Carta Apostólica Salvifici Doloris: O Sentido do Sofrimento Humano (Parte 1)

Aos sacerdotes, às famílias religiosas e aos fiéis da Igreja Católica sobre o sentido cristão do sofrimento humano.

(Esta transcrição é feito do Jornal L-Osservatore Romano, ou do site do Vaticano, edição em português, de Portugal; algumas palavras são escritas de forma diferente do português usado no Brasil).

Veneráveis Irmãos no Episcopado e amados Irmãos e Irmãs em Cristo:

I. Introdução

1. «Completo na minha carne  diz o Apóstolo São Paulo, ao explicar o valor salvífico do sofrimento  o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja». (1)
Estas palavras parecem encontrar-se no termo do longo caminho que se desenrola através do sofrimento inserido na história do homem e iluminado pela Palavra de Deus. Elas têm o valor de uma como que descoberta definitiva, que é acompanhada pela alegria: «Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa». (2) Esta alegria provém da descoberta do sentido do sofrimento; e muito embora Paulo de Tarso, que escreve estas palavras, participe de um modo personalíssimo nessa descoberta, ela é válida ao mesmo tempo para os outros. O Apóstolo comunica a sua própria descoberta e alegra-se por todos aqueles a quem ela pode servir de ajuda ” como o ajudou a ele” para penetrar no sentido salvífico do sofrimento.

2. O tema do sofrimento ” precisamente sob este ponto de vista do sentido salvífico” parece estar integrado profundamente no contexto do Ano da Redenção, o Jubileu extraordinário da Igreja; e também esta circunstância se apresenta de molde a favorecer directamente uma maior atenção a dispensar a tal tema exatamente durante este período. Mas, prescindindo deste fato, trata-se de um tema universal, que acompanha o homem em todos os quadrantes da longitude e da latitude terrestre; num certo sentido, coexiste com ele no mundo; e por isso, exige ser constantemente retomado. Ainda que São Paulo tenha escrito na Carta aos Romanos que «toda a criação tem gemido e sofrido as dores do parto, até ao presente», (3) e ainda que os sofrimentos do mundo dos animais sejam bem conhecidos e estejam próximos ao homem, aquilo que nós exprimimos com a palavra «sofrimento» parece entender particularmente algo essencial à natureza humana. É algo tão profundo como o homem, precisamente porque manifesta a seu modo aquela profundidade que é própria do homem e, a seu modo, a supera. O sofrimento parece pertencer à transcendência do homem; é um daqueles pontos em que o homem está, em certo sentido, «destinado» a superar-se a si mesmo; e é chamado de modo misterioso a fazê-lo.

3. Se o tema do sofrimento deve ser tratado de modo especial no contexto do Ano Santo da Redenção, isso sucede, primeiro que tudo, porque a Redenção se realizou mediante a Cruz de Cristo, ou seja, pelo seu sofrimento. Ao mesmo tempo, no ano da Redenção há que repensar a verdade expressa na Encíclica Redemptor Hominis: em Cristo « cada um dos homens se torna o caminho da Igreja ». (4) Pode dizer-se que o homem se torna caminho da Igreja de modo particular quando o sofrimento entra na sua vida. Isso acontece, como é sabido, em diversos momentos da vida; verifica-se de diversas maneiras e assume dimensões diferentes; mas, de uma forma ou de outra, o sofrimento parece ser, e é mesmo, quase inseparável da existência terrena do homem. Dado, pois, que o homem no decorrer da sua vida terrena trilha, de um modo ou de outro, o caminho do sofrimento, a Igreja deveria, em todos os tempos – e talvez de um modo especial no Ano da Redenção  encontrar-se com o homem precisamente neste caminho. A Igreja, que nasce do mistério da Redenção na Cruz de Cristo, tem o dever de procurar o encontro com o homem, de modo particular no caminho do seu sofrimento. É em tal encontro que o homem «se torna o caminho da Igreja»; e este é um dos caminhos mais importantes.

4. Daqui tem a sua origem também a presente reflexão, precisamente neste  Ano da Redenção: a reflexão sobre o sofrimento. O sofrimento humano suscita compaixão, inspira também respeito e, a seu modo, intimida. Nele, efetivamente, está contida a grandeza de um mistério específico. Este respeito particular por todo e qualquer sofrimento humano deve ficar assente no princípio de quanto vai ser explanado a seguir, que promana da necessidade mais profunda do coração, bem como de um imperativo da fé. Estes dois motivos parecem aproximar-se particularmente um do outro e unir-se entre si, quanto ao tema do sofrimento: a necessidade do coração impõe-nos vencer a timidez; e o imperativo da fé formulado, por exemplo, nas palavras de São Paulo citadas no início   proporciona o conteúdo, em nome e em virtude da qual nós ousamos tocar naquilo que parece ser tão intangível em cada um dos homens; efetivamente, o homem no seu sofrimento permanece um mistério intangível.

