Carta sobre o Celibato – Parte 1

Prólogo

A experiência nos mostra
que, geralmente falando, somente prestam à Igreja grande bem aqueles que
professam a perfeita castidade: os sacerdotes e as religiosas, as jovens que
ingressam nas Sagradas Congregações, os santos leigos que se põem ao trabalho
da promoção das boas obras.

De maneira que farão bem os
confessores que são imbuídos pelo zelo da religião em usar de sua diligência
para ensinar aos jovens de ambos os sexos que cultivam a piedade e levam com
docilidade uma vida fiel aos mandamentos divinos quão grande bem é a perfeita
castidade. Exortem-nos à observância da castidade perfeita, se a tanto os virem
inclinados, pois alcançarão mais facilmente a perfeição cristã e servirão com
maior fruto ao bem da religião.

Isto porém os confessores
não conseguirão realizar a não ser que, depostos por completo todos os
preconceitos que o vulgo tem contra esta virtude, contemplarem o zelo que os
Santos Padres da Igreja usaram para promoverem a perfeita castidade, a tal
ponto que praticamente todos escreveram livros a este respeito; e, ademais, a
não ser que também estes mesmos confessores busquem eles próprios esta virtude
com grande amor, e se esforcem por levar uma vida inteiramente angélica.

A carne gera a carne; o
espírito, espírito; os anjos não se procriam senão a partir dos anjos.

Ora, por ser isto coisa de
imensa importância para a glória de Deus e para a santificação das almas; e
porque também por parte de alguns confessores existem preconceitos danosíssimos
nesta matéria, quero reproduzir aqui uma carta que publiquei em outra ocasião
sobre o celibato.

A CARTA SOBRE O CELIBATO

Meu prezado amigo,

Admiro-me ter ouvido de tua
própria pessoa que te consideras apóstolo da mais bela, da mais esplêndida
entre as virtudes cristãs, que é a santa virgindade, e, em geral, a perfeita
castidade, embora dizes também ter boas razões para dizer que talvez seria
melhor deixar que cada um a abrace ou não, como mais lhe agradar, especialmente
nos tempos de hoje pouco propícios, ou melhor, inimigos de tudo quanto é bom e
de todo objetivo sagrado.

Quero confessar-te a
verdade, e dizer-te que estou bastante surpreso, porque esta tua duplicidade, e
ainda mais, toda a argumentação que usas para justificá-la mais parecem em
dissonância com o teu costumeiro bom senso.

Mas é, por outro lado, este
bom senso que me dá a esperança de, com apenas esta pequena carta, poder
endireitar certas idéias que, perdoa-me, estão um tanto quanto tortas.

Que a virgindade e o
celibato são virtudes muito louváveis e que devem ser preferidas ao matrimônio,
tu o sabes, é uma verdade da qual nenhum católico pode duvidar, tendo definido
o Concílio de Trento:

“Se alguém disser que o
estado conjugal deve antepor-se ao estado de virgindade ou de celibato, ou não
ser coisa melhor e mais feliz permanecer na virgindade ou no celibato que
unir-se em matrimônio, seja excomungado”.

Devemos, portanto, como
católicos, concordar todos em reconhecer este dogma de fé, e crer nele como em
todos os outros que nos ensina a Igreja.

Semelhantemente, não há
dúvidas quanto ao fato de que a perfeita castidade é um conselho evangélico
colocado em prática por uma infinidade de santos que pelas suas virtudes
heróicas mereceram as honras dos altares;enquanto que não saberíamos dizer,
tirando o caso dos mártires, quais fossem os santos canonizados que não
cultivaram esta virtude no estado virginal ou de viúvos.

A este respeito e a respeito
de todas as outras coisas que poderiam ser ditas em louvor da perfeita
castidade não é necessário que nos detenhamos, pois nisto estamos em perfeito
acordo. A questão está em ver se é oportuno aconselhar aos outros,
especialmente à juventude, o estado de continência. Tu achas que é melhor
deixar que cada um siga a própria inclinação, e isto por diversas razões que
julgas boas. Ora, haverei de comentar estas razões mais tarde; vejas agora se
eu sei provar- te, como se diria, a priori, que te colocas mal.

Se este conselho não deve
ser dado, por que é dado pelo Santo Evangelho? E por que São Paulo o dava assim
tão geralmente que, se a coisa fosse possível, teria desejado que este conselho
fosse aceito por todos os cristãos:

“Quero, de fato” –
diz São Paulo – “que todos vós sejais como eu”? (ICor. 7, 7).

