais,
que antes tinham acendido uma vela votiva junto da imagem, em representação de
cada um dos cinco continentes. À Irmã Lúcia, juntamente com as suas Irmãs do
Carmelo de Coimbra (Portugal), coube a recitação do “Pai”Nosso” e das
“Ave-Marias” do último mistério contemplado, transmitida diretamente pela
televisão.

No final deste piedoso ato mariano, teve lugar a homenagem
floreal a Nossa Senhora, prestada por três jovens portugueses que, em trajes
típicos, queriam evocar os videntes da Cova da Iria. Após uma breve alocução do
Papa, a imagem da Virgem de Fátima foi levada em procissão até ao Carmelo
“Mater Ecclesiae”, situado no Vaticano, sob a aclamação da imensa multidão dos
romeiros e fiéis.

Eis a breve alocução do Santo Padre no final deste encontro
mariano:

1. No final deste intenso momento de oração mariana, desejo
dirigir a todos vós, caríssimos Irmãos no Episcopado, uma cordial saudação, que
faço extensiva de bom grado aos numerosos fiéis presentes esta tarde aqui, na
Praça de São Pedro, ou que se uniram a nós através da rádio e da televisão.

Congregados em Roma para o Jubileu dos Bispos, o primeiro sábado
do mês de Outubro não podia deixar de nos conduzir juntos a rezar aos pés da
Virgem, que o Povo de Deus venera neste dia com o título de Rainha do Santo
Rosário.

A nossa oração desta tarde situa-se de maneira particular à
luz da “mensagem de Fátima”, cujo conteúdo ajuda a nossa reflexão sobre a
história do século XX. A presença entre nós da venerada imagem da Virgem de
Fátima, que tive a alegria de receber de novo no Vaticano, rodeado solenemente
por numerosos Irmãos no Episcopado e por tantos sacerdotes, religiosos,
religiosas e fiéis, reunidos esta tarde nesta Praça, reforça esta perspectiva
espiritual

2. Meditamos sobre os “mistérios gloriosos”. Do Céu, aonde o
Senhor a elevou, Maria não deixa de orientar os nossos olhares para a glória de
Cristo Ressuscitado, no qual se revela a vitória de Deus e do seu desígnio de
amor sobre o mal e a morte. Nós Bispos, partícipes dos sofrimentos e da glória
de Cristo (cf. 1 Pd 5, 1), somos as primeiras testemunhas desta vitória,
fundamento de esperança certa para cada pessoa e para todo o gênero humano.
Jesus Cristo, o ressuscitado, enviou-nos a todo o mundo para anunciar o seu
Evangelho de salvação, e de Jerusalém, no decurso de vinte séculos, a mensagem
chegou aos cinco continentes. Esta tarde, a nossa oração reuniu espiritualmente
toda a família humana ao redor de Maria, Regina Mundi.

3. No contexto do Grande Jubileu do Ano 2000, quisemos
manifestar o reconhecimento da Igreja pela solicitude materna que Maria
demonstrou sempre aos seus filhos peregrinos no tempo. Não existe um século nem
um povo ao qual ela não tenha feito sentir a sua presença levando aos fiéis,
especialmente aos pequeninos e pobres, luz, esperança e conforto.

Confiantes na sua solicitude materna, amanhã, no final da
Concelebração eucarística, realizaremos colegialmente o nosso “Ato de
consagração” ao Coração Imaculado de Maria. Esta tarde, meditando juntos sobre
os mistérios gloriosos do Santo Rosário, prepara-mo-nos interiormente para este
gesto, assumindo a atitude dos Apóstolos no Cenáculo, reunidos com Maria em
oração unânime e concorde.

Para cada um de vós, queridos Irmãos, e para o vosso
ministério invoquei e invoco a especial intercessão da Mãe da Igreja.

Ela vos ajude sempre na tarefa difícil e entusiasmante de
levar o Evangelho a todos os recantos da terra, a fim de que cada homem, a
começar pelos pequeninos e pobres, receba a Boa Nova de Cristo Salvador.

(©L´Osservatore Romano,  14 de Outubro de 2000)

CATEQUESE Alocução da Audiência geral de quarta-feira, 11 de
Outubro

A Eucaristia é “sacrificium laudis”

1. “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai
omnipotente, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória”. Esta
proclamação de louvor trinitário conclui em toda a celebração eucarística a
oração do Cânon. Com efeito, a Eucaristia é o perfeito “sacrifício de louvor”,
a glorificação mais excelsa que da terra sobe ao céu, “fonte e centro de toda a
vida cristã, na qual (os filhos de Deus) oferecem (ao Pai) a vítima divina e a
si mesmos juntamente com ela” (LG, 11). No Novo Testamento, a Carta aos Hebreus
ensina-nos que a liturgia cristã é oferecida por um “Sumo Sacerdote, santo,
inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado acima dos Céus”, que se
realizou de uma vez para sempre um único sacrifício, “oferecendo”Se a Si mesmo”
(cf. Hb 7, 26″27). “Por meio d”Ele diz a Carta oferecemos, sem cessar, a Deus
um sacrifício de louvor” (ibid., 13, 15). Queremos hoje evocar brevemente os
dois temas do sacrifício e do louvor que se encontram na Eucaristia,
sacrificium laudis.

