Carta aos Bispos do Continente Europeu sobre as relações entre Católicos e Ortodoxos na nova situação da Europa Central e Oriental

Caríssimos Irmãos no Episcopado:

 Na medida em que se intensificam os trabalhos de preparação para a próxima Assembleia especial para a Europa do Sínodo dos Bispos, desejo compartilhar convosco a minha alegria pela nova situação que se vai criando, particularmente na Europa central e oriental, e também a minha esperança com as novas possibilidades que se abrem para a vida da Igreja em tais regiões. A repercussão e o encaminhamento positivo, a nível mundial, das mudanças que se deram naquela zona do “velho continente”, a dimensão universal do ministério episcopal e a comunhão de todos os Bispos com o sucessor de Pedro levam-me a participar-vos de algumas reflexões sobre a nova situação e sobre suas consequências, no que diz respeito às relações entre católicos e ortodoxos.

Mudanças na Europa centro-oriental
1. Recentemente, diversos povos da Europa do Leste readquiriram – graças a Deus sem derramamento de sangue – o direito ao respeito pelas liberdades civis, inclusive a religiosa, que naquelas terras tinha sido, por decênios, limitada, reprimida ou suprimida. Estas mudanças e progressos são certamente fruto também da intervenção de Deus, quem com sabedoria e paciência dirige o curso da história em direção à sua meta escatológica: “recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef. 1, 10).

O clima de aversão à liberdade religiosa e de aberta perseguição atingiu, de uma maneira ou de outra, todos os crentes: católicos, ortodoxos, protestantes e membros de outras religiões.

A perseguição atingiu seu nível mais alto naqueles casos em que, como na Ucrânia, na Romênia, na Tchecoslováquia, as Igrejas católicas locais de tradição bizantina, com métodos autoritários e astuciosos, foram declaradas dissolvidas e inexistentes. Pressões, às vezes violentas, foram feitas a fim de que os católicos se incorporassem às Igrejas ortodoxas.

As recentes leis sobre a liberdade religiosa encaminham-se a dar garantia a todos da possibilidade de uma legítima expressão da própria fé, com estruturas e lugares de culto próprios.

Esta nova situação positiva permitiu a reorganização da Igreja católica de rito latino em diversas nações e a normalização da vida das Igrejas católicas de rito bizantino naqueles Países em que estas tinham sido suprimidas. A história está ressarcindo um acto de grave injustiça. O Senhor concedeu-me a graça de nomear os Bispos para tais Igrejas de rito bizantino na Ucrânia Ocidental e na Romênia. Elas agora vão retomando o processo normal da vida eclesial pública, saindo da clandestinidade em que a perseguição as tinha dolorosamente relegado.

Igualmente pude dar Bispos a diversas dioceses latinas, que durante anos tinham ficado sem nenhum. O que oferece a possibilidade de um crescimento ordenado da vida na Igreja. Os Pastores, com efeito, como mestres da fé e ministros da reconciliação, promovem o crescimento harmonioso das suas Igrejas e, ao mesmo tempo, desenvolvem relações fraternas com os outros crentes em Cristo em vista da recomposição da plena unidade por Ele querida, em cumprimento das disposições do Concílio Vaticano II, reafirmadas também no Código dos cânones das Igrejas orientais: “Praesertim vero Ecclesiae Pastores debent pro ea a Domino optata Ecclesiae unitatis plenitudine orare et allaborare sollerter participando operi oecumenico Spiritus Sancti gratia suscitato” (CCEO, cân. 902; cf. também CIC, cân. 755).

Tensões entre católicos e ortodoxos em tais regiões
2. Mas durante este processo de reorganização da Igreja Católica, por causa das feridas deixadas pelas tristes experiências do passado, manifestaram-se, infelizmente, problemas e tensões entre católicos e ortodoxos, em particular no que diz respeito à propriedade e uso dos lugares de culto já pertencentes às Igrejas católicas de rito bizantino, que foram na época confiscados pelos respectivos governos e, em parte, concedidos às Igrejas ortodoxas.

A controvérsia sobre os lugares de culto, teve repercussões não favoráveis até mesmo no âmbito do diálogo teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, que já há quase dez anos prosseguia de modo fecundo seu caminho. A reflexão comum sobre as exigências que decorrem de uma convivência fraterna, em busca da plena comunhão eclesial, segundo a vontade de Cristo para a sua Igreja, ajudará todos a encontrar uma solução equitativa e digna da vocação cristã. A reparação de uma injustiça do passado não poderá senão ajudar a positiva evolução das recíprocas relações.

Deve ser convicção de todos, mesmo nestes casos de discrepâncias mais contingentes e práticas, que o diálogo é ainda o instrumento mais apropriado para enfrentar um intercâmbio fraterno dirigido a resolver o contencioso em espírito de justiça, de caridade e de perdão. Os irmãos, que tempos atrás participavam dos mesmos sofrimentos e provações, não devem hoje enfrentar-se entre si, mas encarar juntos o futuro que se descortina com sinais promissores de esperança.

