Carta Encíclica Spe Salvi (Salvos na Esperança) Parte 4

28. Surge agora, porém, a questão: não será que,
desta maneira, caímos de novo no individualismo da salvação? Na esperança só
para mim, que aliás não é uma esperança verdadeira porque esquece e descuida os
outros? Não. A relação com Deus estabelece-se através da comunhão com Jesus –
sozinhos e apenas com as nossas possibilidades não o conseguimos. Mas, a
relação com Jesus é uma relação com Aquele que Se entregou a Si próprio em
resgate por todos nós (cf. 1 Tim 2,6). O facto de estarmos em comunhão com
Jesus Cristo envolve-nos no seu ser « para todos », fazendo disso o nosso modo
de ser. Ele compromete-nos a ser para os outros, mas só na comunhão com Ele é
que se torna possível sermos verdadeiramente para os outros, para a comunidade.
Neste contexto, queria citar o grande doutor grego da Igreja, S. Máximo o
Confessor (? 662), o qual começa por exortar a não antepor nada ao conhecimento
e ao amor de Deus, mas depois passa imediatamente a aplicações muito práticas:
« Quem ama Deus não pode reservar o dinheiro para si próprio. Distribui-o de
modo “divino” […] do mesmo modo segundo a medida da justiça ».[19] Do amor
para com Deus consegue a participação na justiça e na bondade de Deus para com
os outros; amar a Deus requer a liberdade interior diante de cada bem possuído
e de todas as coisas materiais: o amor de Deus revela-se na responsabilidade
pelo outro.[20] A mesma conexão entre amor de Deus e responsabilidade pelos
homens podemos observá-la com comoção na vida de S. Agostinho. Depois da sua
conversão à fé cristã, ele, juntamente com alguns amigos possuídos pelos mesmos
ideais, queria levar uma vida dedicada totalmente à palavra de Deus e às
realidades eternas. Pretendia realizar com valores cristãos o ideal da vida
contemplativa expressa pela grande filosofia grega, escolhendo deste modo « a
melhor parte » (cf. Lc 10,42). Mas as coisas foram de outro modo. Participava
ele na Missa dominical, na cidade portuária de Hipona, quando foi chamado pelo
Bispo do meio da multidão e instado a deixar-se ordenar para exercer o
ministério sacerdotal naquela cidade. Olhando retrospectivamente para aquela
hora, escreve nas suas « Confissões »: « Aterrorizado com os meus pecados e com
o peso da minha miséria, tinha resolvido e meditado em meu coração, o projecto
de fugir para o ermo. Mas Vós mo impedistes e me fortalecestes dizendo: “Cristo
morreu por todos, para que os viventes não vivam para si, mas para Aquele que
morreu por todos” (cf. 2 Cor 5,15) ».[21] Cristo morreu por todos. Viver para
Ele significa deixar-se envolver no seu « ser para ».

29. Para Agostinho, isto significou uma vida totalmente nova. Assim descreveu
ele uma vez o seu dia-a-dia: « Corrigir os indisciplinados, confortar os
pusilânimes, amparar os fracos, refutar os opositores, precaver-se dos
maliciosos, instruir os ignorantes, estimular os negligentes, frear os
provocadores, moderar os ambiciosos, encorajar os desanimados, pacificar os
litigiosos, ajudar os necessitados, libertar os oprimidos, demonstrar aprovação
aos bons, tolerar o maus e [ai de mim!] amar a todos ».[22] « É o Evangelho que
me assusta »[23] – aquele susto salutar que nos impede de viver para nós mesmos
e que nos impele a transmitir a nossa esperança comum. De facto, era esta
precisamente a intenção de Agostinho: na difícil situação do império romano,
que ameaçava também a África romana e – no final da vida de Agostinho – até a
destruiu, transmite esperança, a esperança que lhe vinha da fé e que,
contrariamente ao seu temperamento introvertido, o tornou capaz de participar
decididamente e com todas as forças na edificação da cidade. No mesmo capítulo
das Confissões, onde acabámos de ver o motivo decisivo do seu empenhamento «
por todos », diz ele: Cristo « intercede por nós. Doutro modo desesperaria,
pois são muitas e grandes as minhas fraquezas! Sim, são muito pesadas, mas maior
é o poder da vossa medicina. Poderíamos pensar que a vossa Palavra Se tinha
afastado da união com o homem e desesperado de nos salvar, se não se tivesse
feito homem e habitado entre nós ».[24] Em virtude da sua esperança, Agostinho
prodigalizou-se pelas pessoas simples e pela sua cidade – renunciou à sua
nobreza espiritual e pregou e agiu de modo simples para a gente simples.

