Ateísmo e Nova Religiosidade – EB

Em síntese: O homem e Deus, na época contemporânea, não estão mais em competição mútua, como se pensava no século passado. O ser moderno não quer dizer ser religioso. Acontece, porém, que a religião hoje reaparece após a onda de ateísmo do século passado (…) reaparece desligada da razão ou na base de fortes emoções e sentimentos. Isto se deve, em grande parte, ao fato de que as soluções racionais parecem insuficientes para atender ao homem e seus problemas hoje; a ciência já não oferece o que dela esperou o cientificismo de outras épocas; donde o recurso à magia, ao falso milagre, ao extraordinário, que os homens querem tornar ordinário ou cotidiano. Sem a bússola da razão, o senso religioso pode degenerar no fantasioso, imaginativo e até no desumano, como acontece no fanatismo e nos grupos pretensamente orientados por vozes e mensagens do além. A razão jamais poderá compreender as verdades da fé, mas poderá sempre examinar e testar as credenciais da mesma.

O fenômeno religioso em nossos dias chama a atenção. Ateísmo e ondas de misticismo caminham lado a lado; pode-se mesmo dizer que há um surto quase violento de religiosidade emotiva e irracional, enquanto a fé cristã continua a proclamar sua mensagem perene tentando utilizar os moldes da cultura moderna.

Desde 1965 (ano terminal do Concílio do Vaticano II), existe em Roma um “Secretariado para o Diálogo com os Não Crentes”, encarregado de estudar o ateísmo e a indiferença religiosa. Em 1988, o S. Padre João Paulo II deu a esse órgão o título de “Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes”, confirmando suas atribuições e sugerindo-lhe contactar assiduamente as correntes do pensamento contemporâneo. O Presidente desse Conselho é o Cardeal francês Paul Poupard, prelado de grande cultura, Reitor do Institut Catholique de Paris, autor de obras referentes à fé católica e ao pensamento de nossos dias.

Em 1985, o Conselho para o Diálogo com os Não Crentes empreendeu um inquérito junto às Conferências Episcopais do mundo inteiro, às Universidades Católicas e a personalidade de renome a respeito da incredulidade e da indiferença religiosa. Tal inquérito trouxe à tona quadros assaz diversificados, espelho da realidade contemporânea: assim originou-se um relatório emanado do Conselho, do qual vão, a seguir, extraídos os tópicos mais relevantes.

O panorama religioso do nosso mundo

O relatório considera cinco setores da humanidade contemporânea.

Países socialistas

A ideologia fundada sobre o materialismo histórico e dialético parece estar no seu ocaso. Ainda ocupa espaço notável, porque sustentada pelos governantes e mentores de tais países. Mas a fachada impressionante e o triunfalismo das palavras e da propaganda escondem uma situação real bem diferente: o edifício construído pela ideologia está vazio, desertado pelas inteligências, desmentido pelos fatos… Os respectivos governantes vão compreendendo que as massas não os seguem; o desmoronamentoda ideologia é patente aos olhos de todos. O homem, desiludido, se vê a braços com a inquietude, a solidão e a angústia.

O Ocidente industrializado e tecnológico

Está contaminado pela mentalidade consumista e pelo hedonismo (ou a procura  do prazer). Em consequência, muitos cidadãos questionam o sentido da vida, cujos grandes objetivos parecem ser tão somente o pragmatismo utilitário e a procura da eficiência a todo custo. Daí se originam o relativismo moral, a indiferença religiosa e o secularismo. O homem que aceite tal modo de pensar e viver, se torna incapaz de experimentar valores transcendentais e procura sua realização no sucesso econômico e no prestígio social.

Esses bens ilusórios não podem deixar de gerar o sentido de solidão, a insatisfação posta em demanda de algo maior, melhor e mais duradouro; as capacidades espirituais do homem emergem com sua sede, aberta ou dissimulada, de respostas mais adequadas para os anseios humanos.