As Igrejas orientais católicas nas outras partes do mundo
3. A questão das relações entre católicos de rito oriental e ortodoxos não é, no entanto, limitada aos países do Leste europeu, mas, em formas distintas, põe-se também em qualquer lugar onde se encontrem as Igrejas orientais católicas. No Oriente Médio particularmente, além das Igrejas de tradição bizantina, convivem também as antigas Igrejas de tradição alexandrina, antioquena, armênica e caldéia. Nestas, os acontecimentos mais recentes puseram em evidência uma ameaça especial para as comunidades católicas, geralmente pouco numerosas. Devido às dificuldades daqueles países, repetidas vezes marcadas por longos conflitos, inclusive armados, vem sendo cada vez mais frequente a emigração com redobrados problemas, tanto para os que permanecem na pátria quanto para as comunidades orientais que se constituem na emigração.

O espírito de recíproca compreensão e comunhão, guiado pela palavra de São Paulo, que convida a “levar os fardos uns dos outros” (cf. Gál. 6, 2), ajudará a resolver as dificuldades objectivas seja nos países de origem que nos da diáspora. O que é tanto mais necessário quanto, em tais regiões, católicos e ortodoxos provêm frequentemente de uma idêntica tradição eclesial e dispõem de um património étnico-cultural.

Os Pastores vigiarão com solicitude para que seja o diálogo na caridade e na verdade a inspirar a reorganização e a vida das Igrejas orientais católicas, conforme às precisas orientações do Concílio Vaticano II. Os Bispos da Igreja católica, reunidos em Concílio, declararam no Decreto sobre as Igrejas orientais que “a Igreja Católica tem em grande estima as instituições, os ritos litúrgicos, as tradições eclesiásticas e a disciplina das Igrejas orientais” tendo expresso o auspício de que nas Igrejas “floresçam e cumpram com novo vigor apostólico a missão que lhes foi confiada” (Orientalium Ecclesiarum, n. 1). A este fim, os Padres conciliares pediram que “se proveja no mundo inteiro à tutela” de todas as Igrejas particulares (ibid., n. 4), pondo à sua disposição os instrumentos pastorais adequados para o cumprimento daquele serviço que tais Igrejas devem prestar com vistas a reger, educar e santificar os seus fiéis, pois para cada Igreja suas tradições litúrgicas, disciplinares e teológicas “correspondem mais aos costumes dos seus fiéis e são mais próprias para proporcionar o bem das suas almas” (ibid., n. 5). Este critério e esta orientação pastoral inspirarão a oganização das estruturas destas Igrejas, a formação teológica do seu clero, a educação catequética dos seus fiéis. Nisto está efetivamente, o autêntico serviço pastoral.

Solicitude pela unidade dos cristãos
4. O mesmo Concílio Vaticano II ensinou também que faz parte integrante da vida destas Igrejas, assim como de toda a Igreja católica, a solicitude, por elas reconhecida especialmente devido à própria origem, de promover a unidade dos cristãos: “Às Igrejas orientais, em comunhão com a Sede apostólica romana, compete a tarefa essencial de promover a unidade de todos os cristãos, especialmente os orientais, de acordo com os princípios do Decreto sobre o Ecumenismo promulgado por este Santo Concílio, em primeiro lugar com a oração, o exemplo de vida, a escrupulosa fidelidade às antigas tradições orientais, o mútuo e mais aprofundado conhecimento, a colaboração e a fraterna estima das coisas e dos corações” (ibid., n. 24).

Esta orientação foi há pouco novamente proposta pelo novo Código dos cânones das Igrejas orientais (CCEO, Cân. 903).

Dentre os complexos acontecimentos – distintos em razão de tempo e de lugar – que deram origem a estas Igrejas, para além dos condicionamentos culturais e das situações políticas, não faltou certamente o desejo do restabelecimento da plena comunhão eclesial, sem dúvida de acordo com os métodos e a sensibilidade do momento. Posteriormente os conflitos surgidos não anularam esta perspectiva, apesar de ter sido ofuscada em certas ocasiões. Hoje em dia, o diálogo teológico em andamento entre a Igreja católica e o conjunto das Igrejas ortodoxas visa esta finalidade com novo método e com diferentes colocações e perspectivas, segundo os ensinamentos e as indicações do Concílio Vaticano II.

O Decreto sobre o ecumenismo, com expressão forte e teologicamente densa, lembrou que “pela celebração da Eucaristia do Senhor em cada uma destas Igrejas, a Igreja de Cristo é edificada e cresce” (Unitatis redintegratio, n. 15). Através do serviço destas Igrejas “os fiéis unidos com o bispo têm acesso a Deus Pai por meio do Filho, Verbo Encarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, e entram em comunhão com a Santíssima Trindade, “feitos participantes da natureza divina (2 Ped. 1, 4)” (ibid.). Com aquelas Igrejas, portanto, devem cultivar-se relações como entre Igrejas irmãs, conforme a expressão do Papa Paulo VI no Breve ao Patriarca de Constantinopla, Atenágoras I (Anno ineunte, 25 de julho de 1967:

AAS 59 [1967], pp. 852-854).

