Ceguicidade-Tronco

O
uso ou não de células-tronco embrionárias para quaisquer fins envolve
muitos aspectos e variadas questões. As partes opostas convergem no
objetivo do atendimento terapêutico de pessoas que sofrem diversos tipos
de enfermidades. A divergência fundamental se encontra no meio para  o
fim a que se propõem.

1.
O grupo que defende o uso dos humanos em fase embrionária está
convencido, aparentemente, de que o ente que principia, até determinada
fase, não é um ser humano. Sendo, não poderia, então, ser utilizado como
material para fins terapêuticos.  O princípio onto-antropo-axiológico
permanece, portanto, referência essencial para o procedimento técnico: o
ser humano  não pode ser meio para algum fim em nenhuma situação.

2. 
A maior dificuldade se encontra no convencimento de que um minúsculo
ente não se reduz ao que aparenta ser,  mesmo que ampliado muitíssimas
vezes por instrumentos tecnológicos. O problema gnosiológico é a questão
inicial. A razão humana é capaz de conhecer além das aparências? A
realidade se restringe ao sensível? A questão vem de longe. Depara-se,
em nossos tempos,  com uma nova expressão do ceticismo dos antigos
sofistas e das idéias nominalistas iniciadas  no século XIII. A teoria
da representação, como termo do conhecimento, resulta em uma progressiva
perda de contato com a realidade. Kant, por sua vez, expressará a tese
nominalista pela redução do conhecimento  ao fenômeno das coisas e não a
coisa em si.  Heidegger, ao abordar a questão do ser com a linguagem
unívoca, e não com a analógica, contribui para o enclausuramento da
razão na imanência do ens commune.  O positivismo de diversos matizes
resultará no cientificismo. Cientistas e técnicos presumem poderem
responder às questões fundamentais de sentido da existência  e 
extrapolam sua competência,   predominantemente poiética,   para o
teórico e ético. É o fenômeno antigo do ceticismo de diversas ordens que
leva a um perigoso retrocesso de civilização, inclusive da verdadeira
democracia.

3.
A  noética reducionista, portanto, contribui, poderosamente, para a
ceguidade-tronco cujo um dos galhos é o não-convencimento de que, desde a
fecundação do óvulo pelo espermatozóide, procria-se uma original e
irrepetível pessoa humana. A razão do ser humano,  pessoal e
culturalmente ofuscada e mutilada, em seu exercício pleno, encontra-se
anêmica para transcender os limites do empírico para chegar à fundação
ontológica que ilumina a identidade não só da vida humana em seus
primeiros instantes, mas, inclusive, de suas fases posteriores, o que é
demonstrado  pelos diversos tipos de injustiças e violências sofridas
pela pessoa humana, em nossos dias.

4.
Outro galho da ceguidade-tronco é embaralhar, pura e simplesmente,  uma
questão inicialmente de natureza ética com a religião. Parece ser, por
vezes,  mais uma estratégia que teria duplo objetivo: denegrir a
religião, particularmente a católica, e conquistar a aprovação da
opinião pública para a tese da utilização dos embriões. Manifesta-se,
entretanto, a ignorância do  significado e valor da religião em si e
para a humanidade, outra conseqüência do equívoco nóetico reducionista
que leva a pensar, e não a conhecer, que ou se prova ou se crê.
Exclui-se, a partir de um preconceito, que a razão não tem poder de
conhecer a  realidade em si, transpondo os limites dos fenômenos que,
por sua vez, já manifestam a própria realidade negada em seus
fundamentos.

5. 
A luz aí se encontra. Sem perder a esperança de que é possível a
ceguidade ser superada, questiona-se: a) por que há uma espécie de
surdez sobre as possibilidades terapêuticas, algumas já confirmadas, das
células adultas? b) Por que os resultados, em dez anos de pesquisa, com
as células embrionárias resultaram nulos, quando não em tumores
cancerígenos? c) Por que insistir que a pesquisa com células
embrionárias é necessária para o avanço do conhecimento e terapia
objetivadas (o discurso manipulador das promessas curativas das células
embrionárias está mudando), se a mesma pesquisa pode ser feita com
células de animais? d) Por que se rejeitam outras fontes das células
embrionárias? Como explicar que o próprio descobridor das células
embrionárias está migrando para as adultas? e) Por que o discurso do
grupo que defende o uso dos embriões se restringe à defesa dos enfermos e
não, também, da pessoa atual e adulto potencial que é o embrião,
enquanto os defensores dos seres humanos, em sua fase embrionária,
incluem os enfermos na mesma defesa e dignidade?  f) O fim justifica o
meio? Também na política (capitalismo e coletivismo),  na ética
(utilitarismo e hedonismo)? Nos meios de comunicação (propaganda
enganosa)? O que a história nos ensina? g) A justificação da destruição
de seres pessoais, no início de sua vida, abre caminho para obscurecer a
consciência frente a outros tipos ataque à vida e dignidade humanas
como o abortamento, a eutanásia, a pedofilia, as injustiças, a ética na
vida pública, o levar vantagem em tudo?  Não são todos galhos do mesmo
tronco?

