Casamento meramente civil para católicos?

Um periódico de grande circulação entre casais afirma que até o século XI os cristãos só se casavam no cartório ou no civil. Esta afirmação desfigura a história e contém flagrante anacronismo, como se depreende da leitura das páginas subsequentes.

A Carta Mensal das Equipes de Nossa Senhora, nº 376, outubro 2002 traz os seguintes dizeres:

“Os primeiros cristãos casavam-se apenas no civil. Não necessitavam ir ao templo para contrair núpcias. Submetiam-se apenas ao que prescrevia a legislação vigente do Império Romano.

No século IV, o cristão, para as núpcias, precisava da autorização do bispo. Não se discutia se devia usar este ou aquele rito litúrgico porque as núpcias continuavam sendo realizadas no cartório.

Passou-se todo um milênio depois de Cristo para os cristãos darem início a um debate com o fato de saber, como dizemos até hoje, se o casamento religioso era necessário ou basta o civil” (p. 32).

Este texto merece comentários.

Casamento civil?

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Quem lê os dizeres atrás citados, pode colher a impressão de que nos primeiros séculos os cristãos iam ao cartório para se casar, como hoje fazem muitos cidadãos interessados em casamento leigo, não religioso. Ora tal noção é anacrônica; transfere para o passado costumes e realidades atuais sem perceber que não cabem em tal contexto antigo.

Com efeito; até o século XVI três momentos sempre foram considerados sagrados, porque referentes à vida, que é própria de Deus: o nascer, o morrer e o casar-se. Somente com Lutero e os reformadores protestantes do século XVI foi dessacralizado ou secularizado o casamento; Lutero o tinha como uma necessidade natural comparável ao comer e ao beber, regida tão somente por leis humanas; seria assunto de ordem meramente civil ou ein weltlich Ding. Calvino censurava a doutrina católica respectiva como sendo “alucinação de crassa ignorância”.

Por conseguinte é despropositado dizer que os primeiros cristãos se casavam no cartório. Veremos, a seguir, como procediam.

Percorrendo a história (…)

Distinguiremos três fases.

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Do século I ao século IV

Não há notícias de uma específica Liturgia do matrimônio entre os cristãos dos três primeiros séculos. Diz a Epístola a Diogneto no século III: “Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pela sua pátria nem pelo seu idioma nem pelos seus costumes; casam-se como todos os outros” (nºs. 5,6). Isto quer dizer que adotavam os símbolos e ritos existentes na cultura greco-romana, excetuando apenas os que tivessem características pagãs (sacrifícios aos deuses das famílias, licenciosidade no cortejo nupcial). Por conseguinte, o rito se celebrava em casa de família, sob a presidência do chefe da casa, que, entre outras coisas, unia entre si as mãos dos dois nubentes. Dentro desse ritual os cristãos colocavam, sem dúvida, uma mentalidade nova; tinha, presentes “as leis extraordinárias e realmente paradoxais da sua sociedade espiritual” (Carta A Diogneto 5,4); davam particular importância à procriação e à educação dos filhos (ib. 5,6).

Considerando atentamente os textos dos escritores dos primeiros séculos, verifica-se que têm o matrimônio na conta de algo de sagrado, embora não tenha rito próprio. Assim Santo Inácio de Antioquia (+107) dá testemunho de que o matrimônio era celebrado com a autorização do Bispo – o que bem se entende já que os cristãos viviam em meio a uma sociedade pagã.

“Convém que os noivos e as noivas celebrem seu casamento de acordo com o Bispo para que sejam núpcias segundo o Senhor e não segundo a cupidez da carne. Tudo seja feito para a honra de Deus” (A. Policarpo 5,2).

No século III Tertuliano (+220 aproximadamente) refere os costumes vigentes na Igreja e acrescenta:

“Quem será capaz de explanar a felicidade daquele matrimônio que a Igreja acompanha, a oblação confirma, a bênção assinala, os anjos anunciam e o Pai confirma?” (Ad Uxorem 2,9).

Os dois textos citados dão a ver que o casamento era celebrado com a presença e a tutela da Igreja associado à oblação eucarística com a bênção do sacerdote

No século IV uma obra citada por S. Ambrósio (+397) explicita:

“Os sacerdotes consagram o início da vida conjugal e o associam aos mistérios (à Eucaristia)” (Praedestinatus, ver S. Ambrósio, epístola 10, 7 PL 16, 98).

Do século IV ao século XV

Nestes séculos foi-se delineando progressivamente a Liturgia do sacramento do matrimônio.