II. O Mundo do Sofrimento Humano
5. Se bem que na sua dimensão subjetiva, como fato pessoal, encerrado no concreto e irrepetível íntimo do homem, o sofrimento pareça ser algo quase inefável e não comunicável, talvez nenhuma outra coisa exija ao mesmo tempo tanto como ele na sua «realidade objectiva»  ser tratada, meditada e concebida, dando ao problema uma forma explícita; e daí, que a seu respeito se levantem questões de fundo e que para estas se procurem as respostas. Não se trata aqui, como se verá, somente de fazer uma descrição do sofrimento. Existem outros critérios, que estão para além da esfera da descrição, dos quais devemos lançar mão quando queremos penetrar no mundo do sofrimento humano. A medicina, enquanto ciência e, conjuntamente, como arte de curar, descobre no vasto terreno dos sofrimentos do homem o seu sector mais conhecido; ou seja, aquele que é identificado com maior precisão e, correlativamente, contrabalançado pelos métodos do «reagir» (isto é, da terapia). Contudo, isso é apenas um sector. O campo do sofrimento humano é muito mais vasto, muito mais diversificado e mais pluridimensional. O homem sofre de diversas maneiras, que nem sempre são consideradas pela medicina, nem sequer pelos seus ramos mais avançados. O sofrimento é algo mais amplo e mais complexo do que a doença e, ao mesmo tempo, algo mais profundamente enraizado na própria humanidade. É nos dada uma certa ideia quanto a este problema pela distinção entre sofrimento físico e sofrimento moral. Esta distinção toma como fundamento a dupla dimensão do ser humano e indica o elemento corporal e espiritual como o imediato ou direto sujeito do sofrimento. Ainda que se possam usar, até certo ponto, como sinônimas as palavras «sofrimento» e «dor», o sofrimento físico dá-se quando, seja de que modo for, «dói» o corpo; enquanto que o sofrimento moral é «dor da alma». Trata-se, de fato, da dor de tipo espiritual e não apenas da dimensão «psíquica» da dor, que anda sempre junta tanto com o sofrimento moral, como com o sofrimento físico. A amplidão do sofrimento moral e a multiplicidade das suas formas não são menores do que as do sofrimento físico; mas, ao mesmo tempo, o primeiro apresenta-se como algo mais difícil de identificar e de ser atingido pela terapia.

6. A Sagrada Escritura é um grande livro sobre o sofrimento. Do Antigo Testamento fazemos menção apenas de alguns exemplos de situações que patenteiam as marcas do sofrimento; e, em primeiro lugar, do sofrimento moral: o perigo de morte; (5) a morte dos próprios filhos (6) e especialmente a morte do filho primogénito e único; (7) e depois também: a falta de descendência; (8) a saudade da pátria; (9) a perseguição e a hostilidade do meio ambiente;(10) o escárnio e a zombaria em relação a quem sofre; (11) a solidão e o abandono; (12) e ainda outros, como: os remorsos de consciência; (l3) a dificuldade em compreender a razão por que os maus prosperam e os justos sofrem; (l4) a infidelidade e a ingratidão da parte dos amigos e vizinhos; (15) e, finalmente, as desventuras da própria nação. (16) O Antigo Testamento, considerando o homem como um « conjunto » psicofísico, associa frequentemente os sofrimentos «morais» à dor de determinadas partes do organismo: dos ossos, dos rins, (18) do fígado, (19) das vísceras (20) e do coração. (21) Não se pode negar, efetivamente, que os sofrimentos morais têm também uma componente «física», ou somática, e que frequentemente se refletem no estado geral do organismo.