6. 
Um dos argumentos biológicos da existência do cérebro para se definir o
humano implica em duas questões: a) confusão entre quantia e
identidade, própria do reducionismo cientifico – tecnicista
predominante. Uma pessoa com alguma deficiência  é menos humana ou
infra-humana? Os eugenistas, herdeiros de bárbaros próximos e distantes
pensam, mas, não conhecem, que sim. b) O que os sentidos não constatam e
o que não pode ser medido não existem (o amor dos pais pelos filhos, a
solidariedade são, portanto, fantasias).

7.
Questão: se o blastócito e, pouco depois,  as células embrionárias, não
possuem todo o corpo humano  em potência, como explicar que elas são
suficientemente potentes para originar qualquer tecido do mesmo corpo
humano? O que é acrescentado à sua estrutura, de fora, na sua evolução
em direção às fases seguintes?  O Dr. Jerôme Lejeune, descobridor da
causa da síndrome de Daw, é lapidar quando afirma que, se o zigoto não é
um ser humano, nunca o será.

8. 
O paralelo entre a morte encefálica e o não-surgimento da pessoa humana
pela pressuposta ausência do suporte neural é improcedente. O equívoco
deste argumento, mais uma vez, encontra-se no reducionismo noético que
pressupõe determinada   quantia para mais  determinante da identidade.
Toda a realidade somática da pessoa já se encontra inscrita no seu DNA
e, como o elemento ôntico espiritual não ocupa espaço, ele encontra o
suporte biológico de que necessita para a união substancial  que
origina  uma nova pessoa humana.

9.
Outro argumento se assenta na confusão entre  a pessoa em fase
embrionária, em si, e as condições uterinas ou não para o seu normal
desenvolvimento. A inseminação extra-útero é, por si, já a dupla negação
do direito do novo ser humano à forma de procriação típica da espécie e
ao ambiente adequado para o seu crescimento. O ninho  lhe é subtraído e
não, entretanto,  a sua identidade e dignidade.  O útero não é
determinante para a sua personalidade ôntica própria da pessoa humana.
Esta identidade, entretanto, possui, na sua estrutura ôntica,   os
direitos ao modo humano de vir à existência e ao acolhimento físico,
afetivo e moral  da mãe para que se processe a natural e sadia evolução
do novo ser humano.

10.
O direito ao acompanhamento pré-natal permite deduzir que o legislador
reconhece que existem dois sujeitos de direito, filho ou filha e a mãe,
cuja saúde é um valor a ser protegido e preservado.

11.
Os que pensam ser a mãe a causa  do embrião, afirmando-se uma
dependência que leva à indistinção entre o novo indivíduo
biológico-pessoa e a realidade materna,  minimizando-se e, mesmo,
negando-se o papel do pai, confundem condição e causa.  Certas
comparações demonstram, inclusive, que não se distinguem órgão e
organismo. A condição uterina para o desenvolvimento do embrião só
confirma que o que se desenvolve possui, intrinsecamente, a qualidade de
desenvolvível como ser pessoal e não outro.

12.
Dado o fato, o que fazer com os seres humanos embrionários já
congelados? A sua destinação, conforme a identidade e dignidade da
pessoa humana, deve seguir um dos caminhos, em ordem humana e axiológica
decrescente:  a) pai e mãe assumam a própria responsabilidade e, se
possível,  a mãe acolha, em seu útero, ou seu filho ou filha;  b)
doação; c) a gestação se realize em útero artificial, quando
tecnicamente possível (triste mundo novo, progressista e eticamente
retrógrado); d) interditadas as anteriores,  permitir que o processo
natural do falecimento, se ainda não houve, ocorra e se proceda, então, 
conforme o costume  do ser humano com os corpos de seus mortos.

13.
A última opção, supra,  ainda é preferível à ação sacrifical da pessoa
humana no altar  do Prometeu-poiético  que pode até  afirmar uma ética
dos fins, mas  violenta  a ética dos meios, na louvação de um
utilitarismo predominante  que entende o ser humano como coisa e produto
mercadológico, apesar dos discursos humanitaristas, porém, destoantes
de um verdadeiro humanismo que conheça a diferença entre pessoa e
indivíduo.