A unidade que se procura – e que se deve procurar – com elas é a plena comunhão numa só fé, nos sacramentos e no governo eclesial (cf. Lumen gentium, n. 14), no pleno respeito da legítima variedade litúrgica, disciplinar e teológica, como tive ocasião de explicar na Carta Apostólica Euntes in mundum universum, na ocasião do Milênio do Batismo da Rus’ de Kiev (25 de janeiro de 1988, n. 10: AAS 80 [1988], pp. 949-950).

Consequências pastorais
5. Por isso, surgem consequências práticas e imediatas. A primeira delas foi expressa pelo Papa Paulo VI – que está a conservar ainda hoje sua plena validade – no discurso pronunciado na catedral do Patriarcado ecuménico, na ocasião da sua visita: “Nous voyons plus clairemente ainsi que c’est aux chefs des Églises, à leur hiérarchie, qu’il incombe de mener les Églises sur la voie qui conduit à la pleine communion retrouvée. Ils doivent le faire en se reconnaissant et en se respectant comme pasteurs de la partie du troupeau du Christ qui leur est confié, en prenant soin de la cohésion de la croissance du peuple de Dieu et en evitant tout ce qui pourrait le disperser ou mettre de la confusion en ses rangs” (25 de julho de 1967: AAS 59 [1967], p. 841).

Uma segunda consequência está na recusa de qualquer forma indevida de proselitismo, evitando de maneira absoluta na ação pastoral qualquer tentação de violência e qualquer forma de pressão. A atividade pastoral, no entanto, não poderá não respeitar a liberdade de consciência e o direito que cada qual tem de aderir, se quiser, à Igreja católica. Trata-se, em definitivo, de respeitar a ação do Espírito Santo, que é Espírito de verdade (cf Jo. 16, 13). O Decreto conciliar sobre o ecumenismo o indicou e motivou: “É claro que a obra de preparação e de reconciliação de cada uma das pessoas que desejam a plena comunhão católica é, por sua natureza, distinta da iniciativa ecuménica; não há, porém, nenhuma oposição, pois tanto uma como outra procedem da admirável disposição de Deus” (Unitatis redintegratio, n. 4).

A terceira consequência é que, obviamente, não é suficiente evitar os erros, mas é necessário estimular positivamente a vida comum no recíproco e mútuo respeito. Esta maneira de atuar foi sem dúvida proposta e reiterada como linha de ação nas relações entre católicos e ortodoxos, como em declaração conjunta o afirmaram o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I: “le dialogue de la charité entre leurs Églises doit porter des fruits de collaboration désintéressée sur le plan d’une action commune au niveau pastoral, social et intellectuel, dans un respect mutuel de la fidélité des uns et des autres à leur propres Églises” (28 de outubro de 1967: AAS

59 [1967], p. 1055). Como o disse na Encíclica Slavorum apostoli, tudo isto ajudará ao enriquecimento recíproco das duas grandes tradições, a oriental e a ocidental, e ao caminho em direção à completa unidade.

Ao serviço do ecumenismo
As Igrejas orientais católicas conhecem e aceitam com espírito de confiança o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre o ecumenismo, e pretendem dar sua contribuição à procura da plena unidade entre católicos e ortodoxos. É motivo de alegria constatar que deste fato vai surgindo um consenso positivo também nas relações bilaterais, como se deu nas recentes declarações.

Auspicio de coração que, ali onde convivam juntos católicos orientais e ortodoxos, se estabeleçam relações fraternas de mútuo respeito e de sincera procura de um testemunho comum ao único Senhor. O que ajudará não somente a convivência nas circunstâncias concretas, mas facilitará também o diálogo dirigido a superar o que ainda divide católicos e ortodoxos. Ser fiéis testemunhas de Jesus Cristo, que nos libertou, deveria ser a maior preocupação numa época de mudanças culturais, sociais e políticas, para poder pregar juntos, e com credibilidade, o único Evangelho de salvação e ser artífices da paz e da reconciliação num mundo sempre ameaçado de conflitos e de guerras.

Ao confiar estes sentimentos e estas esperanças à intercessão da Virgem Theotokos, venerada igualmente no Oriente e no Ocidente, para que como Hodigitria guie todos os cristãos no caminho do Evangelho e da plena comunhão, de coração vos concedo, caríssimos Irmãos no episcopado, e às comunidades que vos foram confiadas uma particular Bênção Apostólica.

Vaticano, 31 de maio de 1991.

IOANNES PAULUS PP. II
 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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