Aprovação de escritos na Igreja – EB

Revista:
“PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão
Bettencourt, osb

Nº 457 –
Ano 2000 – p. 254

Em síntese
: O Senhor Jesus confiou à sua Igreja o precioso depósito das verdades da fé,
para que sejam transmitidas ao mundo inteiro. 
A fim de guardar puro esse tesouro, a Igreja se vê obrigada a examinar
os livros relativos à fé e à Moral que os fiéis católicos (clérigos e leigos)
tencionam publicar.  Eis por que o Código
de Direito Canônico aborda essa temática em diversos cânones.  O presente artigo propõe as normas emanadas
desses cânones em uma seqüência sistemática.

São Paulo
termina sua primeira carta a Timóteo com as seguintes palavras :

“Timóteo,
guarda o depósito. Evita … as contradições de uma falsa ciência” (6,10).

Destes
dizeres se depreende que, já na época dos Apóstolos, havia proposições que
deturpavam o depósito da fé, precioso tesouro confiado por Jesus à sua
Igreja.  São Paulo insiste não poucas
vezes na preservação das verdades da fé contra toda tentativa de as deteriorar
mediante concepções heterogêneas; chegava ele a dizer que a heresia “é como uma
gangrena que corrói” (2 Tm 2,17).

O zelo do
Apóstolo se prolonga na Igreja através dos séculos, de modo que ainda hoje
existem normas do Direito Canônico destinadas a defender os artigos da fé e da
Moral contra falsas interpretações. Tais normas se acham esparsas no Código de
Direito Canônico, de sorte que se torna oportuno recolhê-las e dispô-las
sistematicamente para facilitar a consulta dos interessados.  É o que se fará nas páginas subseqüentes.

Duas
observações preliminares

Obrigação e
Recomendação

A grande
novidade nesta matéria, introduzida em 1983 pelo atual Código de Direito
Canônico, consiste em que não se requer obrigatoriamente a revisão prévia e a
licença da autoridade eclesiástica para publicar todo e qualquer livro ou
escrito atinente à fé e à Moral.  Há,
sim, casos em que é obrigatório pedir autorização para publicar, como há outros
em que apenas se recomenda que o livro ou escrito seja submetido ao juízo da
autoridade.  Nos casos de mera
recomendação, o autor de escrito há de ter consciência de sua responsabilidade
perante o público, de modo a não propor doutrina alguma que fira a fé ortodoxa
e os bons costumes; há de proceder com seriedade e baseado sobre motivos
ponderáveis para não pedir a autorização eclesiástica; como motivo ponderável,
apontam os comentadores o fato de que um autor católico deseje publicar uma
obra autenticamente cristã em ambiente não católico.

Aprovação e
Licença

O Código de
Direito Canônico ora fala de aprovação de escritos (cân. 825 § 1º, 826 § 2
…), ora de licença … (cân. 826 § 3, 827 § 4), ora de aprovação ou licença
da autoridade eclesiástica (cân. 824 § 1, 827 § 4, 830 § 1).  Donde a pergunta haverá diferença entre
aprovação e licença (ou autorização)? – De acordo com o Prof. Carlos J.
Errázuriz M., pode-se crer na equivalência dos conceitos, ambos supõem que a
autoridade eclesiástica tenha mandado examinar tal ou tal obra e emita uma
declaração que garanta nada haver aí que se oponha aos artigos da fé e da Moral
católicas.1  Todavia poder-se-ia
estabelecer uma distinção baseada no Código de Direito das Igreja Orientais,
cânon 661: a licença ou autorização significaria que a obra em foco está isenta
de erros em matéria de fé e de Moral, ao passo que aprovação implicaria algo
mais, a saber: a aceitação da obra por parte da Igreja ou a declaração de que o
conteúdo da obra está plenamente conforme com a doutrina da Igreja. – Esta
distinção, porém, não se impõe necessariamente ao nosso caso, pois o Código
latino emprega como sinônimos os termos “aprovação” e “licença”.

Os casos de
aprovação obrigatória

Requer-se
obrigatoriamente a aprovação eclesiástica para editar:

a) os
livros da S. Escritura em sua língua original e em suas traduções
vernáculas.  A autoridade competente, no
caso, é a Santa Sé ou a Conferência Nacional dos Bispos.  As traduções vernáculas hão de ser
acompanhadas de notas explicativas suficientemente claras para que se cumpra o
que preconiza a Constituição Dei Verbum (do Vaticano II), nº 25.

