Clamor entre clamores

BELO HORIZONTE, sexta-feira, 10 de junho de 2011 (ZENIT.org) – O livro do Êxodo, no capítulo três, narra que Moisés, pastor de ovelhas, teve um encontro com Deus e no centro dessa experiência, Deus lhe diz que tinha visto a opressão do seu povo no Egito. Ouvira o grito de aflição diante dos opressores e tomou conhecimento dos seus sofrimentos. A escuta desses clamores configura o caminho e a relação entre Deus e seu povo. A fé é um diálogo que inclui a escuta de clamores. Um caminho novo é iniciado com a força dialogal, que nasce e se sustenta nos ecos dos clamores do povo no coração de Deus. Remete ao chão da realidade e alarga o horizonte dessa presença, que é fonte inesgotável de sentido e de referência.

O apóstolo Paulo escrevendo aos romanos (8,22-23) sublinha que “toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto; e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de nosso corpo”. Esse clamor revela a premência da esperança intrínseca à criação de ser libertada da corrupção. O Documento de Puebla, fruto da terceira conferência dos bispos latino-americanos, em 1979, faz referência ao clamor dos pobres, que pode ter parecido um clamor surdo, e que agora é crescente, impetuoso e, em alguns casos, ameaçador. Na verdade, há uma avalanche de clamores neste tempo de muitos avanços, envolvendo todos os aspectos da vida. Clamores que exigem mudança substancial e, até mesmo radical, de estilos de vida, para deter a onda de prejuízos que solapam a integridade da vida e emolduram de selvagerias o cotidiano. Isso, por falta da sensibilidade indispensável que permite ecoar na consciência os apelos de todos.

É comprometedora a incapacidade de escuta pela prática insipiente do diálogo, alavancada pela cultura da informação em detrimento da dinâmica da partilha, do intercâmbio e da compreensão dos valores como tesouro primeiro da vida em sociedade, em família e nas relações interpessoais. São incontáveis os clamores vindos dos cenários comprometidos pela exclusão social. Um absurdo nas circunstâncias de um tempo que já mudou tanto, perpetuando a vergonha de uma sociedade que retarda a solução de problemas que afligem os pobres, como habitação, trabalho e participação cidadã. Retardamento devido ao exercício equivocado do poder e marcado pela ganância que gera corrupção. Endemia que impede consertos urgentes nos funcionamentos públicos e governamentais, nos âmbitos da vida privada e em questões de interesse comum.

Há, no entanto, sinal evidente de um clamor, talvez ainda surdo, por uma vida pautada em valores éticos e sustentada pela moralidade que afiança o prosseguimento da vida na direção certa. Garantia de conquistas e rumos que permitam avanços na cultura da justiça, da paz e da solidariedade.

Merecem atenção especial os ecos que precisam soar no mais profundo da consciência cidadã, quando se considera o quanto é insuportável a presença de fichas-sujas – por exemplo, entre os servidores públicos – impulsionando avanços na direção de procedimentos legais que impeçam práticas que já corroeram o erário público, a honradez na vida pública, tocando outros âmbitos de extrema importância no conjunto da vida social e política. Trata-se, na verdade, de um percurso desafiador, com força de reconfiguração necessária e urgente de dinâmicas e funcionamentos, cuja alavanca está no despertar pela ética. O interesse pela ética não pode se resumir a uma bandeira cujo tremular apenas venta sobre temas importantes como responsabilidade social, honradez, respeito aos direitos e exercício do poder como serviço.

É preciso considerar o tesouro da ética como fenômeno. Basta pensar, no quadro dessa iluminação, a diferença e a incidência quando se assume determinado princípio ético, por formação e com profunda convicção, a diferença que faz com consequências determinantes. Um princípio ético, ou o oposto, tem influências determinantes no andamento e no horizonte da sociedade e de suas instituições. É diferente, quando a vida é marcada pelo altruísmo em contraposição ao egoísmo. Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, quando aborda o fim que a política deve perseguir e qual o sumo bem na ação, aponta o quanto é urgente e indispensável incluir na prática diária e na condução da vida social, educativa e cultural, o zelo pela permanente procura e descoberta em que consiste exatamente o bem. Esse é um longo caminho com complexidades variadas, insubstituível como garantia para que a vida não seja só um dia após o outro, mas uma construção com base na verdade e no amor.

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Por Dom Walmor Oliveira de Azevedo
arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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