As relíquias: Como entender? EB (Parte 1)

Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 336 – Ano: 1990 – p.
226

Em síntese: A veneração de
relíquias dos Santos tem seu fundamento na própria natureza humana, que tende a
guardar com estima os despojos e sinais que lembrem estes queridos já
falecidos.  No plano da fé esta veneração
é corroborada pela convicção de que os corpos dos Santos foram templos do
Espírito Santo e instrumentos por Este utilizados para produzir boas obras.

A S. Escritura oferece
fundamento à prática cristã quando, por exemplo, nos diz que lenços e panos que
haviam tocado o corpo de São Paulo eram aplicados aos doentes com efeitos
salutares para estes (cf. At 19, 11s); em Mt 9, 20 lê-se que certa mulher
enferma tocou as vestes de Jesus, confiante em sua cura, e foi por Jesus curada
(…). A Tradição cristã, desde os primeiros séculos, conservou e venerou as
relíquias como símbolos dos santos mártires e confessores chamados à Casa do
Pai.  Assim se foi consolidando o culto
(relativo) das relíquias na Igreja.

Não se podem negar abusos
ocorridos de boa ou de má fé: falsas relíquias foram cá e lá inocentemente
tomadas por autênticas, como também os exploradores da credulidade popular
podem ter falsificado relíquias. As autoridades da Igreja têm-se mostrado
vigilantes a propósito, evitando todo excesso e proibindo severamente a venda
de relíquias.

Por “relíquias”  entendem-se propriamente os despojos mortais
(fragmentos da carne ou dos ossos) dos santos. 
Em sentido largo, compreendem-se também os objetos que de algum modo
entraram em contato com esses santos (vestes, utensílios, pedaços de pano,
etc.).

Já que tais elementos gozam
de culto público na Igreja, interessa-nos aqui averiguar, antes do mais, os
fundamentos e os inícios desse culto.  A
seguir, consideremos o seu significado teológico.

Fundamentos bíblicos

Em se tratando de relíquias,
torna-se particularmente importante distinguir entre o Antigo e o Novo
Testamento.

Antigo Testamento

No Antigo Testamento,
verifica-se respeito notável no sepultamento de insignes, como Abraão (cf. Gn
25,9s), Jacó (cf. Gn 50, 12s). José (cf. Gn 50, 24-26; Ex. 14, 19), Davi (cf.
1Rs 2,10)… O texto sagrado refere também como Deus, mediante o manto de
Elias, se dignou realizar um milagre: Eliseu, ferindo as águas do Jordão com
essa relíquia do grande profeta, conseguiu separá-las em duas bandas (cf. 2Rs
2,14); lê-se outrossim que os ossos de Eliseu, postos em contato com um cadáver,
tornaram-se instrumentos para a ressurreição do mesmo (cf. 2Rs 13,21).

Em geral, porém, o judeu não
podia deixar de ser muito sóbrio no seu apreço a despojos mortais, pois as leis
rituais do Antigo Testamento tinham o cadáver na conta de objeto legalmente
imundo, ou seja, objeto cujo contato alheava do culto sagrado.  Era preciso que na consciência do povo de
Deus tomasse vulto a idéia da futura ressurreição dos corpos para que se
estimasse melhor o valor do corpo humano, valor que subsiste mesmo após a morte
do respectivo indivíduo.

Ora a crença na glorificação
final dos corpos foi amadurecendo aos poucos em Israel até ser afirmada com
toda a clareza depois que Jesus Cristo se mostrou aos homens como novo Adão
ressuscitado, ou seja, no Novo Testamento.

Novo Testamento

No conjunto de escritos
assim designados, encontramos alguns textos que contêm em cerne a justificativa
do culto das relíquias :

At 19,11s : “Deus realizava
milagres extraordinários por intermédio de Paulo, de modo que lenços e outros
panos que haviam tocado o seu corpo, eram aplicados aos doentes; então
afastavam-se destes as moléstias e eram expulsos os espíritos malignos”.

Nesta passagem, como se lê,
certos objetos consagrados pelo contato com o corpo de um santo (ainda que
vivo) são utilizados por Deus como instrumentos de milagres; os fiéis parecem ter
estimado e guardado tais objetos com profunda veneração.  Note-se também que, pouco depois de referir o
episódio acima, São Lucas faz questão de dissipar a impressão de que os
milagres efetuados por intermédio de Paulo tenham tido algo de comum com as
artes mágicas de judeus ou pagãos :

“Muitos dos que haviam
acreditado (em Cristo), iam confessar e declarar as suas obras.  Muitos também, que tinham exercido artes mágicas,
ajuntaram os seus livros e queimaram-nos em presença de todos.  Calculou-se o seu valor, e achou-se que
montava a cinqüenta mil moedas de prata. Foi assim que o poder do Senhor fez
crescer a palavra e a tornou sempre mais eficaz”  (At 19, 18-20).