30. Façamos um resumo daquilo que emergiu no desenrolar das nossas reflexões. O
homem, na sucessão dos dias, tem muitas esperanças – menores ou maiores –
distintas nos diversos períodos da sua vida. Às vezes pode parecer que uma
destas esperanças o satisfaça totalmente, sem ter necessidade de outras. Na
juventude, pode ser a esperança do grande e fagueiro amor; a esperança de uma certa
posição na profissão, deste ou daquele sucesso determinante para o resto da
vida. Mas quando estas esperanças se realizam, resulta com clareza que na
realidade, isso não era a totalidade. Torna-se evidente que o homem necessita
de uma esperança que vá mais além. Vê-se que só algo de infinito lhe pode
bastar, algo que será sempre mais do que aquilo que ele alguma vez possa
alcançar. Neste sentido, a época moderna desenvolveu a esperança da instauração
de um mundo perfeito que, graças aos conhecimentos da ciência e a uma política
cientificamente fundada, parecia tornar-se realizável. Assim, a esperança
bíblica do reino de Deus foi substituída pela esperança do reino do homem, pela
esperança de um mundo melhor que seria o verdadeiro « reino de Deus ». Esta parecia
finalmente a esperança grande e realista de que o homem necessita. Estava em
condições de mobilizar – por um certo tempo – todas as energias do homem; o
grande objectivo parecia merecedor de todo o esforço. Mas, com o passar do
tempo fica claro que esta esperança escapa sempre para mais longe. Primeiro
deram-se conta de que esta era talvez uma esperança para os homens de amanhã,
mas não uma esperança para mim. E, embora o elemento « para todos » faça parte
da grande esperança – com efeito, não posso ser feliz contra e sem os demais –
o certo é que uma esperança que não me diga respeito a mim pessoalmente não é
sequer uma verdadeira esperança. E tornou-se evidente que esta era uma
esperança contra a liberdade, porque a situação das realidades humanas depende
em cada geração novamente da livre decisão dos homens que dela fazem parte. Se
esta liberdade, por causa das condições e das estruturas, lhes fosse tirada, o
mundo, em última análise, não seria bom, porque um mundo sem liberdade não é de
forma alguma um mundo bom. Deste modo, apesar de ser necessário um contínuo
esforço pelo melhoramento do mundo, o mundo melhor de amanhã não pode ser o
conteúdo próprio e suficiente da nossa esperança. E, sempre a este respeito,
pergunta-se: Quando é « melhor » o mundo? O que é que o torna bom? Com qual
critério se pode avaliar o seu ser bom? E por quais caminhos se pode alcançar
esta « bondade »?

31. Mais ainda: precisamos das esperanças – menores ou maiores – que, dia após
dia, nos mantêm a caminho. Mas, sem a grande esperança que deve superar tudo o
resto, aquelas não bastam. Esta grande esperança só pode ser Deus, que abraça o
universo e nos pode propor e dar aquilo que, sozinhos, não podemos conseguir.
Precisamente o ser gratificado com um dom faz parte da esperança. Deus é o
fundamento da esperança – não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um
rosto humano e que nos amou até ao fim: cada indivíduo e a humanidade no seu
conjunto. O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca
mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos
alcança. Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar com toda a
sobriedade dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por
sua natureza, é imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor é para nós a garantia
de que existe aquilo que intuímos só vagamente e, contudo, no íntimo esperamos:
a vida que é « verdadeiramente » vida. Procuremos concretizar ainda mais esta
ideia na última parte, dirigindo a nossa atenção para alguns « lugares » de
aprendizagem prática e de exercício da esperança.

« Lugares » de aprendizagem e de exercício da esperança
 I. A oração como escola da esperança
32. Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando
já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com
ninguém, nem invocar mais ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais
ninguém que me possa ajudar – por tratar-se de uma necessidade ou de uma
expectativa que supera a capacidade humana de esperar – Ele pode ajudar-me.[25]
Se me encontro confinado numa extrema solidão…o orante jamais está totalmente
só. Dos seus 13 anos de prisão, 9 dos quais em isolamento, o inesquecível
Cardeal Nguyen Van Thuan deixou-nos um livrinho precioso: Orações de esperança.
Durante 13 anos de prisão, numa situação de desespero aparentemente total, a
escuta de Deus, o poder falar-Lhe, tornou-se para ele uma força crescente de
esperança, que, depois da sua libertação, lhe permitiu ser para os homens em
todo o mundo uma testemunha da esperança, daquela grande esperança que não
declina, mesmo nas noites da solidão.