“As versões
dos textos sagrados sejam acompanhadas das explicações necessárias e realmente
suficientes, a fim de que os filhos da Igreja, segura e utilmente, se
familiarizem com as Escrituras Sagradas e de seu espírito fiquem imbuídos”. Cf.
cân. 824 § 1º.

b) As
versões da S. Escritura preparadas por fiéis católicos, mesmo que o façam em
colaboração com irmãos separados, há de ser submetidas à aprovação da
Conferência dos Bispos; cf. cân. 825 § 2.

O cânon
exige que tais traduções ecumênicas sejam acompanhadas também de notas
explicativas não apenas de ordem técnica, mas também relativas à doutrina,
apresentando a interpretação católica da Bíblia.  Esta exigência tem por conseqüência que a
mesma tradução seja publicada em duas edições: uma sem notas doutrinárias,
destinada aos cristãos em geral, e outra com as notas referentes ao
entendimento católico do texto sagrado.

c) Os
livros litúrgicos e suas traduções vernáculas hão de ser submetidos à aprovação
da Santa Sé ou da Conferência Episcopal respectiva.  Esta aprovação significa que o texto a ser
publicado está em conformidade com a “edição típica” ou o texto oficial latino
(para a Liturgia de língua latina).

Quando se
quer reproduzir um texto já aprovado, deve-se pedir a autorização do Ordinário
(Bispo ou prelado) do lugar em que se publica tal texto. Cf. cân. 826 §§ 1 e 2.

d) Os
livros de oração, sejam de uso público, sejam de uso particular, devem ter a
aprovação do Ordinário do lugar. Cf. cân. 826 § 3.

e) Os
catecismos oficiais adotados pelos Bispos para o ensino da religião em qualquer
nível e em cada país hão de ter a aprovação da respectiva Conferência
Episcopal. Cf. cân. 827 § 1º.  Para esses
catecismos existe o livro-padrão  que é o
grande Catecismo da Igreja Católica.

Para os
demais livros de ensino da religião requer-se a aprovação do Ordinário do
lugar. Cf. cân. 827 § 2.

f) As
coleções de decretos e atos da autoridade eclesiástica devem ser autorizadas
pela mesma autoridade eclesiástica. Cf. cân. 828.

Note-se que
o cânon só trata de coleções, ficando livre a reprodução fiel dos textos
legislativos tomados isoladamente.

g) Nos
periódicos, boletins, jornais, revistas que manifestamente costumam atacar a
religião católica ou os bons costumes, os fiéis leigos não devem escrever a
menos que para tanto tenham justa e razoável causa. Ponderem, portanto, os dois
extremos: o escândalo que sua colaboração possa acarretar, como também o
benefício que uma explanação católica bem ponderada possa produzir em favor dos
leitores de tais periódicos.

Quanto aos
clérigos e Religiosos, só escrevam em tais periódicos após receber a
autorização do respectivo Ordinário. Cf. cân. 831 § 1º.

Reza ainda
o cân. 831 § 2: “Compete à Conferência dos Bispos estabelecer normas quanto aos
requisitos para que clérigos e membros de Institutos Religiosos possam
participar de programas radiofônicos ou televisivos sobre assuntos referentes à
doutrina católica e aos costumes”.

h) Para que
os Religiosos possam publicar escritos que tratam de assuntos da fé ou da
Moral, devem obter a licença do seu Superior maior, de acordo com as
respectivas Constituições.  O Superior;
por sua vez, há de contar com o prévio juízo de ao menos um censor de sua
confiança.  O censor, em qualquer caso,
emite, se bem lhe parece, o seu Nihil obstat (quo minus publici iuris fiat) ou
“Nada se opõe à publicação” o que deve ser garantia de que o escrito nada
contém de contrário á fé e aos bons costumes. 
Tal declaração é suficiente para que o Superior ou o Ordinário dê o seu Imprimatur
(caso aceite o juízo do censor). Note-se, porém, que nem o Nihil obstat nem o Imprimatur
significam que a autoridade eclesial faz sua a doutrina do livro em foco, ela
apenas declara negativamente que a obra não se opõe aos ensinamentos da Igreja
(sem que por isto seja o que de melhor se poderia dizer sobre tal ou tal
assunto).

