Antropologia e Generalidades – EB – Parte 10

Lição 2: Em que consiste a
bem-aventurança Celeste 

No céu, dizem, os justos têm a intuição direta de
Deus. É isto que constitui a essência (o essencial) da bem-aventurana
celeste.  Todavia a contemplação de Deus
não exclui a felicidade que possa provir de fontes acessórias, ou seja, da visão
das criaturas e da posse de outros bens. 
A felicidade decorrente destes bens criados é chamada bem-aventurança acidental.

1. A Escritura associa entre si os concertos
“comer’ e ‘ver, contemplar” em Ex 24,9-11; SI 34,9; Gn 3,6s; Lc
24,35.

2. A “essência divina’, na terminologia
da época, significa a realidade íntima (essencial) de Deus.

Examinemos sucessivamente um e outro aspecto da vida
futura.

2.1. O essencial da
bem-aventurança celeste

No céu os justos verão a Deus face a face, e em Deus
terão a intuição das criaturas, na medida em que são reflexos e expressões da
Sabedoria e da Perfeição do Criador.

Expliquemo-lo.

A. A visão de Deus face a face

Como pode o ser humano, criatura de
capacidades limitadas, ver diretamente a Deus, que é a Perfeição Infinita? A
própria Escritura ensina muito enfaticamente que nenhuma criatura pode, por
suas próprias faculdades, ver diretamente a Deus:

Moisés, por exemplo, pediu a Deus: “Mostra-me a
tua glória!” Ao que Javé respondeu: “Faço graça a quem a faço; e faço
misericórdia a quem a faço (…). Não podereis ver minha face, pois o homem não
me pode ver e permanecer em vida” (Ex 33,18-20).  Moisés pedira demais; só Ihe foi dado ver o
reflexo da glória de Deus, que passava!  (Cf.  Gn 28,30; Ex 3,6; 20,19; Jz 6,22; 13,22; Is
6,5).

Os escritos do Novo Testamento repetem o mesmo: somente
por favor gratuito de Deus é que as criaturas podem ter a intuição direta da
Perfeição Divina:

‘Ninguém conhece o Filho senão o Pai, a ninguém
conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar’ (Mt
11,27,cf. Jo 4, 46;1,18, 1 Cor 2, 11).

São Paulo escreve: “(Deus)… que habita uma
luz inacessível, que nenhum homem viu nem pode ver, a quem sejam dados honra e
poder eternos!  Assim seja!” (1 Tm
6,16).

Eis, porém, que Jesus Cristo anunciou:
“Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus” (Mt
5,8).

Para que isto se torne possível, Deus robustece o
intelecto dos justos no céu, infundindo-lhe a chamada “luz da
glória”.  Esta substitui a fé
infusa, a luz da qual conhecemos Deus nesta vida.  A luz da glória eleva, dilata e corrobora a
inteligência, tornando a alma apta,
“proporcionada” (se assim podemos dizer) e ver Deus como Deus vê a Si mesmo.  Ora, conhecer a Si mesmo, a Suma Perfeição,
e, consequentemente, amar a Si mesmo, a Suma Beleza, eis em que consiste a
felicidade de Deus. 

Daqui se segue que, mediante a luz da glória, a alma humana entra em
participar, isto é, da vida bem-aventurada de Deus, participação tão real e
íntima quanto isto é possível a sua condição de criatura.  Percebe-se assim um pouco qual seja a
grandeza e a dignidade da vida dos justos no céu.

B. Observações
complementares

Dito isto, três observações se impõem:

1) Os bem-aventurados verão Deus face a face. Por
conseguinte, contemplarão claramente as três Pessoas da SS. Trindade e seus
predicados.  Deus não se mostra fragmentariamente
aos justos porque Ele é a Unidade e a Simplicidade mesmas.  Mas os justos, embora vejam Deus todo,
inteiro, não o verão totalmente, isto é,

I . Escreve o teólogo de Louvain Leonardo Léssio S.
J.: “Como a luz corporal faz que o olho do corpo se estenda a vastidão
deste mundo e, de modo admirável, e apreenda dentro da sua capacidade, assim
aquela luz ‘espiritual e divina faz com que a mente… se possa dilatar e como
que receber dentro de si toda a imensidão de Deus” (De Summo bono, 1. l.c. 8, n2 444).