33. De forma muito bela Agostinho ilustrou a relação íntima entre oração e
esperança, numa homilia sobre a Primeira Carta de João. Ele define a oração como
um exercício do desejo. O homem foi criado para uma realidade grande ou seja,
para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas, o seu coração é
demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser
dilatado. « Assim procede Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o
desejo; e com o desejo, dilata a alma, tornando-a mais apta a receber os seus
dons ». Aqui Agostinho pensa em
S. Paulo que, de si mesmo, afirma viver inclinado para as
coisas que hão-de vir (Fil 3,13). Depois usa uma imagem muito bela para
descrever este processo de dilatação e preparação do coração humano. « Supõe
que Deus queira encher-te de mel (símbolo da ternura de Deus e da sua bondade).
Se tu, porém, estás cheio de vinagre, onde vais pôr o mel? » O vaso, ou seja o
coração, deve primeiro ser dilatado e depois limpo: livre do vinagre e do seu
sabor. Isto requer trabalho, faz sofrer, mas só assim se realiza o ajustamento
àquilo para que somos destinados.[26] Apesar de Agostinho falar directamente só
da receptividade para Deus, resulta claro, no entanto, que o homem neste
esforço, com que se livra do vinagre e do seu sabor amargo, não se torna livre
só para Deus, mas abre-se também para os outros. De facto, só tornando-nos
filhos de Deus é que podemos estar com o nosso Pai comum. Orar não significa
sair da história e retirar-se para o canto privado da própria felicidade. O
modo correcto de rezar é um processo de purificação interior que nos torna
aptos para Deus e, precisamente desta forma, aptos também para os homens. Na
oração, o homem deve aprender o que verdadeiramente pode pedir a Deus, o que é
digno de Deus. Deve aprender que não pode rezar contra o outro. Deve aprender
que não pode pedir as coisas superficiais e cómodas que de momento deseja – a
pequena esperança equivocada que o leva para longe de Deus. Deve purificar os
seus desejos e as suas esperanças. Deve livrar-se das mentiras secretas com que
se engana a si próprio: Deus perscruta-as, e o contacto com Deus obriga o homem
a reconhecê-las também. « Quem poderá discernir todos os erros? Purificai-me
das faltas escondidas », reza o Salmista (19/18,13). O não reconhecimento da
culpa, a ilusão de inocência não me justifica nem me salva, porque o
entorpecimento da consciência, a incapacidade de reconhecer em mim o mal
enquanto tal é culpa minha. Se Deus não existe, talvez me deva refugiar em tais
mentiras, porque não há ninguém que me possa perdoar, ninguém que seja a medida
verdadeira. Pelo contrário, o encontro com Deus desperta a minha consciência, para
que deixe de fornecer-me uma autojustificação, cesse de ser um reflexo de mim
mesmo e dos contemporâneos que me condicionam, mas se torne capacidade de
escuta do mesmo Bem.

34. Para que a oração desenvolva esta força purificadora, deve, por um lado,
ser muito pessoal, um confronto do meu eu com Deus, com o Deus vivo; mas, por
outro, deve ser incessantemente guiada e iluminada pelas grandes orações da
Igreja e dos santos, pela oração litúrgica, na qual o Senhor nos ensina
continuamente a rezar de modo justo. O Cardeal Nyugen Van Thuan, contou no seu
livro de Exercícios Espirituais, como na sua vida tinha havido longos períodos
de incapacidade para rezar, e como ele se tinha agarrado às palavras de oração
da Igreja: ao Pai Nosso, à Ave Maria e às orações da Liturgia.[27] Na oração,
deve haver sempre este entrelaçamento de oração pública e oração pessoal. Assim
podemos falar a Deus, assim Deus fala a nós. Deste modo, realizam-se em nós as
purificações, mediante as quais nos tornamos capazes de Deus e idóneos ao
serviço dos homens. Assim tornamo-nos capazes da grande esperança e ministros
da esperança para os outros: a esperança em sentido cristão é sempre esperança
também para os outros. E é esperança activa, que nos faz lutar para que as
coisas não caminhem para o « fim perverso ». É esperança activa precisamente
também no sentido de mantermos o mundo aberto a Deus. Somente assim, ela
permanece também uma esperança verdadeiramente humana.