7. Como se vê pelos exemplos referidos, na Sagrada Escritura encontramos um vasto elenco de situações dolorosas, por diversos motivos, para o homem. Este elenco diversificado não esgota, certamente, tudo aquilo que sobre o tema do sofrimento já disse e constantemente repete o livro da história do homem (que é prevalentemente um « livro não escrito »); e menos ainda o que disse o livro da história da humanidade, lido através da história de cada homem.
Pode-se dizer que o homem sofre, quando ele experimenta um mal qualquer. A relação entre sofrimento e mal, no vocabulário do Antigo Testamento, é posta em evidência como identidade. Com efeito, este vocabulário não possuía uma palavra específica para designar o «sofrimento»; por isso, definia como «mal» tudo aquilo que era sofrimento». (22) Somente a língua grega – e, conjuntamente, o Novo Testamento (e as versões gregas do Antigo) – se serve do verbo «~am sou afetado por…, experimento uma sensação, sofro»; e graças a este termo o sofrimento já não é diretamente identificável com o mal (objetivo), mas exprime uma situação na qual o homem sente o mal e, sentindo-o, torna-se sujeito de sofrimento. Este, de fato, possui ao mesmo tempo caráter ativo e passivo (de « patior »). Mesmo quando o homem se provoca por si próprio um sofrimento, quando é autor do mesmo, esse sofrimento permanece como algo passivo na sua essência metafísica.
Isto, contudo, não quer dizer que o sofrimento em sentido psicológico não seja assinalado por uma «atividade» específica. Há, de fato, uma «atividade» múltipla e subjetivamente diferenciada de dor, de tristeza, de desilusão, de abatimento ou, até, de desespero, conforme a intensidade do sofrimento, a sua profundidade e, indiretamente, conforme toda a estrutura do sujeito que sofre e a sua sensibilidade específica. No âmago daquilo que constitui a forma psicológica do sofrimento encontra-se sempre uma experiência do mal, por motivo do qual o homem sofre. Assim, a realidade do sofrimento levanta uma pergunta quanto à essência do mal: o que é o mal?
Esta pergunta parece inseparável, num certo sentido, do tema do « sofrimento ». A resposta cristã neste ponto é diversa daquela que é dada por certas tradições culturais e religiosas, para as quais a existência é um mal de que é necessário libertar-se. O Cristianismo proclama que a existência é essencialmente um bem e o bem daquilo que existe; professa a bondade do Criador e proclama o bem das criaturas. O homem sofre por causa do mal, que é uma certa falta, limitação ou distorção do bem. Poder-se-ia dizer que o homem sofre por causa de um bem do qual não participa, do qual é, num certo sentido, excluído, ou do qual ele próprio se privou. Sofre em particular quando « deveria » ter participação num determinado bem – segundo a ordem normal das coisas – e não a tem.
Por conseguinte, no conceito cristão a realidade do sofrimento explica-se por meio do mal que, de certa maneira, está sempre em referência a um bem.

8. O sofrimento humano constitui em si próprio como que um « mundo » específico, que existe juntamente com o homem, que surge nele e passa, ou então que as vezes não passa, mas se consolida e aprofunda nele. Este mundo do sofrimento, abrangendo muitos, numerosíssimos sujeitos, existe por assim dizer na dispersão. Cada um dos homens, mediante o seu sofrimento pessoal, por um lado constitui só uma pequena parte desse « mundo »; mas, ao mesmo tempo, esse « mundo » está nele como uma entidade finita e irrepetível. A par disso existe também a dimensão inter-humana e social. O mundo do sofrimento possui como que uma sua própria compacidade. Os homens que sofrem tornam-se semelhantes entre si por efeito da analogia da sua situação, da provação do destino partilhado, ou da necessidade de compreensão e de cuidados; mas sobretudo, talvez, por causa do persistente interrogar-se sobre o sentido do sofrimento. Embora o mundo do sofrimento exista na dispersão, contém em si, ao mesmo tempo, um singular desafio à comunhão e à solidariedade. Procuraremos dar ouvidos também a este apelo na presente reflexão. Ao pensar no mundo do sofrimento e no seu significado pessoal e ao mesmo tempo coletivo, não se pode, enfim, deixar de notar o fato de que este mundo como que se adensa de modo particular nalguns períodos de tempo e em certos espaços da existência humana. É o que acontece, por exemplo, nos casos de calamidades naturais, de epidemias, catástrofes e cataclismos, ou de diversos flagelos sociais; pense-se, entre outros, no caso de um período de má colheita e relacionado com isso – ou por diversas outras causas – no flagelo da fome. Pensemos, por fim, na guerra. Refiro-me a ela de modo especial. E falo das últimas duas guerras mundiais; destas foi a segunda que fez uma ceifa muito maior de vidas e uma acumulação mais penosa de sofrimentos humanos. E acontece que a segunda metade do nosso século – como que em proporção com os erros e transgressões da nossa civilização contemporânea – contém em si por sua vez uma ameaça tão horrível de guerra nuclear, que não podemos pensar neste período senão em termos de acumulação incomparável de sofrimentos, que vão até à possível autodestruição da humanidade. Deste modo, aquele mundo de sofrimento, que afinal tem o seu sujeito em cada homem, parece transformar-se na nossa época – talvez mais do que em qualquer outro momento – num particular « sofrimento do mundo »: de um mundo que se acha, como nunca, transformado pelo progresso operado pelo homem; e está ao mesmo tempo, como nunca, em perigo por causa dos erros e culpas do mesmo homem.