A tecnologia parece “mecanicizar” a mentalidade dos homens, fechando-os em parâmetros materiais, pilotados unicamente pelas conquistas da técnica. Todavia esse progresso meramente horizontal faz ameaças mortais e acarreta perigos nunca dantes imaginados.

Como quer que seja, os países do bem-estar abrem, a seu modo, o campo para o debate das grandes questões relativas ao sentido da vida e da morte, do homem e da Ética.

América Latina

O crescente hiato entre ricos e pobres cria graves tensões entre as duas ideologias antagônicas: o capitalismo liberal, cuja única lei é o ganhar mais, dentro de uma visão individualista e utilitária do homem, e o coletivismo marxista, que professa o mito da revolução e a mística da luta de classes. Sobre este pano de fundo, a Igreja aponta aos povos os valores transcendentais, propondo-lhes um humanismo autenticamente cristão contido na Doutrina Social de Encíclicas e documentos oficiais (do qual o último, muito concreto e atualizado, se intitula Sollicitudo Rei Socialis).

África

Na África estão em voga certas ideologias baseadas no retorno aos valores tradicionais (a solidariedade na família, na tribo, a cultura aborígene, os idiomas nativos…). São, porém, dominadas pelo totalitarismo de Estado e o absolutismo que regem certos países. Nesse contexto a Igreja emerge como garantia do respeito às pessoas e da liberdade dos povos. O marxismo-leninismo, que governa várias nações africanas, interessa tão somente à classe dirigente e a alguns setores da cultura, enquanto o povo lhe fica estranho, impregnado de sua religiosidade tradicional. A luta de classes é vista por muitos cidadãos como fator de dissolução da solidariedade e da comunhão existentes entre os membros do mesmo clã – o que favorece a irresponsabilidade e a perda da identidade étnica.

Ásia

A Ásia, berço de religiosidade e sabedoria milenares, conserva firmemente as suas tradições, mas também se acha penetrada pelo marxismo, apesar dos desastres provocados por esta ideologia em alguns países. Em tal continente, a  Igreja prega a sua mensagem de salvação, em diálogo  com as antigas tradições religiosas e culturais.

Após este percurso panorâmico, parece oportuno dizer algo sobre ideologia, já que o tema foi mais de uma vez mencionado anteriormente.

Ideologia e crença

Ideologia significa literalmente estudo das ideias. Ideólogo era, nos séculos passados, o cultor de tal estudo. Hoje ideologia designa as ideias dominantes ou o sistema de pensamento de um grupo social, que tudo vê unilateralmente, ou seja, em função da preservação da situação vigente ou, vice-versa, em função da  transformação da mesma. Pode haver ideologia também no setor da religião, onde se fala, por exemplo, de “ideologia islâmica”.

As ideologias costumam apelar para a violência, instigada por certa intuição “mística”, pois a  ideologia mobiliza as aspirações, as energias, os interesses, os sonhos de uma sociedade, propondo um futuro belo e risonho. A ideologia tende a oferecer a explicação última, absoluta e obrigatória de todas as indagações de um grupo. A  este título, as ideologias têm certa analogia com os mitos e com a própria religião. Na Carta Octogesima Adveniens (n.º 28) Paulo VI dizia que a ideologia pode tornar-se “um novo ídolo”. O Documento de Puebla, emitido pelo episcopado latino-americano em 1979, por sua vez, assim se refere às ideologias como “religiões leigas”:

“Entre as múltiplas definições que se podem propor, chamamos aqui ideologia toda concepção que ofereça uma visão dos diversos aspectos da vida, desde o ponto de vista de um grupo determinado da sociedade. A ideologia manifesta as aspirações desse grupo, convida para certa solidariedade e combatividade e fundamenta sua legitimação em valores específicos. Toda ideologia é parcial, já que nenhum grupo particular pode pretender identificar suas aspirações com as da sociedade global (…).