“Todos vós”,
“todos vós”, gostaria que fôsseis continentes, como eu o sou,
“todos vós”, cristãos de Corinto: e estes, ademais, não se
diferenciavam dos cristãos de todo o mundo.

E por que promovia a prática
da perfeita castidade com tanto ardor a ponto de ser esta, senão a causa, pelo
menos a concausa de seu martírio, como se lê na história da Igreja?

E por que os sucessores
imediatos dos Santos Apóstolos, e depois, todos os Padres e Doutores da Igreja
foram tão fervorosos pregadores deste assunto e todos os principais dentre eles
escreveram livros inteiros para exortar os fiéis a abraçarem tão exímia virtude?
Vejas São Cipriano, São Gregório Nazianzeno, Santo Atanásio, São João
Crisóstomo, Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho; poderias desejar
mais ardentes e mais valorosos exortadores para inflamar o povo cristão ao amor
desta virtude? E no entanto viviam em tempos em que se poderiam ser ditas
supérfluas tais exortações porque, como podes ver na história, esta virtude era
para os fiéis um verdadeiro entusiasmo. De fato, quando lês que apenas na
Oxorinca, cidade não das maiores do Egito, havia vinte mil virgens e dez mil
monges, pode-se conjecturar que número haveria em todo o mundo cristão de
cultores da vida casta. Não obstante isso os Santos Padres não julgavam coisa
inoportuna que com as suas pregações e com os seus livros aumentassem mais
ainda aquele ardor sagrado que hoje em dia nos parece já excessivo por si
mesmo.

Ora, portanto, acreditava o
divino autor do Envangelho, acreditava São Paulo, os homens apostólicos
acreditavam, os padres e os doutores da Igreja acreditavam que a perfeita
castidade fosse algo para ser aconselhado assim calorosamente; e tu,
entretanto, meu prezado amigo, julgas em tua perícia que mais se deve crer que
a melhor coisa é não dar palavra a respeito, nem dar este santo conselho a
ninguém?

Paraste para refletir sobre
a guerra que a esta virtude fazem as pessoas do mundo? Não há mal que dela não
digam, e que, além disso, publiquem por escrito. E poderá ser jamais um bem
que, enquanto a virtude mais bela e mais esplêndida é assim tão geralmente e
impunemente caluniada, e enquanto se fomenta contra a mesma a aversão e o
desprezo, aqueles que a conhecem e lhe conhecem os seus predicados divinos e a
injustiça das imputações que lhe são feitas fiquem em silêncio, nem sequer uma
voz se levante em sua defesa e cada um se guarda de comentar-lhe o esplendor e
o mérito e de aconselhar a sua prática à juventude? Parece-te isto uma boa
prudência? Ou podes ainda duvidar do teu engano?

Vamos agora comentar as
razões que consideras boas, as quais, entretanto, por estarem em oposição a uma
verdade manifesta, não podem ser elas mesmas senão más, isto é, sofísticas e
falsas.

Tu sublinhas com muita
ênfase a dificuldade de conservar perseverantemente esta virtude. Parece que se
deveria dizer que és do número daqueles que julgam a continência uma virtude
reservada a poucas almas privilegiadas, fora das quais nenhuma pessoa pode
aspirar a ela sem culpa de presunção, e sem manifesto perigo de ruína.

Mas eu devo observar ser
isto uma fina arte do demônio, da qual, cada vez que lhe convém, o mundo se
serve. Não sabendo nem sequer o demônio como esconder os predicados
sobrehumanos da santa castidade, faz parecê-la aos homens uma virtude tão alta
e que tanto excede as forças da fraqueza humana que a ela não podem aspirar
senão os incautos e os presunçosos; e também o mundo, seu inimigo jurado, com a
mesma boa fé do demônio, à sua semelhança, se mostra às vezes admirado com a
sublimidade desta virtude, desde que, todavia, fiquem os homens dissuadidos de
abraçá-la. Nada importa ao demônio e nada importa ao mundo que os cristãos
tenham em abstrato grande estima da continência, como o tinham os gentios que
diziam maravilhas das Vestais, assim como dos cristãos, desde que esta virtude
fosse proibida na prática, como de fato era proibida por lei no mundo antigo.

E é verdadeiramente uma
surpresa ver homens inteligentes, como tu também és, com a alma tão presa a
este preconceito como a uma dificuldade quase insuperável, que falam da vida
cristã como de um dom de Deus que devesse ser comparado em pé de igualdade, ou
pouco menos, com o dom de falar em línguas desconhecidas e de dar vista aos
cegos de nascença.