II. Agir e sofrer como lugares de aprendizagem da esperança
35. Toda a acção séria e recta do homem é esperança em acto. É-o antes de tudo
no sentido de que assim procuramos concretizar as nossas esperanças menores ou
maiores: resolver este ou aquele assunto que é importante, para prosseguir na
caminhada da vida; com o nosso empenho contribuir a fim de que o mundo se torne
um pouco mais luminoso e humano, e assim se abram também as portas para o
futuro. Mas o esforço quotidiano pela continuação da nossa vida e pelo futuro
da comunidade cansa-nos ou transforma-se em fanatismo, se não nos ilumina a luz
daquela grande esperança que não pode ser destruída sequer pelos pequenos
fracassos e pela falência em vicissitudes de alcance histórico. Se não podemos
esperar mais do que é realmente alcançável de cada vez e de quanto nos seja possível
oferecerem as autoridades políticas e económicas, a nossa vida arrisca-se a
ficar bem depressa sem esperança. É importante saber: eu posso sempre continuar
a esperar, ainda que pela minha vida ou pelo momento histórico que estou a
viver aparentemente não tenha mais qualquer motivo para esperar. Só a grande
esperança-certeza de que, não obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal
e a história no seu conjunto estão conservadas no poder indestrutível do Amor
e, graças a isso e por isso, possuem sentido e importância, só uma tal
esperança pode, naquele caso, dar ainda a coragem de agir e de continuar.
Certamente, não podemos « construir » o reino de Deus com as nossas forças; o
que construímos permanece sempre reino do homem com todos os limites próprios
da natureza humana. O reino de Deus é um dom, e por isso mesmo é grande e belo,
constituindo a resposta à esperança. Nem podemos – para usar a terminologia
clássica – « merecer » o céu com as nossas obras. Este é sempre mais do que
aquilo que merecemos, tal como o ser amados nunca é algo « merecido », mas um
dom. Porém, com toda a nossa consciência da « mais valia » do céu, permanece
igualmente verdade que o nosso agir não é indiferente diante de Deus e,
portanto, também não o é para o desenrolar da história. Podemos abrir-nos nós
mesmos e o mundo ao ingresso de Deus: da verdade, do amor e do bem. É o que
fizeram os santos que, como « colaboradores de Deus » contribuíram para a
salvação do mundo (cf. 1 Cor 3,9; 1 Tes 3,2). Temos a possibilidade de livrar a
nossa vida e o mundo dos venenos e contaminações que poderiam destruir o
presente e o futuro. Podemos descobrir e manter limpas as fontes da criação e
assim, juntamente com a criação que nos precede como dom recebido, fazer o que
é justo conforme as suas intrínsecas exigências e a sua finalidade. Isto
conserva um sentido, mesmo quando, aparentemente, não temos sucesso ou
parecemos impotentes face à hegemonia de forças hostis. Assim, por um lado, da
nossa acção nasce esperança para nós e para os outros; mas, ao mesmo tempo, é a
grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons
como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir.

36. Tal como o agir, também o sofrimento faz parte da existência humana. Este
deriva, por um lado, da nossa finitude e, por outro, do volume de culpa que se
acumulou ao longo da história e, mesmo actualmente, cresce de modo
irreprimível. Certamente é preciso fazer tudo o possível para diminuir o
sofrimento: impedir, na medida do possível, o sofrimento dos inocentes;
amenizar as dores; ajudar a superar os sofrimentos psíquicos. Todos estes são
deveres tanto da justiça como da caridade, que se inserem nas exigências
fundamentais da existência cristã e de cada vida verdadeiramente humana. Na
luta contra a dor física conseguiu-se realizar grandes progressos; mas o
sofrimento dos inocentes e inclusive os sofrimentos psíquicos aumentaram
durante os últimos decénios. Devemos – é verdade – fazer tudo por superar o
sofrimento, mas eliminá-lo completamente do mundo não entra nas nossas
possibilidades, simplesmente porque não podemos desfazer-nos da nossa finitude
e porque nenhum de nós é capaz de eliminar o poder do mal, da culpa que – como
constatámos – é fonte contínua de sofrimento. Isto só Deus o poderia fazer: só
um Deus que pessoalmente entra na história fazendo-Se homem e sofre nela. Nós
sabemos que este Deus existe e que por isso este poder que « tira os pecados do
mundo » (Jo 1,29) está presente no mundo. Com a fé na existência deste poder,
surgiu na história a esperança da cura do mundo. Mas, trata-se precisamente de
esperança, e não ainda de cumprimento; esperança que nos dá a coragem de nos
colocarmos da parte do bem, inclusive onde a realidade parece sem esperança,
cientes de que, olhando o desenrolar da história tal como nos aparece
exteriormente, o poder da culpa vai continuar uma presença terrível ainda no
futuro.