As ideologias trazem em si mesmas a tendência a absolutizar os interesses que defendem, a visão que propõem e a estratégia que promovem. Neste caso, transformam-se em verdadeiras “religiões leigas”. Apresentam-se como uma explicação última e suficiente de tudo e se constrói assim um novo ídolo, do qual se aceita, às vezes, sem que as pessoas se deem conta, o caráter totalitário e obrigatório. Nesta perspectiva não é de estranhar que as ideologias tentem instrumentalizar pessoas e instituições a serviço da eficaz consecução de seus fins. Eis o lado ambíguo e negativo das ideologias (…).

Isto lhes confere uma mística especial e a capacidade de penetrar os diversos ambientes de modo muitas vezes irresistível. Seus slogans, suas expressões típicas, seus critérios, chegam a marcar profundamente e com facilidade mesmo aqueles que estão longe de aderir voluntariamente a seus princípios doutrinais. Desse modo, muitos vivem e militam praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem haver tomado consciência disso… Tudo isto se aplica tanto às ideologias que legitimam a situação atual, como àquelas que pretendem mudá-la” (n.º 535-537).

Os psicossociólogos mostram como a ideologia pode suscitar a crença cega e a esperança acrítica de um grupo. Este, em consequência, rejeitará como inimigo do povo todo indivíduo que não compartilhe tal modo de pensar. A ideologia inspira os militantes e  revolucionários  que, consagrando-se ao seu serviço, encontram motivação suficiente para levá-los até o sacrifício da própria vida.

As  ideologias – tanto as  liberais como as coletivistas, marxistas – apoiam-se sobre uma interpretação irracional da realidade ou dos mecanismos econômicos e sociais. Adam Smith (1723-90), por exemplo, um dos primeiros mentores do capitalismo liberal, dizia que este é a “mão invisível” da Divindade e o penhor do bem-estar coletivo.

Conclui-se, pois, que  nosso mundo está marcado por um paradoxo: de um lado exalta-se o acume e o exercício da razão (na ciência, na técnica e na Filosofia racionalista…); de outro lado, porém, seguem-se correntes emotivas, desligadas da bússola da razão e, por isto, tendentes a escravizar o homem.

A nova religiosidade

Tendo abandonado, em parte, a fé que berçou a civilização ocidental ou o Cristianismo, para aderir a cosmo visões materialistas de direita  ou de esquerda, o homem contemporâneo se vê frustrado, esvaziado, descrente de soluções humanas para seus múltiplos problemas e, por isto, propenso a procurar no além ou na mística novas respostas. Assim, ao passo que no século passado e nos primeiros decênios deste se punha  o dilema “Ou Deus ou o homem”, “Ou a fé ou a ciência”, em nossos dias já se diz “Deus e  o homem”, “A ciência e a fé”. Todavia nem sempre se dá o retorno ao Cristianismo, que aprecia a razão como via condutora ao Transcendental, mas muitos recorrem diretamente ao “transcendental” por vias irracionais e emotivas; dir-se-ia que estão céticos em relação à razão para explicar ao homem os mistérios da vida e do mundo.

A procura do sentido da vida e do porquê viver, lutar, sofrer, morrer… leva naturalmente a Deus, visto que as respostas imanentes são insatisfatórias. A nova religiosidade emotiva ou meio-irracional assume três aspectos diferentes:

1) “a religião do sucesso”. Apresenta a crença como penhor seguro de sucesso material, de cura de doenças, superação de carências econômicas… A doença, a pobreza, as desgraças seriam obras de Satanás, que deve ser contido mediante a força da fé e exorcismos. Os fracos e infelizes seriam tais por não terem fé. A riqueza e a saúde serão a prenda de quem foi libertado do Maligno. Tem-se aí um “materialismo teológico” ligado às “igrejas eletrônicas”, em grande parte norte-americanas. O pentecostalismo e o neo-pentecostalismo protestantes estão neste rol, que atrai principalmente as pessoas mais desprovidas de recursos materiais ou mais incapacitadas de prover às suas necessidades materiais; todavia não se excluem pessoas abastadas, que estejam à procura de soluções mágicas para seus problemas. – São correntes religiosas de pouco conteúdo doutrinário e de grande efervescência sentimental, que reduzem seu culto muitas vezes ao atendimento dos numerosos clientes que as procuram. Tal é, entre outras, a Igreja  Universal do Reino de Deus, fundação brasileira recente, que vem crescendo na base da apelação para os sentimentos e as emoções e do “exorcismo” curandeiro.