Já no século IV começa a aparecer o costume de impor um véu à noiva, à qual um sacerdote dá uma bênção especial. O véu era um sinal de honra (por isto não o recebiam as mulheres de vida escandalosa); deriva-se da norma de São Paulo, que diz que a mulher deve ter a cabeça coberta na Igreja (1Cor 11,2-5). O véu também era imposto à virgens que se consagravam a Cristo, pois estas contraiam união nupcial com o Senhor; tanto as virgens como as mulheres casadas tendiam à plena união com Cristo, aquelas diretamente, estas mediante o marido (cf. Ef 5,25-32).

A imposição do véu era associada também ao mútuo consentimento dos nubentes. O Direito Romano julgava que este era o constitutivo essencial do matrimônio. Os cristãos adotaram este princípio: o sacramento do matrimônio tem a índole de um contrato travado entre duas pessoas livres e devidamente preparadas, contrato que a Igreja abençoa. A partir do século IX, foi-se firmando sempre mais em documentos escritos a consciência de que o consentimento matrimonial é a parte essencial do rito; assim o Papa Nicolau I, aos 13/11/866, declarava que o consentimento é suficiente para que haja matrimônio, podendo os demais ritos (entrega do anel, cortejo nupcial, imposição do véu…) faltar, sem afetar a validade do casamento. Nos séculos IX e seguintes, a Igreja foi-se interessando cada vez mais por definir as condições para a validade do contrato matrimonial; exigiu que se realizasse em presença e com a bênção do sacerdote, não mais em casa de família, mas diante das portas da Igreja; esta exigência tencionava dar ao matrimônio um caráter público, pois é um ato que interessa a toda a sociedade. Depois do contrato celebrado ante valvas ecclesiae ou in facie ecclesiae (diante da Igreja), os nubentes entravam no templo onde se celebrava a S. Missa e se dava a bênção à esposa.

A entrega do anel (aliança) era um símbolo da fidelidade conjugal. São Isidoro de Sevilha (+636) explica que deve ser colocado no quarto dedo da mão esquerda, porque neste há uma veia que vai diretamente ao coração.

Na França e nos países celtas (ilhas Britânicas), estava em uso a bênção do tálamo ou do leito conjugal. A origem deste rito está, em parte, no livro de Tobias, onde se diz que Tobias e Sara elevaram uma bela oração a Deus logo depois que se viram na câmara nupcial (cf. Tb 8, 4-10). É possível que também os apócrifos Atos de São Tomé Apóstolo tenham exercido certa influência sobre o surto deste rito entre os cristãos: aí se lê que o Apóstolo Tomé entrou com o rei de Andrópolis na câmara nupcial da filha do monarca e abençoou o jovem casal que se aproximava.

Os cristãos conheciam também a cerimônia do noivado ou da promessa de casamento, já existente em povos pré-cristãos (Maria SS. estava prometida em casamento a José, quando o anjo lhe anunciou que conceberia o Filho de Deus; ainda não coabitavam; cf. Lc 1, 26-38; Mt 1, 18-25). No cemitério do Commodilla, por exemplo, em Roma encontrou-se uma inscrição funerária cristã datada de 390; comemora uma mulher falecida com 25 anos de idade, dos quais passou sete como noiva (sponsa= prometida) e viveu sete anos e oito meses em matrimônio; disto se conclui que se tornou noiva com onze anos de idade.

Do século XVI a 1969

No século XVI o Concílio de Trento definiu com precisão o ritual e a legislação do matrimônio. O decreto Tametsi de 1563 teve em vista os matrimônios clandestinos ou contraídos em foro meramente particular, dos quais se originavam sérios abusos; por isto determinou que o consentimento matrimonial deveria ser expresso em presença do pároco (ou de sacerdote delegado por este ou pelo Bispo) e de duas ou três testemunhas, sob pena de serem nulos os casamentos realizados fora desta norma. Em 1614 o novo Ritual do Matrimônio reforçava esta disposição do Concílio de Trento: o matrimônio deveria ser celebrado não diante das portas da Igreja, mas dentro desta.

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A cerimônia era muito simples: os nubentes exprimiam o seu consentimento mútuo (às vezes, respondendo Sim às interrogações do sacerdote). Depois davam-se as mãos; o celebrante dizia a fórmula “Eu vos uno em matrimônio…” e aspergia as mãos dadas; benzia a aliança que o nubente colocava no dedo da esposa; diziam-se um salmo e uma oração de encerramento. A seguir, poderia haver a Santa Missa.

Este Ritual ficou em uso até 1969, quando entrou em vigor o rito revisto por ordem do Concílio do Vaticano II.

Conclusão

As considerações propostas evidenciam que a novidade, no decorrer da história, não foi o casamento religioso (que teria sobrevindo aí matrimônio meramente civil), mas dá-se precisamente o contrário: a novidade é o conceito de matrimônio dessacralizado ou secularizado, que aflorou com Lutero e Calvino e se generalizou no Ocidente a partir da Revolução Francesa de 1789, dando origem ao ritual do casamento meramente civil.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 497 – Ano: 2003 – p. 493

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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