III. Em busca da resposta à pergunta sobre o ‘sentido do sofrimento’
9. No fundo de cada sofrimento experimentado pelo homem, como também na base de todo o mundo dos sofrimentos, aparece inevitavelmente a pergunta: porquê? É uma pergunta acerca da causa, da razão e também acerca da finalidade (para quê?); trata-se sempre, afinal, de uma pergunta acerca do sentido. Esta não só acompanha o sofrimento humano, mas parece até determinar o seu conteúdo humano, o que faz com que o sofrimento seja propriamente sofrimento humano.
A dor, como é óbvio, em especial a dor física, encontra-se amplamente difundida no mundo dos animais. Mas só o homem, ao sofrer, sabe que sofre e se pergunta o porquê; e sofre de um modo humanamente ainda mais profundo se não encontra uma resposta satisfatória. Trata-se de uma pergunta difícil, como é também difícil uma outra muito afim, ou seja, a que diz respeito ao mal. Porquê o mal? Porquê o mal no mundo? Quando fazemos a pergunta desta maneira fazemos sempre também, ao menos em certa medida, uma pergunta sobre o sofrimento. Ambas as perguntas são difíceis, quando o homem as faz ao homem, os homens aos homens, como também quando o homem as apresenta a Deus. Com efeito, o homem não põe esta questão ao mundo, ainda que muitas vezes o sofrimento lhe provenha do mundo; mas põe-na a Deus, como Criador e Senhor do mundo. É bem sabido que, quando se calcorreia o terreno desta pergunta, se chega não só a múltiplas frustrações e conflitos nas relações do homem com Deus, mas sucede até chegar-se à própria negação de Deus. Se, efetivamente, a existência do mundo como que abre o olhar da alma à existência de Deus, à sua sapiência, poder e magnificência, então o mal e o sofrimento parecem  ofuscar esta imagem, às vezes de modo radical; e isto mais ainda olhando ao quotidiano com a dramaticidade de tantos sofrimentos sem culpa e de tantas culpas sem pena adequada. Esta circunstância, portanto – mais do que qualquer outra, talvez – indica quanto é importante a pergunta sobre o sentido do sofrimento e com que acuidade se devam tratar, quer a mesma pergunta, quer as possíveis respostas a dar-lhe.

10. O homem pode dirigir tal pergunta a Deus, com toda a comoção do seu coração e com a mente cheia de assombro e de inquietude; e Deus espera por essa pergunta e escuta-a, como vemos na Revelação do Antigo Testamento. A pergunta encontrou a sua expressão mais viva no Livro de Job. É conhecida a história deste homem justo que, sem culpa nenhuma da sua parte, é provado com inúmeros sofrimentos. Perde os seus bens, os filhos e filhas e, por fim, ele próprio é atingido por uma doença grave. Nesta situação horrível, apresentam-se em sua casa três velhos amigos que procuram – cada um com palavras diferentes – convencê-lo de que, para ter sido atingido por tão variados e tão terríveis sofrimentos, deve ter cometido alguma falta grave. Com efeito, dizem-lhe eles, o sofrimento atinge o homem sempre como pena por uma culpa; é mandado por Deus, que é absolutamente justo e age com motivações que são da ordem da justiça. Dir-se-ia que os velhos amigos de Job querem não só convencê-lo da justeza moral do mal, mas, de algum modo, procuram defender, aos seus próprios olhos, o sentido moral do sofrimento. Este, a seu ver, pode ter sentido somente como pena pelo pecado; e portanto, exclusivamente no plano da justiça de Deus, que paga o bem com o bem e o mal com o mal. O ponto de referência, neste caso, é a doutrina expressa noutros escritos do Antigo Testamento, que nos apresentam o sofrimento como castigo infligido por Deus pelos pecados dos homens. O Deus da Revelação é Legislador e Juiz em plano tão elevado, que nenhuma autoridade temporal o pode alcançar. O Deus da Revelação, efetivamente, primeiro que tudo é o Criador, do qual provém, juntamente com a existência, o bem que é essencial à criação. Por conseguinte, a violação consciente e livre deste bem, por parte do homem, é não só transgressão da lei, mas também ofensa ao Criador, que é o Primeiro Legislador. Tal transgressão tem caráter de pecado no sentido próprio, isto é, no sentido bíblico e teológico desta palavra. Ao mal moral do pecado corresponde o castigo, que garante a ordem moral no mesmo sentido transcendente em que esta ordem foi estabelecida pela vontade do Criador e Supremo Legislador. Daqui se segue também uma das verdades fundamentais da fé religiosa, baseada igualmente na Revelação; ou seja, que Deus é juiz justo, que premeia o bem e castiga o mal: «Vós, Senhor, sois justo em tudo o que fizestes; todas as vossas obras são verdadeiras, retos os vossos caminhos, todos os vossos juízos se baseiam na verdade, e tomastes decisões conforme a verdade em tudo o que fizestes que nos sobreviesse e à cidade santa dos nossos pais, Jerusalém. Sim, em verdade e justiça nos infligistes todos estes castigos por causa de nossos pecados». (23) Na opinião manifestada pelos amigos de Job exprime-se uma convicção que também se encontra na consciência moral da humanidade: a ordem moral objetiva exige uma pena para a transgressão, para o pecado e para o crime. Sob este ponto de vista, o sofrimento aparece como um «mal justificado». A convicção daqueles que explicam o sofrimento como castigo pelo pecado apoia-se na ordem da justiça, e isso corresponde à opinião expressa por um dos amigos de Job: «Pelo que vi, aqueles que cultivam a iniquidade e os que semeiam a maldade também as colhem». (24)