Compreende-se
que, para os diários católicos confeccionados com urgência no decorrer de
poucas horas, não possa haver censura prévia. 
Qualquer retificação há de ser feita em edição subseqüente.

Recomendação

O Código
recomenda que os livros referentes à Sagrada Escritura, a Teologia, ao Direito
Canônico, à História da Igreja e a disciplinas religiosas e morais, ainda que
não sejam utilizadas como textos de ensino, assim como os escritos nos quais
existem elementos que se referem de modo peculiar à Religião e à honestidade
dos costumes, sejam submetidos ao juízo do Ordinário local. Cf. cân. 827 § 3.

Por Ordinário
local entende-se o Bispo ou prelado em cujo território o autor da obra tem
residência, ou o Ordinário ao qual o autor esteja vinculado por questão de rito
ou algo semelhante, ou ainda o Ordinário do lugar em que fica a editora do
livro.  Quando a licença para publicar é
negada por um destes três Prelados, é lícito ao autor recorrer a um dos dois
outros; deve-se, porém, mencionar a recusa precedente; o novo Ordinário
abordado não deverá conceder a licença sem ter obtido do precedente Ordinário
as informações relativas à causa da recusa. Cf. cân. 65 § 1º.

Contra a
recusa de licença ou aprovação, é lícito um recurso, nos termos dos cânones
1732-1739, à Congregação para a Doutrina da Fé, órgão competente na matéria.

Especiais
direitos-deveres dos Bispos

O cânon 823
§ 1º enuncia três direitos que são, ao mesmo tempo, deveres da hierarquia
eclesiástica:

a) a
vigilância sobre questões de doutrina e de Moral, de tal modo que se guarde
incólume o patrimônio da fé e da vivência derivadas o Evangelho.

b) Em
conseqüência toca aos Bispos o direito-dever de exigir a revisão prévia dos
escritos relacionados com a fé e os costumes, podendo incidir nesta norma
qualquer escrito relativo à fé e à Moral (mesmo que não esteja mencionado nos
cânones 824-832).

c) Ainda em
conseqüência, compete à hierarquia reprovar os escritos nocivos à reta fé e aos
bons costumes.

O § 2 do
mesmo cânon 823 define que a hierarquia, no caso, é representada pelos Bispos
(quer individualmente, quer reunidos em Concílios particulares), pelas
Conferências Episcopais e pela suprema autoridade da Igreja. – Não se deve
esquecer, porém, que a vigilância em prol da preservação da fé e dos bons
costumes é também dever de todos os fiéis batizados, que há de cooperar com
seus pastores em vista da mesma meta.

A tarefa de
proteger o patrimônio da fé e da Moral tem suscitado críticas como se tal
procedimento ferisse a liberdade e os direitos dos teólogos e do povo de Deus.
– Em resposta, deve-se dizer: que o ponto de partida da teologia é a fé.  O teólogo há de ser homem de fé … fé aceita
consciente e livremente, de modo que não lhe compete discutir os artigos de fé
e, sim, aprofundá-los.  O teólogo que
ponha em questão alguma proposição de fé, é incoerente; já não faz
teologia.  Ora a fé nos é transmitida por
dois canais: a Tradição escrita (Bíblia) e a Tradição oral, das quais o
magistério da Igreja é o intérprete credenciado pela assistência do Espírito
Santo (cf. Jo 14, 26; 16, 13-15).  Eis
por que o magistério da Igreja, através de suas diversas instâncias, tem o
direito e o dever de chamar a atenção daqueles que se desviam da reta fé.

Ademais é
de observar que os direitos dos teólogos terminam onde começam os direitos dos
fiéis ou do povo de Deus. Ora este tem o direito de ser instruído a respeito do
Credo da Igreja em sua plena autenticidade, em oposição ao credo particular de
algum estudioso, por mais erudito que este seja.  Entende-se, pois, o exercício da vigilância
como um serviço prestado aos próprios teólogos e a todo o povo de Deus

A Igreja
deseja que cada diocese tenha sua Comissão de Fé e Doutrina como a tem cada
Conferência Episcopal.  Existem normas
que garantem a todo autor de livro já publicado, mas sujeito a questionamentos,
o direito de se defender, expondo claramente seu modo de pensar.

