Carta Encíclica sobre a Eucaristia – Parte 5

57.
« Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). No
« memorial » do Calvário, está presente tudo o que Cristo realizou na
sua paixão e morte. Por isso, não pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe
em nosso favor. De facto, entrega-Lhe o discípulo predilecto e, nele, entrega
cada um de nós: « Eis aí o teu filho ». E de igual modo diz a cada um
de nós também: « Eis aí a tua mãe » (cf. Jo 19, 26-27).

Viver o
memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica também receber continuamente
este dom. Significa levar connosco – a exemplo de João – Aquela que sempre de
novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos
conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia.
Maria está presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das
celebrações eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binómio indivisível, o
mesmo é preciso afirmar do binómio Maria e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a
antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do Ocidente a recordação de
Maria na celebração eucarística.

58. Na
Eucaristia, a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu sacrifício, com o
mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode-se aprofundar relendo o Magnificat em
perspectiva eucarística. De facto, como o cântico de Maria, também a Eucaristia
é primariamente louvor e acção de graças. Quando exclama: « A minha alma
glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu
Salvador », Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por »
Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com » Jesus. É
nisto precisamente que consiste a verdadeira « atitude eucarística ».

Ao mesmo
tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da
salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1, 55), anunciando a
maravilha mais sublime de todas: a encarnação redentora. Enfim, no Magnificat
está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus
Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais,
pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os
poderosos « derrubados dos seus tronos » e « exaltados os
humildes » (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele « novo céu » e
aquela « nova terra », cuja antecipação e em certa medida a
« síntese » programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat
exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos
pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para
que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat! 

  

CONCLUSÃO

59.
« Ave, verum corpus natum de Maria Virgine ». Celebrei há poucos anos
as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja
esta encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu vigésimo quinto
ano de ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de
meio século todos os dias, a começar daquele 2 de Novembro de 1946 quando
celebrei a minha Missa Nova na cripta de S. Leonardo na catedral do Wawel, em
Cracóvia, os meus olhos concentram-se sobre a hóstia e sobre o cálice onde o
tempo e o espaço de certo modo estão « contraídos » e o drama do
Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa « contemporaneidade ».
Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados aquele
Viandante divino que um dia Se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús
para abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24, 13-35).

Deixai,
meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em companhia e para
conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: « Ave, verum
corpus natum de Maria Virgine, / vere passum, immolatum, in cruce pro
homine! ». Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da
meta pela qual, mesmo inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande,
que nos excede – é certo – e põe a dura prova a capacidade da nossa mente em
avançar para além das aparências. Aqui os nossos sentidos falham – « visus,
tactus, gustus in te fallitur », diz-se no hino Adoro te devote -; mas
basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo que nos foi deixada
pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico, segundo o Evangelho
de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de
cada um de vós: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de
vida eterna » (Jo 6, 68).

60. Na
aurora deste terceiro milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a
progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na carta apostólica
Novo
millennio ineunte
,
« não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o
mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em
última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para
n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua
plenitude na Jerusalém celeste ».(103)
A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela
Eucaristia.

Cada
esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da Igreja, cada
aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do
mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na
Eucaristia, temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua ressurreição, temos o
dom do Espírito Santo, temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se
transcurássemos a Eucaristia, como poderíamos dar remédio à nossa indigência?

61. O
mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não permite reduções
nem instrumentalizações; há-de ser vivido na sua integridade, quer na
celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na comunhão,
quer no período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica
solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa,
católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de
Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e
comunhão hierarquicamente organizada.

O caminho
que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milénio é também
caminho de renovado empenho ecuménico. Os últimos decénios do segundo milénio,
com o seu apogeu no Grande Jubileu do ano 2000, impeliram-nos nesta direcção,
convidando todos os baptizados a corresponderem à oração de Jesus « ut
unum sint » (Jo 17, 11). É um caminho longo, cheio de obs- táculos que
superam a capacidade humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos
ouvir no fundo do coração, como que dirigidas a nós, as mesmas palavras que
ouviu o profeta Elias: « Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho
longo a percorrer » (1 Re 19, 7). O tesouro eucarístico, que o Senhor pôs
à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena partilha com todos
os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Baptismo. Mas para não
desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do
facto de ele ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.

Dando à
Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o cuidado não atenuar
nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar verdadeiramente
conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição ininterrupta
desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na defesa
deste « tesouro ». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em
transmitir às sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério
eucarístico, sem perder qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no
cuidado que lhe dedicamos, porque, « neste sacramento, se condensa todo o
mistério da nossa salvação ».(104)

62. Meus
queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos, grandes intérpretes da
verdadeira piedade eucarística. Neles, a teologia da Eucaristia adquire todo o
brilho duma vivência, « contagia-nos » e, por assim dizer, nos
« abrasa ». Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima,
porque n’Ela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o
mistério da luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a
Eucaristia. N’Ela, vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-A elevada ao
Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do « novo céu » e da « nova
terra » que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de
Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo,
antecipação: «  Veni, Domine Iesu » (Ap 22, 20)!