Mt 9, 20s:  o Evangelho nos refere como uma mulher
hemorroíssa se viu curada por haver tocado a orla do manto de Cristo:

“Eis que uma mulher que,
havia doze anos, sofria de um fluxo de sangue, se aproximou dele (Jesus) por trás
e Lhe tocou a orla do manto.  Dizia
consigo: “Se eu tocar ainda que seja apenas as suas vestes, serei curada”.  Jesus voltou-se então e, vendo-a, lhe disse: “Tem
confiança, minha filha, a tua fé te salvou”.

Neste episódio chama de modo
particular a nossa atenção a aprovação indiretamente dada por Jesus às palavras
da pobre enferma, que atribuía imenso valor aos simples contato com a
vestimenta do Divino Mestre, com razão julgava ela que o Senhor poderia fazer
desse objeto o instrumento de uma graça extraordinária.

Está claro que a estima
tributada aos objetos santificados pelo uso dos Apóstolos e principalmente do
Senhor Jesus não se extinguiu com a morte destes.  O apologista criado Quadrato, por exemplo,
refere no séc. II que em Nazaré (cidade da infância de Cristo) a população
ainda conservava relhas de arado confeccionadas por Jesus.  Sabe-se também que nas comunidades visitadas
ou catequizadas por São Pedro, São Paulo, São João ou fiéis guardavam tudo que
lhes pudesse lembrar esses dignos obreiros do Senhor (em primeiro lugar, sem dúvida,
as suas cartas e os seus despojos mortais; além disso, porém, os objetos de uso
dos mesmos).

Os cristãos não podiam
deixar de se sentir estimulados a essa praxe ao lerem o elogio proferido pelo
Senhor a respeito de Maria de Betânia, que ungira o corpo do Mestre pouco antes
do desenlace final:

Mc 14,6-9: “Ela me fez uma
obra; … embalsamou antecipadamente o meu corpo para a sepultura.  Em verdade vos digo: onde quer que for
pregado no mundo este Evangelho, será narrado o que ela acaba de fazer para se
conservar a lembrança dessa mulher” (cf. Mt 26, 9-12; Jo 12,7).

Com estas palavras Jesus
aprovava solenemente a veneração póstuma do seu corpo sagrado.  Os dizeres do Divino Mestre implicavam
outrossim um convite a que se tratassem de modo semelhante os despojos de todos
os justos que Ele no decorrer dos tempos enxertaria em seu Corpo Místico,
a fim de neles prolongar a vida da Cabeça, ou os mistérios da Redenção.

Foi, sem dúvida, o que as
posteriores gerações cristãs depreenderam dos ensinamentos do Evangelho e dos
Apóstolos.

Os primeiros marcos da
Tradição cristã

Já os fiéis contemporâneos
aos Apóstolos aparecem na história a prestar estima especial, ou propriamente
religiosa, aos despojos mortais dos homens de Deus.

Os dois mais antigos
documentos relativos a essa praxe são: a Ata do “Martírio de Santo Inácio de
Antioquia”, redigida em 110 (três anos após a morte desse santo bispo), e a do “Martírio
de São Policarpo”, bispo de Esmirna (Àsia menor), escrita logo após o desenlace
do herói cristão (156 ou 157).

Notem-se os termos com que
se encerra o relato do “Martírio de S. Inácio”, o qual foi publicamente
devorado pelas feras:

 “Unicamente as partes mais duras de seus santos
despojos haviam escapado (aos dentes das feras): foram recolhidas, levadas para
Antioquia e depositadas num cofre, à guisa de inestimável tesouro; assim foram
elas entregues à santa assembléia dos fiéis por causa da graça que reside no mártir”
(Funk, Patres Apostolici  II 284).

Por muito breves que sejam
estes dizeres, dão-nos a ver como os cristãos percebiam nos despojos materiais
do mártir a graça ou o valor espiritual que a tais elementos se prendia; a
piedade dos fiéis, portanto, para com as relíquias era toda relativa, pois se
dirigia propriamente à pessoa do Santo, que se tornara perfeito membro de
Cristo, e, em última análise, ao próprio Cristo.

É, aliás, o que o próprio S.
Inácio insinuava ao se referir ao seu futuro martírio :

“Sou o trigo de Deus, pelos
dentes das feras serei moído, para que me torne pão puro de Cristo” (Aos
Romanos 4,1).