37. Voltemos ao nosso tema. Podemos procurar limitar o sofrimento e lutar
contra ele, mas não podemos eliminá-lo. Precisamente onde os homens, na
tentativa de evitar qualquer sofrimento, procuram esquivar-se de tudo o que
poderia significar padecimento, onde querem evitar a canseira e o sofrimento
por causa da verdade, do amor, do bem, descambam numa vida vazia, na qual
provavelmente já quase não existe a dor, mas experimenta-se muito mais a
obscura sensação da falta de sentido e da solidão. Não é o evitar o sofrimento,
a fuga diante da dor, que cura o homem, mas a capacidade de aceitar a
tribulação e nela amadurecer, de encontrar o seu sentido através da união com
Cristo, que sofreu com infinito amor. Neste contexto, desejo citar algumas
frases de uma carta do mártir vietnamita Paulo Le-Bao-Thin (? 1857), onde é
clara esta transformação do sofrimento mediante a força da esperança que provém
da fé. « Eu, Paulo, prisioneiro pelo nome de Cristo, quero falar-vos das
tribulações que suporto cada dia, para que, inflamados no amor de Deus, comigo
louveis o Senhor, porque é eterna a sua misericórdia (Sal 136/135). Este
cárcere é realmente a imagem do inferno eterno: além de suplícios de todo o
género, tais como algemas, grilhões, cadeias de ferro, tenho de suportar o
ódio, as agressões, calúnias, palavras indecorosas, repreensões, maldades,
juramentos falsos, e, além disso, as angústias e a tristeza. Mas Deus, que
outrora libertou os três jovens da fornalha ardente, está sempre comigo e
libertou-me destas tribulações, convertendo-as em suave doçura, porque é eterna
a sua misericórdia. Imerso nestes tormentos, que costumam aterrorizar os
outros, pela graça de Deus sinto-me alegre e contente, porque não estou só, mas
estou com Cristo. […] Como posso eu suportar este espectáculo, ao ver todos
os dias os imperadores, mandarins e seus guardas blasfemar o vosso santo nome,
Senhor, que estais sentado sobre os Querubins (cf. Sal 80/79, 2) e os Serafins?
Vede como a vossas cruz é calcada aos pés dos pagãos! Onde está a vossa glória?
Ao ver tudo isto, sinto inflamar-se o meu coração no vosso amor e prefiro ser
dilacerado e morrer em testemunho da vossa infinita bondade. Mostrai, Senhor, o
vosso poder, salvai-me e amparai-me, para que na minha fraqueza se manifeste a
vossa força e seja glorificada diante dos gentios […] Ouvindo tudo isto,
caríssimos irmãos, tende coragem e alegrai-vos, dai graças eternamente a Deus,
de quem procedem todos os bens, bendizei comigo ao Senhor, porque é eterna a
sua misericórdia […] Escrevo todas estas coisas, para que estejam unidas a
vossa e a minha fé. No meio da tempestade, lanço a âncora que me permitirá
subir até ao trono de Deus: a esperança viva que está no meu coração ».[28]
Esta é uma carta do « inferno ». Nela se mostra todo o horror de um campo de
concentração, onde aos tormentos infligidos pelos tiranos se vem juntar o
desencadeamento do mal nas mesmas vítimas que, deste modo, se tornam novos
instrumentos da crueldade dos algozes. É uma carta do inferno, mas nela tem
cumprimento a palavra do Salmo: « Se subir aos céus, lá Vos encontro, se descer
aos infernos, igualmente. […] Se eu disser: “ao menos as trevas me cobrirão”,
[…] nem sequer as trevas serão bastante escuras para Vós, e a noite será
clara como o dia, tanto faz a luz como as trevas » (Sl 139/138, 8-12; cf.
também Sal 23//22, 4). Cristo desceu aos « infernos » ficando assim perto de
quem é nele lançado, transformando para ele as trevas em luz. O sofrimento, os
tormentos continuam terríveis e quase insuportáveis. Surgiu, porém, a estrela
da esperança, a âncora do coração chega até o trono de Deus. Não se desencadeia
o mal no homem, mas vence a luz: o sofrimento – sem deixar de o ser – torna-se,
apesar de tudo, canto de louvor.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.