2) O revisionismo bíblico. Há correntes que fazem uma radical reinterpretação da Bíblia, acrescentando-lhe, por vezes, uma nova revelação, como são a dos Mórmons a das Testemunhas de Jeová, a do Moonismo e… quiçá a dos Adventistas. Entre os católicos, registram-se certos grupos dissidentes, inspirados por “aparições” e “visões” não autênticas como a de El Palmar de Troya,¹ a do Monte Santo em Guiricema de Minas. Encontram certa ressonância não só entre os mais pobres, mas também na classe média.

3) As religiões de cunho panteísta, geralmente de origem oriental. Assumem várias modalidades: Hare Krishna, Meditação Transcendental, Gnosticismo, Esoterismo, Rosa-Cruz (embora esta diga que não é religião, faz as vezes de uma cosmovisão religiosa panteísta), Teosofia, Antroposofia, Logosofia… O panteísmo ou o monismo é, pode-se dizer, uma forma velada de ateísmo, pois professa que Deus, o homem e o mundo são da mesma substância ou são divinos, de modo que o homem  pode mais e mais exercer poderes próprios da Divindade. O panteísmo costuma atrair (não exclusivamente) pessoas de certa cultura, que não querem renegar a religião, mas (consciente ou inconscientemente) não aceitam a dependência do homem em relação a Deus Criador e Transcendente. A tese da reencarnação costuma estar associada a este tipo de concepção religiosa, pois ela professa a auto-salvação do homem mediante sucessivas reencarnações.

A corrente New Age (Nova Era), já mencionada em PPR 325/1989, pp. 278-283, é uma forma sincretista que pretende ultrapassar e substituir o Cristianismo, propondo um panteísmo místico. Vejamos agora:

O desafio à Igreja

O surto e a expansão dos novos grupos religiosos em nossos tempos sugere várias reflexões:

1) Vê-se que o homem e Deus não estão mais em competição mútua, como se pensava no século passado. O ser moderno não quer dizer ser irreligioso ou a religioso; nossa época não é uma época pós-religiosa, como se diz por vezes.

2) Acontece, porém, que a religião hoje reaparece depois da onda de ateísmo do século passado, (…) reaparece desligada da razão ou na base de emoções e sentimentos. Isto se deve a dois fatores principais:

a) as soluções racionais e normais parecem insuficientes para atender ao homem; a ciência já não oferece o que dela esperou o cientificismo; donde o recurso à magia, ao milagroso, ao extraordinário, que os homens querem tornar ordinário ou cotidiano;

b) a onda de antitelectualismo iniciada em meados do século XIX com Sören Kierkegaard (+ 1848) perdura até hoje, ao menos no tocante à  metafísica e à religião. – Sem a bússola da razão ou do raciocínio, o senso religioso (que costuma ser sempre muito forte), pode degenerar no fantasioso, imaginativo e até no desumano, como acontece no fanatismo e nos grupos pretensamente orientados por vozes e mensagens do além. A razão jamais poderá compreender as verdades da fé, mas poderá examinar a  testar as credenciais da mesma.

3) Mais do que nunca, o fiel católico precisa do dom do discernimento dos espíritos, para que se possa orientar entre as correntes de pensamento ambíguas que o cercam. À fé não se opõe apenas o ateísmo, mas também a idolatria da nova religiosidade.

4) Consequentemente, o fiel católico que deseje enfrentar o mundo de hoje, não pode dispensar sólida formação doutrinária. A Igreja não favorece o antitelectualismo; ela precisa de pessoas preparadas no campo filosófico e no teológico para poder dialogar com o mundo contemporâneo. Não basta pensar na Pastoral ou na ação prática; requer-se um cabedal de ideias claras para que a Pastoral não se desvirtue ou não venha a ser antieclesial. Também não basta que as pessoas “se sintam bem” (coisa tão procurada e estimada em nossos dias) na igreja; o sentir-se bem é algo de subjetivo e pode estar desligado da verdade e da autêntica fé. Não se exclui o “sentir-se bem”, mas dê-se-lhe por fundamento a autêntica profissão de fé, que certamente tem em anexo uma parcela da Cruz de Cristo.