Vejamos se nos entendemos,
meu prezado amigo: se a ti parece dificílima a prática da castidade perfeita
para a fraqueza humana abandonada a si mesma, estamos de perfeito acordo, e se
tu dizes ser dificílima, eu acrescento que é impossível. Mas aqui não estamos
falando do poder que tenha a fraqueza humana deixada a si própria; estamos
falando do poder que tem sobre ela a graça onipotente de Deus. Ora, vejas que
coisa totalmente diferente: tu aceitarias se eu te dissesse que a graça
onipotente de Deus torna fácil à fraqueza humana aquilo que sem ela seria
dificílimo e impossível? Pois bem, não apenas eu, mas tu também comigo, junto
com todos os demais católicos, dizemos que uma vida perfeitamente casta não
pode senão ruir sem a ajuda daquela graça, que Deus dá abundantemente a quem a
pede, e vive com as cautelas necessárias para conservá-la.

Superada a dificuldade da
fraqueza humana, eu te rogo que observes se são poucos e raros no mundo aqueles
que de fato são obrigados a viver em perfeita continência. Tu talvez dirás que
esta é uma virtude livre, que ninguém é obrigado a praticá-la, exceto aqueles
que, por terem feito um voto especial de castidade, ou por uma lei
eclesiástica, à qual se submeteram voluntariamente, tenham renunciado ao estado
de matrimônio; e, enquanto permaneceres no domínio do abstrato, dizes
otimamente. Mas se desces ao terreno da realidade dizes muito mal. Duvidas?
Então, anuncia a todos os jovens que completarem seus quatorze anos, e a todas
as jovens que completarem os doze, que todos eles estão livres para se casarem.
Não os farias rir? Os jovens deverão esperar, geralmente falando, os vinte e
cinco anos, muitos os trinta e mesmo mais; as jovens os dezoito, os vinte,
etc.. E anuncia também que estão livres para se casarem todas as centenas de
milhares que estão no serviço militar, todos os deformes e enfermos, todos os
desempregados incapazes de ganhar um pedaço de pão para matarem a fome, todas
as moças deformadas, doentes, sem nenhuma habilidade útil, sem um tostão de
dote. Diga a todos estes que estão livres para se casarem. Muitos irão rir como
os jovens, e não poucos se mostrarão como que ofendidos por um insulto ou
desprezo. No campo da abstração são todas pessoas que podem se casar; mas no
terreno da realidade são todas pessoas que devem observar continência perfeita,
e nada menos que sob pena de pecado mortal; porque não tendo eles possibilidade
ou ocasião de matrimônio, devem permanecer no estado de celibato e violando a
castidade mesmo que apenas com o pensamento cometeriam uma culpa grave, como
nos ensina a moral cristã mais elementar.

Terias curiosidade de saber
quantas sejam na Província de Gênova aqueles que em abstrato podem se casar,
mas que na realidade devem permanecer no celibato? Eis a estatística de 31 de
dezembro de 1857. A
população total é de 313.402 indivíduos. Entre estes os cônjuges são 103.962;
os solteiros e as viúvas 210.610, isto é, mais de dois terços. É verdade que
destes devem ser descontados aqueles que estão abaixo da idade da puberdade;
mas entende-se que o número das crianças abaixo da puberdade não chega a um
terço da população total. E mesmo que chegasse, mais da metade dos habilitados
ao matrimônio ficariam de fato obrigados à continência. E é notável também que
muitos dos casados se somem a este número, isto é, todos aqueles que por
necessidade de família, por enfermidade, por maus tratos ou desordens do outro
cônjuge, vivem separados, e destes não tenho medo de errar se afirmo que hoje
em dia são muitos. Depois, não é de se supor que as estatísticas das outras
províncias, reinos ou impérios difiram sensivelmente da estatística da
Província de Gênova.

Ora, bem, uma virtude para a
qual na realidade está obrigada uma tão grande parte da população, poderá ser
dita virtude tão difícil e quase impossível de se guardar senão por poucos
privilegiados que tenham obtido de Deus algum dom extraordinário? Como teria
então Deus provido a todos os outros pobrezinhos que de fato devem também viver
em continência e sob pena de uma pequena bagatela que é um pecado mortal, a
qual merece por justiça nada menos do que um inferno eterno?

A suposição de que a
castidade perfeita seja assim tão difícil de se guardar, e que seja um dom
extraordinário de Deus, não te parece um gravíssimo preconceito, sumamente
injurioso à providência divina?

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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