Ainda mais explícito é o
testemunho do “Martírio de S. Policarpo” (carta circular dos cristãos de
Esmirna), que assim descreve o desfecho do suplício :

“Os judeus da cidade
imaginaram que os cristãos foram fazer de Policarpo (já martirizado) um outro
Cristo.  Vendo então que os judeus se
agitavam, o centurião (romano) mandou colocar o corpo (de Policarpo) no meio da
praça e, de acordo com o costume, fê-lo queimar.  Em seguida, nós, tomando os ossos, mais
preciosos do que pérolas de grande valor e mais puros do que o outro
acrisolado, colocamo-los em lugar conveniente. 
Nesse local, enquanto possível, reunir-nos-emos em exultação e alegria; e
o Senhor nos dará a graça de celebrarmos o aniversário do martírio de Policarpo
para recordarmos aqueles que já deixaram o combate e a fim de exercitarmos e prepararmos
os outros que o martírio ainda aguarda”. 
(Martírio de Policarpo XVIII).

Esse texto, a mais de um título,
é importante.  Supõe, sim, que, logo após
o desenlace do mártir Policarpo na cidade de Esmirna, os cristãos se dispunham
a usar do seu direito legal de sepultar honorificamente os despojos do defunto.  Contudo os judeus se insurgiram contra tal
praxe, percebendo o caráter profundamente religioso que os discípulos de Cristo
atribuíam ao sepultamento dos mártires; por isto o oficial romano resolveu
mandar queimar os restos mortais de Policarpo. 
Feito isto, os cristãos, não se dando por vencidos, ainda recolheram as
preciosas cinzas, levaram-nas para lugar oculto, onde as depositaram; de então
por diante, propuseram-se reunir-se lá anualmente a fim de celebrar
religiosamente o aniversário do martírio (ou melhor, segundo o vocabulário dos
antigos… o natalício para a vida eterna) de Policarpo.

Como se depreende do teor
geral do documento, os judeus se opuseram ao sepultamento do santo mártir, por
temerem que os cristãos o praticassem em espírito pagão, endeusando, ao lado de
Jesus Cristo, um mero homem … Esta atitude dos israelitas, longe de
quebrantar o ânimo dos cristãos, provocou, ao contrário, da parte destes uma
tomada de posição ainda mais consciente: o autor da Ata se viu obrigado a
explicar aos leitores (em fórmula breve, mas rica), a mentalidade que animava
os cristãos ao cultuarem os mártires e suas relíquias:

“O mártir Policarpo apareceu
em nossos tempos como mestre apostólico e profético (isto é, como continuador
dos Apóstolos) … Adoramos Cristo, como Filho de Deus; quanto aos mártires,
amamo-los como discípulos e imitadores do Senhor, por causa do seu eminente
devotamento ao próprio Rei e Mestre. 
Oxalá possamos também nós tornar-nos consortes e condiscípulos dos mártires!”.
(Martírio de Policarpo XVIII).

Visando portanto, a cultuar
o Cristo mesmo em um de seus justos, ou em um dos membros de seu Corpo já
consumado pela Redenção, é que os cristãos deram início à celebração anual do
martírio (ou do natalício) de São Policarpo). 
Como se vê, tal culto se dirige propriamente ao Filho de Deus, tomando
apenas como ocasião de O glorificar a obra realizada por Cristo em seu discípulo
e mártir.  Essa atitude nada tem que ver
com as apoteoses pagãs.

3.  Os dois documentos que acabamos de analisar,
ainda a outro título, dão a ver que a veneração dos mártires e de suas relíquias
na Igreja não é prática heterogênea ao espírito do Cristianismo:  esse outro título é a antigüidade de tais
documentos.  Com efeito, as datas de 110
e 157 nos levam para uma época em que os cristãos, perseguidos como eram pelo
Império pagão, nutriam nítida aversão para com os usos dos gentios; davam a
vida justamente para não pactuar com os costumes de seus concidadãos e mesmo de
seus familiares politeístas. – Note-se outrossim que os dois documentos se
referem á veneração das relíquias em termos tão claros e serenos que não
parecem estar insinuando uma inovação. 
Duas comunidades cristãs importantes – uma, de Antioquia, capital da
Síria; a outra, de Esmirna, cidade luzeiro da Ásia menor – só podiam proclamar
no início do séc. II, perante as demais comunidades do mundo romano, a sua
estima para com os despojos de seus bispos e mártires, caso tal atitude já
estivesse realmente contida em gérmen dentro do ensinamento dos Apóstolos e,
por conseguinte, do próprio Cristo.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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