Esta problemática ainda será aprofundada no decorrer da entrevista que, a seguir, vai transcrita.

Uma entrevista notável

O Cardeal Paul Poupard, Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes, respondeu nos seguintes termos ao repórter Angelo Bertani, da revista JESUS (edição de maio 1989, pp. 74s):

Repórter: “Afirma o Cardeal Daneels¹ que a alternativa para a fé não é necessariamente o ateísmo, mas pode ser a  idolatria. Que diz V. Exma.?”

Paul Poupard: “De fato; o ateísmo puro é extremamente raro. Sartre diz em uma de suas obras, “Les Mots”, aliás uma obra-prima literária: “O ateísmo é um empreendimento difícil e de longo fôlego. Creio tê-lo realizado até o fim”. Sim; Sartre, Marx, Engels tinham uma certa inteligência cientificista ou niilista. Mas a questão se põe para Nietzsche: que é a sua exaltação da vida e do super-homem senão  uma série de ídolos feitos absolutos no lugar de Deus? E Lênin, com o mito do proletariado, da revolução, do comunismo… Não seriam ídolos tudo isto?  E não falamos da grande multidão daqueles que se dizem não-crentes com os seus ídolos mais terra-a-terra: sexo, dinheiro, drogas, esporte, sucesso econômico e social, prazeres estéticos e de outra ordem meramente terrena.

A idolatria conheceu um desenvolvimento extraordinário e adquiriu o caráter de culto do Estado nos países socialistas. Por exemplo, assistimos na União Soviética ao ressurgimento dos mitos arcaicos, como o culto dos heróis, dos quais o primeiro é Lênin, do fogo eterno, símbolo da vida, dos ritos do batismo (imposição do nome), da iniciação da juventude (Confirmação), do casamento e das exéquias socialistas. Aliás, é preciso dizer que essas formas de idolatria socialistas não são senão um infeliz plágio dos ritos cristãos, plágio um pouco ridículo e que desagrada ao povo”.

R.: “Por conseguinte, os “novos crentes” não têm muita segurança. E os “novos ateus” não deixam de ter esperanças…”

P.P.: “Os novos crentes, os adoradores dos ídolos, encontram-se em posição insustentável. E isto, porque, após Jesus Cristo, os ídolos, os verdadeiros ídolos, são simplesmente impossíveis. Os  velhos deuses não podem mais ressuscitar, não podem ser levados a sério. É impossível crer sinceramente em Vênus, Mercúrio, Dionísio, etc. Ao homem europeu que fez a experiência de Cristo e teve o conhecimento da Revelação, não resta senão uma alternativa: ou Cristo ou o nada. Os deuses pagãos morreram realmente.

Os “novos ateus”, os verdadeiros ateus, podem ter esperança? Sim, porque a esperança é a virtude dos tempos trágicos. E os dados são inequívocos: adesão a Deus, que se revelou em Jesus Cristo, ou a escolha do nada. É diante desta prospectiva séria que Dostoievskij põe nos lábios de seus personagens: “O ateísmo pleno se encontra no alto da escada, no penúltimo degrau que leva à fé plena”.

R.: “Que diria hoje V. Exma. a um ateu que lhe afirmasse: “Eu sou ateu!?”

P.P.: “Eu o contemplaria profundamente nos olhos (como Jesus) e lhe diria: “Que maravilha! Tu, com o teu semblante iluminado pelo Espírito, com os teus olhos em que se lê uma individualidade imortal, com todo o teu corpo, obra-prima da criação, tu, com aquilo que és, tu és a prova mais estupenda de uma evolução criadora do universo, que, logicamente, não pôde ser orientada senão por uma inteligência amorosa, que os homens, há milênios, chamam Deus”. E, se ele me dissesse ainda: “Não creio em Deus”, eu lhe responderia: “Mas Deus crê em ti”.