11. Job, no entanto, contesta a verdade do princípio que identifica o sofrimento com o castigo do pecado; e faz isso baseando-se na própria situação pessoal. Ele, efetivamente, tem consciência de não ter merecido semelhante castigo; e, por outro lado, vai expondo o bem que praticou durante a sua vida. Por fim, o próprio Deus desaprova os amigos de Job pelas suas acusações e reconhece que Job não é culpado. O seu sofrimento é o de um inocente: deve ser aceite como um mistério, que o homem não está em condições de entender totalmente com a sua inteligência. O Livro de Job não abala as bases da ordem moral transcendente, fundada sobre a justiça, como são propostas em toda a Revelação, na Antiga e na Nova Aliança. Contudo este Livro demonstra ao mesmo tempo, com toda a firmeza, que os princípios desta ordem não podem ser aplicados de maneira exclusiva e superficial. Se é verdade que o sofrimento tem um sentido como castigo, quando ligado à culpa, já não é verdade que todo o sofrimento seja consequência da culpa e tenha caráter de castigo. A figura do justo Job é disso prova convincente no Antigo Testamento. A revelação, palavra do próprio Deus, põe o problema do sofrimento do homem inocente com toda a clareza: o sofrimento sem culpa. Job não foi castigado; não havia razão para lhe ser infligida uma pena, não obstante ter sido submetido a uma duríssima prova. Da introdução do Livro deduz-se que Deus condescendeu com esta provação, em seguida à provocação de Satanás. Este, de fato, impugnou diante do Senhor a justiça de Job: « Acaso teme Job a Deus em vão?… Abençoastes os seus empreendimentos e os seus rebanhos expandem-se sobre a terra. Mas estendei a vossa mão e tocai nos seus bens; juro que vos amaldiçoará na vossa face». (25) Se o Senhor permite que Job seja provado com sofrimento, faça-o para demonstrar a sua justiça. O sofrimento tem caráter de prova. O Livro de Job não é a última palavra da Revelação sobre este tema. É um anúncio, de certo modo,da Paixão de Cristo. Entretanto, só por si, já é argumento suficiente para que a resposta à pergunta sobre o sentido do sofrimento não fique ligada, sem reservas, à ordem moral baseada somente na justiça. Se tal resposta tem uma fundamental e transcendente razão e validade, ao mesmo tempo apresenta-se não só insuficiente em casos análogos ao do sofrimento do justo Job, mas parece, mais ainda, reduzir e empobrecer o conceito de justiça que encontramos na Revelação.

12. O Livro de Job põe de modo perspicaz, a pergunta sobre o «porquê» do sofrimento; e mostra também que ele atinge o inocente, mas ainda não dá a solução ao problema. No Antigo Testamento notamos uma orientação que tende a superar o conceito segundo o qual o sofrimento teria sentido unicamente como castigo pelo pecado, ao mesmo tempo que se acentua o valor educativo da pena-sofrimento. Deste modo, nos sofrimentos infligidos por Deus ao povo eleito está contido um convite da sua misericórdia, que corrige para levar à conversão.
«Estes castigos não sucederam para a nossa ruína, mas são uma lição salutar para o nosso povo».(26)

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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