2. Na Eucaristia atualiza-se, antes de mais, o sacrifício de
Cristo. Jesus está realmente presente sob as espécies do pão e do vinho, como
Ele mesmo nos assegura: “Isto é o Meu corpo… Este é o Meu sangue” (Mt 26,
26.28). Mas o Cristo presente na Eucaristia é o Cristo já glorificado, que na
Sexta-Feira Santa Se ofereceu a Si mesmo na cruz. É o que sublinham as palavras
por Ele pronunciadas sobre o cálice do vinho: “Este é o Meu sangue, sangue da
Aliança, que vai ser derramado por muitos” (Mt 26, 28; cf. Mc 14, 24; Lc 22, 20).
Se estas palavras forem examinadas à luz da sua filigrana bíblica, afloram duas
referências significativas. A primeira é constituída pela locução “sangue
derramado” que, como afirma a linguagem bíblica (cf. Gn 9, 6), é sinônimo de
morte violenta. A segunda consiste na explicação “por muitos”, referente aos
destinatários deste sangue derramado. A alusão aqui remete-nos para um texto
fundamental com vista na releitura cristã das Escrituras, o quarto cântico de
Isaías: com o seu sacrifício, “ao entregar a sua vida à morte”, o Servo do
Senhor “tomava sobre si os pecados de muitos” (53, 12; cf. Hb 9, 28; 1 Pd 2,
24).

3. A
mesma dimensão sacrifical e redentora da Eucaristia é expressa na Última Ceia
pelas palavras de Jesus sobre o pão, tal como são referidas pela tradição de
Lucas e de Paulo: “Isto é o Meu corpo, que vai ser entregue por vós” (Lc 22,
19; cf. 1 Cor 11, 24). Também neste caso se verifica uma chamada à doação
sacrifical do Servo do Senhor, segundo a passagem de Isaías (53, 12), já
evocada: “Ele próprio entregou a sua vida à morte… tomou sobre si os pecados
de muitos e intercedeu pelos culpados”. “A Eucaristia é, acima de tudo, um
Sacrifício: sacrifício da Redenção e, ao mesmo tempo, da nova Aliança, como nós
acreditamos e as Igrejas do Oriente professam claramente: o sacrifício hodierno
afirmou, há alguns séculos a Igreja grega (no Sínodo Constantinopolitano de
1156-57, contra Sotérico) é como aquele que um dia ofereceu o Unigênito Verbo
Encarnado [de Deus]; e é (hoje como então) por Ele oferecido, sendo o mesmo e
único Sacrifício” (Carta Apostólica Dominicae cenae, 9).

4. A
Eucaristia, como sacrifício da nova Aliança, põe-se como desenvolvimento e
cumprimento da aliança celebrada no Sinai, quando Moisés derramou metade do
sangue das vítimas sacrificais sobre o altar, símbolo de Deus, e metade sobre a
assembleia dos filhos de Israel (cf. Êx 24, 5″8). Este “sangue da aliança” unia
intimamente Deus e o homem num vínculo de

solidariedade. Com a Eucaristia a intimidade torna-se total,
o abraço entre Deus e o homem atinge o seu ápice. É a realização completa
daquela “nova aliança” que Jeremias tinha predito (cf. 31, 31-34): um pacto no
espírito e no coração, que a Carta aos Hebreus exalta precisamente partindo do
oráculo do profeta, unindo-o ao sacrifício único e definitivo de Cristo (cf. Hb
10, 14″17).

5. A
esta altura, podemos ilustrar a outra afirmação: a Eucaristia é um sacrifício
de louvor. Essencialmente orientado para a comunhão plena entre Deus e o homem,
“o sacrifício eucarístico é a fonte e o centro de todo o culto da Igreja e de
toda a vida cristã. Neste sacrifício de ação de graças, de propiciação,
impetração e louvor os fiéis participam com maior plenitude, quando não só
oferecem ao Pai com todo o coração, em união com o sacerdote, a vítima sagrada
e, nela, a si mesmos, mas recebem também a própria vítima no sacramento”
(Sagrada Congregação para os Ritos, Eucharisticum mysterium, 3 e).

Como diz o próprio termo na sua gênesis grega, a Eucaristia
é “agradecimento”; nela o Filho de Deus une a Si a humanidade remida num
cântico de ação de graças e de louvor. Recordamos que a palavra hebraica toda,
traduzida como “louvor”, significa também “agradecimento”. O sacrifício de
louvor era um sacrifício de ação de graças (cf. Sl 50 [49], 14.23). Na Última
Ceia, para instituir a Eucaristia, Jesus deu graças a seu Pai (cf. Mt 26, 26″27
e paralelos); esta é a origem do nome deste sacramento.

6. “No Sacrifício eucarístico, toda a Criação amada por Deus
é apresentada ao Pai, através da Morte e Ressurreição de Cristo” (Catecismo da
Igreja Católica, n. 1359). Unindo-se ao sacrifício de Cristo, a Igreja na
Eucaristia dá voz ao louvor da inteira criação. A isto deve corresponder o
empenho de cada um dos fiéis em oferecer a sua existência, o seu “corpo” como
diz Paulo em “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12, 1), numa
comunhão plena com Cristo crucificado e ressuscitado por todos, e o discípulo é
chamado a doar-se inteiramente a Ele. Esta íntima comunhão de amor é decantada
pelo poeta francês Paul Claudel, que põe nos lábios de Cristo estas palavras:

“Vem comigo, onde Eu Estou, em ti mesmo, /e dar-te-ei a
chave da existência. / Lá onde Eu Estou, lá eternamente /está o segredo da tua
origem… / (…) Onde estão as tuas mãos, que não estejam as minhas? / E os
teus pés, que não estejam pregados na mesma cruz? / Morri e ressuscitei uma vez
por todas! Estamos muito próximos um do outro / (…) Como fazer para te
separar de Mim / sem que tu Me dilaceres o coração?” (La Messe là bas).

(©L´Osservatore Romano, 14 de Outubro de 2000)

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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