Nos sinais
humildes do pão e do vinho transubstanciados no seu corpo e sangue, Cristo
caminha connosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas de
esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste
mistério, o coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como
comportar-se, entranhando-se na adoração e num amor sem limites.

Façamos
nossos os sentimentos de S. Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao mesmo tempo
cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se abra
também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento
como é de alegria e de paz:

« Bone
Pastor, panis vere
Iesu, notri miserere… ».

« Bom
Pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.

Aos mortais
dando comida
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu ».

 

Dado em
Roma, junto de S. Pedro, no dia 17 de Abril, Quinta-feira Santa, do ano 2003,
vigésimo quinto do meu Pontificado e Ano do Rosário.

 

IOANNES
PAULUS II

Notas  

(1)Const.
dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.

(2)Conc.
Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum
ordinis, 5.

(3)Cf.
João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariæ (16 de Outubro de 2002), 21:
AAS 95 (2003), 19.

(4)Assim
quis intitular um testemunho autobiográfico que escrevi por ocasião das Bodas
de Ouro do meu sacerdócio.

(5)Leonis
XIII Acta, XXII (1903), 115-136.

(6)AAS
39 (1947), 521-595.

(7)AAS
57 (1965), 753-774.

(8)AAS
72 (1980), 113-148.

(9)Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
47: « O nosso Salvador instituiu […] o sacrifício eucarístico do seu
Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar,
o sacrifício da cruz ».

(10)Catecismo
da Igreja Católica, 1085.

(11)Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3.

(12)Cf.
Paulo VI, Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 24: AAS 60 (1968), 442;
João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 12: AAS 72
(1980), 142.

(13)Catecismo
da Igreja Católica, 1382.

(14)Ibid.,
1367.

(15)Homilias
sobre a Carta aos Hebreus, 17, 3: PG 63, 131.

(16)« Trata-se
realmente de uma única e mesma vítima, que o próprio Jesus oferece pelo
ministério dos sacerdotes, Ele que um dia Se ofereceu a Si mesmo na cruz;
somente o modo de oferecer-Se é que é diverso »: Conc. Ecum. de Trento,
Sess. XXII, Doctrina de ss. Missæ sacrificio, cap. 2: DS 1743.

(17)Pio
XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 548.

(18)João
Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (15 de Março de 1979), 20: AAS 71
(1979), 310.

(19)Const.
dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.

(20)De
Sacramentis, V, 4, 26: CSEL 73, 70.

(21)Comentário
ao Evangelho de João, XII, 20: PG 74, 726.

(22)Carta
enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 764.

(23)Sess.
XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 4: DS 1642.

(24)Catequeses
mistagógicas, IV, 6: SCh 126, 138.

(25)Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, 8.

(26)Solene
profissão de fé (30 de Junho de 1968), 25: AAS 60 (1968), 442-443.

(27)Homilia
IV para a Semana Santa: CSCO 413 / Syr. 182, 55.

(28)Anáfora.

(29)Oração
Eucarística III.

(30)Antífona
do Magnificat nas II Vésperas da Solenidade do SS. Corpo e Sangue de Cristo.

(31)Missal
Romano, Embolismo depois do Pai Nosso.

(32)Carta
aos Efésios, 20: PG 5, 661.

(33)Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 39.

(34)« Queres
honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros,
isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com
vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que
disse: « Isto é o meu Corpo », […] também afirmou: « Vistes-Me
com fome e não me destes de comer », e ainda: « Na medida em que o
recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. […]
De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele
morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e
depois ornamenta a sua mesa com o que sobra »: S. João Crisóstomo, Homilias
sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509; cf. João Paulo II, Carta
enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 31: AAS 80 (1988),
553-556.

(35)Const.
dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3.

(36)Ibid.,
3.

(37)Conc.
Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 5.

(38)« Moisés
tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança
que o Senhor concluiu convosco mediante todas estas palavras” » (Ex 24,
8).

(39)Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.

(40)Cf.
ibid., 9.

(41)Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes
Presbyterorum ordinis, 5. No n. 6 do mesmo decreto, lê-se: « Nenhuma
comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da
santíssima Eucaristia ».

(42)Homilias
sobre a I Carta aos Coríntios, 24, 2: PG 61, 200; cf. Didaké, IX, 4: F. X.
Funk, I, 22; S. Cipriano, Epistula LXIII, 13: PL 4, 384.

(43)Patrologia
Orientalis, 26, 206.

(44)Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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