R.: “E que diria V. Exma. a quem afirmasse: “A nós o fato religioso não interessa em absoluto?”

P.P.: “Eu lhe diria: “É porque vives na superfície de ti mesmo, na distração e no divertimento. E negligencias a dimensão mais profunda, mais bela, mais interessante do teu ser. A vida provavelmente tem, em certos momentos (e tu o sabes bem!), um sabor de fastio; talvez em certas ocasiões um sentimento de desespero te acometa, e isto te leva a uma procura insaciável de prazeres. Mas sabes que se trata de um beco sem saída. Entra, pois, de novo dentro de ti mesmo, descobre as tuas profundidades, a dimensão total do teu ser e então descobrirás dentro de ti algo de sagrado, inviolável, uma santidade que tu mesmo não pudeste poluir, uma fome do além, uma nostalgia de beleza”.

R.: “Enfim, como enfrentar aqueles que dizem: “Fiz uma experiência à altura das minhas necessidades em tal ou tal grupo ou seita, no(a) qual me sinto realizado e seguro?”

P.P.: “Dir-lhe-ia: “Uma experiência religiosa que não seja senão a satisfação de necessidades íntimas e um meio de realizar-se, só pode ser uma ilusão, uma procura de si mesmo, o arbitrário elevado à categoria do absoluto, uma falsa segurança. Quem a faz, não sai deste mundo nem do seu eu mais ou menos turvo e egoísta. É preciso renunciar à auto-suficiência, à autossuficiência deste mundo, e aceitar uma verdade que vem de outra fonte, abrir-se ao absolutamente outro. Aceitar esse absolutamente outro que nos põe radicalmente em foco, é uma via para nos libertarmos do mundo e de nós mesmos. Esse Outro é Jesus Cristo e o seu Evangelho, vivo na sua Igreja”.

R.: “Portanto, que é que ainda ensinam os “novos crentes”, os “ateus” ou os “indiferentes”?

P.P.: “Os novos crentes, para os cristãos, são figuras do passado, “os velhos deuses que dormem em mortalhas de ouro” (Renan), que nada pode ressuscitar: uma posição impossível e falsa. Os indiferentes, por princípio, nada têm a dizer. “Boh!” não é uma resposta. Os “novos ateus” que levaram o seu ateísmo até o extremo, os ateus coerentes consigo mesmos, os ateus heroicos e trágicos, são os que ficam mais próximos de nós e paradoxalmente nos podem ensinar algo: um mundo de total ausência de Deus, escolhido de maneira consciente e vivido de modo trágico. Eles nos dizem o que é a ausência real e, consequentemente, nos fazem saber o que é a presença real de Deus entre nós:  luz do coração, sentimento de liberdade, alegria e esperança”.

Eis como o cardeal Poupard vê o ateísmo contemporâneo; julga que é algo de artificial ou violento demais para o homem, a tal ponto que os ateus mais radicais parecem fadados a ter pouca estabilidade na sua posição ateia; experimentando o vazio e o trágico de um mundo sem Absoluto e sem plenitude de valores, estão perto de passar para o campo da fé  ou do reencontro do homem consigo e com os mais profundos anseios da alma humana.

O caso mais doloroso e lamentável é o dos indiferentes ou o dos que ficam descomprometidos com qualquer ideal, ainda que errôneo. Já o Apocalipse comenta a hediondez de tal atitude, atribuindo a Cristo as palavras: “Conheço tua conduta; não é nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque é morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca” (Ap 3,15s).

O cristão, portanto, ao ver um ateu sincero, honesto, fiel aos seus deveres, alimenta esperanças a seu respeito. Sim; Deus está no termo de chegada da retidão e lealdade de consciência.

***

¹A propósito ver  PR 208/1977, pp. 153-163.

¹Arcebispo de Malines-Bruxelas (Bélgica).

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 329 – Ano 1989 – p. 457

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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