Considerando-se
o fato de que algum determinado escrito pode propor sentenças que somente aos
especialistas interessem, ou que podem causar confusão em determinados
ambientes, a licença da autoridade eclesiástica pode ser concedida sob
condições definidas ou restrita a certo âmbito, de modo a se evitar o perigo
mencionado.

O Censor

O atual
Código de Direito Canônico conservou o nome e a função de “censor”.  Este é um fiel – clérigo ou leigo1 -, perito
em matéria teológica, que presta sua colaboração aos Pastores da Igreja em
matéria doutrinária.

O censor
deve destacar-se por reta ciência e prudência. 
Se algum censor não se julga competente para examinar determinado
escrito, tem a obrigação de o dizer a autoridade eclesiástica, sugerindo outro
mais competente.  Não faça acepção de
pessoas.  O artigo Código prescrevia que
não se publicasse o nome do censor antes que ele emitisse o seu juízo, a fim de
lhe assegurar independência em seu julgamento. Tal norma pode ser válida ainda
em nossos dias.

Dois são os
principais critérios a ser adotados tanto pelo censor como pela autoridade
eclesiástica: 1) a procura incondicional de fidelidade doutrinária e 2) a
prudência … prudência que significa ponderar os efeitos que determinada(s)
sentença(s) – mesmo que seja(m) plenamente ortodoxa(s) – podem ocasionar na
sociedade eclesiástica e civil.  Na
verdade, pode haver ambientes não preparados para assimilar uma determinada
conclusão teológica válida, mas insólita, impõe-se então uma pedagogia que
saiba dizer tudo o que deve ser dito de maneira delicada a fim de não provocar
confusão ou escândalo.

Se o
alvitre do censor é desfavorável à publicação de algum escrito, a autoridade
eclesiástica não pode licitamente conceder o Imprimatur (Imprima-se), mas
deverá solicitar, se o quiser, o parecer de outros censores, que poderão
confirmar ou não o alvitre do primeiro. 
Caso seja recusada a autorização, toca ao Ordinário local informar o
autor da obra, expondo-lhe as razões da recusa. 
A licença pode ser concedida sob condição de que o autor reveja tal ou
tal ponto do seu escrito.

O Código de
Direito Canônico não exige que, ao conceder a licença, a autoridade
eclesiástica mencione o nome do censor. 
Mas requer-se, feita a ressalva de casos excepcionais (como o de
facilitar a circulação do livro em ambientes não católicos), que o nome da
autoridade que concede a licença conste da obra, assim como o lugar e a data da
concessão.

É a
autoridade eclesiástica que escolhe livremente as pessoas a quem confere a
tarefa de censor.  É oportuno que haja
especialistas em matérias diversas no corpo de censores.  A Conferência Nacional dos Bispos poderá
traçar um elenco de censores, que ela oferecerá a cada diocese.

Conclusão

As normas
até aqui expostas, depreendidas do Código de 1983, são mais brandas do que as
do Código de 1917.  A nova legislação
procurou levar em conta os direitos de expressão e o respeito devido à pessoa
humana, sem, porém fazer concessões ao relativismo doutrinário, que seria
traição a Jesus Cristo. A sabedoria, no caso, consiste em associar entre si
incondicional fidelidade à verdade e compreensão da pessoa humana.

Este artigo
está baseado no Código de Direito Canônico e nos comentários que a ele faz o
Prof. Carlos J. Errázuriz M. na obra Comentário Exegético al Código de Derecho
Canônico, volume II/1, pp. 319-352.  Ed.
EUNSA Pamplona (Espanha).

 

________________________________

¹ Comentário
Exegético al Código de Derecho Canónico III/1. EUNSA,  Pamplona, p. 326

¹ Reza o
cânon 228, § 2: “Os leigos que se dispunham por adequada ciência, prudência e
honestidade, estão habilitados a prestar auxílio aos Pastores da Igreja, como
peritos ou conselheiros, mesmo nos Conselhos, de acordo com o Direito”.

 

 

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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