14.
A ceguicidade-tronco, em toda a história,  originou os galhos dos
totalitarismos e ditaduras de diversas naturezas, os diversos tipos de
violência social, individual, as injustiças mais cruéis, a destruição de
vidas inocentes, as presunções e ilusões de paraísos (o homem
contemporâneo quer ser imortal, nos limites deste mundo, no dizer de
Chesterton). A ceguidade-tronco atual está resultando nos galhos do
consumismo, da idolatria do prazer (tráfico e comércio das drogas são
exemplos), do poder,  na manipulação das consciências femininas e
masculinas, na degeneração ecológica, na inconsciência da hierarquia
onto-axiológica da realidade (nivelamento entre botânica, zoologia e
antropologia). Desliza-se do antropocentrismo ao cosmocentrismo. O que
se entende por progresso é, na verdade, o retrocesso  da consciência do
humano que é confundido  com o meritório avanço da ciência e da técnica,
verdadeiros valores que, se nas mãos de políticos e profissionais sem a
devida e competente formação ética (fundada em uma antropologia
integral),  transformam-se em armas letais para o ser humano a que estão
destinados a servir.

15.   
O ser humano não possui o poder de ser o criador e o organizador da
estrutura ontológica da realidade. O positivismo jurídico já demonstrou a
que veio, na medida em que tutelou a eugenia, o racismo e outras formas
de negação da identidade e dignidade do ser humano. A confecção e a
aplicação das leis exigem, além do ser humano técnico, o sábio e,
portanto,  capaz de conhecer a realidade além de sua aparência  e
transcender a imanência. A proteção do verdadeiro bem pessoal e comum
não pode ficar nos limites de pessoas que galgam postos públicos e
privados ou de quaisquer outras que, a partir de um convencionalismo
insustentável, pretendem assumir o lugar que não lhe foi reservado à sua
condição criatural.

16. 
É insubsistente querer que a personalidade ôntica dependa, em seu
direito à vida, em seu valor e dignidade, da personalidade jurídica.
Pretende-se inverter a ordem devida a partir de um a priori
nominalista-idealista pelo qual se procura criar uma nova realidade e
não reconhecê-la. Nega-se o ser em nome do conhecer e do poiético.
Rejeitado o ser, desliza-se, inevitavelmente, para a perda de sentido e
conseqüentes equívocos, inclusive de ordem jurídica.

17.
O Ocidente teve, em sua história, a mancha da escravidão. A consciência
axiológica da maioria, naquele período, não alcançava a gravidade moral
da instrumentalização escravagista. Foi um verdadeiro avanço da
civilização a condenação da escravatura de quaisquer naturezas. Os seres
humanos ocidentais, entretanto, manifestam a existência de outras
sombras, na sua consciência axiológica, entre elas,  o não
reconhecimento da identidade  e dignidade da pessoa humana do início ao 
fim de sua vida, neste mundo.

18Haverá
outros poderosos interesses, não confessáveis, ofuscando e movendo as
consciências? Existe, no pretérito, no presente e no futuro, a
vulnerabilidade axiológica de quem se presta a servir o sistema em
vigor, buscando as próprias vantagens, mesmo que venda a própria alma. A
pessoa, cuja consciência valorativa é incompetente para valorar a
realidade do semelhante,  sofre, também, a perda da percepção do próprio
valor. Vende-se à maior oferta, apesar dos discursos para fins de
imagem pública. Se este é um fenômeno de muitos na política, porque não
daqueles comprometidos em  direção oposta à defesa da vida de todos os
seres humanos, em qualquer período de sua existência, neste mundo?
Haverá, certamente, pessoas de boa vontade que, apesar de equivocadas,
estejam sinceramente comprometidas com o objetivo que professam.

19.
As pessoas da mídia que, com razão, rejeitam, veementemente, a censura
não estão, por sua vez, censurando, sonegando e distorcendo informações,
manipulando esperanças e discriminando pessoas cujas convicções
conflitam com as idéias e interesses dos proprietários das empresas de
comunicação?

 A
consciência dos próprios limites criaturais e, ao mesmo tempo, de suas
possibilidades da verdadeira autotranscendência, é uma exigência
fundamental para o verdadeiro avanço em direção à realização pessoal e
comunitária, local e global.

A
ceguicidade-tronco, aparentemente invencível para alguns,  não seria,
por outro lado,  a consequência, presente nas profundezas da coração
humano, de outro fato que poderia ser denominado de queda-raiz?



Prof. Dr. Paulo Cesar da Silva
Doutor
e mestre em filosofia, graduado em Letras, Filosofia e Teologia,
professor no Mestrado em Direito e na graduação do UNISAL, coordenador
do Grupo de Pesquisa de Bioética e Biodireito do programa do Mestrado em
Direito do UNISAL,  autor dos livros A antropologia personalista de
Karol Wojtyla, A ética personalista de Karol Wojtyla, Ocultismo e
Cristianismo, co-autor com sua esposa, Vilma Aparecida Tirelli da
Silva,  de Combatendo no Espírito,  O Direito e a ética (vários),
Biodireito, ética e cidadania (vários), co-org. e autor de Questões
atuais de direito, ética e ecologia (vários) e autor de artigos para
revista.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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