2. A infusão da luz da glória é explicitamente
inculcada pelo magistério da lgreja.  Com
efeito: houve teólogos, como também almas místicas, que,
desejando acentuar e unido da criatura com o Criador, negaram a infusão da luz
da glória (…). Contra os beguinos e beguardos, por exemplo, procedeu o
Concílio ecumênico de Viena (França) em 1311, condenando a proposição: “Qualquer
criatura intelectual é naturalmente bem-aventurada por si mesma; o homem não
precisa da luz da glória para se elevar a visão e ao gozo beatífico de
Deus”.

Nenhuma inteligiência criada está a altura de
conhecer a Perfeição Divina de maneira exaustiva.  Com outras palavras: os bem-aventurados veem
o Infinito, sabendo que Ele é o lnfinito, mas não o conhecem de maneira
infinita.  Nada há em Deus que não seja contemplado
pelos justos no céu, mas nada há em Deus que seja contemplado tão perfeitamente
quanto é contemplável, em toda a sua riqueza de ser.  Os bem-aventurados apreendem, mas não
compreendem, a lnfinita Perfeição Divina. lsto quer dizer que Deus será sempre novo
para os bem-aventurados; vê-Io e contemplá-lo nunca lhes causarão fastio.

1) Mesmo no céu, o Criador fica sendo um mistério que
ultrapassa o alcance da criatura.  Donde
se segue que a atitude fundamental dos bem-aventurados é a adoração; veem e
adoram, segundo Ap 4,9-11. É, aliás, no ato de adoração a Deus que se funda a
dignidade do homem; adorar a Deus nada mais é do que a expressão da verdade.

2) Mais: a visão de Deus no céu admite graus de
perfeição diversos: uns contemplam com grande penetração e nitidez, enquanto
outros com menos perspicácia.

E qual o motivo da diferença?

– Certamente nãoo é o maior ou menor acume da
inteligência das criaturas, pois, neste caso, o homem dotado de inteligência
mais aguda seria, por isto mesmo, mais premiado no céu do que outro, de inteligência
menos penetrante. – O que faz os diversos graus de perfeição da visão beatífica são os diversos graus
de amor corn que as criaturas deixam este mundo.  Onde há mais amor de Deus, há mais desejo de
ver e possuir a Deus, e é a este desejo que o Senhor corresponde,
manifestando-se e dando-se a criatura no céu. 
Podemos ainda dizer: a visão beatífica seria um ato todo movido pelo
amor da criatura a Deus; e será visão tão penetrante quanto ardente for o amor
em que ela se basear.  Doutro lado, o
amor há de redundar da visão de Deus; amor e complacência não poderão deixar de
encher as almas
bem-aventuradas.

Este princípio explica que pessoas de inteligência
bastante limitada possam chegar a eminente grau de glória celeste, como também
podem ter grande afinidade corn Deus já nesta vida; ao contrário, pessoas muito
talentosas podem ter pouco entendimento das coisas de Deus nesta vida e menos
afinidade com Deus na outra vida, se Ihes feita um ardente amor a Deus; é o
amor que abre o olho da mente para os mistérios de Deus tanto neste mundo
quanto na existência póstuma, pois Deus é Amor (1 Jo 4,b).

Amor que se dá a conhecer a quem ama.

3) É de notar ainda que, vendo Deus face a face, os bem-aventurados
contemplam também os modos finitos pelos quais Deus pode ser imitado e
espelhado por criaturas.  Com outras palavras:
vendo a Deus, o Sumo Artífice, os justos verão os artefatos produzidos por este
Artífice ou verão as criaturas (ao menos aquelas que mais interessam a cada
bem-aventurado no céu).

Em 1528 um Concílio
regional de Paris declarava:

‘Aos bem-aventurados é manifestado uniformemente o
divino espelho, no qual resplandece tudo o que Ihes interessa.

Este texto bem se entende: toda causa contém em si os
efeitos que dela procedem.  Por
conseguinte, tudo o que foi, é ou sera criado (criaturas reais) e também tudo o
que poderia ser criado (criaturas meramente possíveis), tudo isto se acha
contido na Perfeição Divina.  Vendo esta,
os justos verão ao menos os efeitos criados cujo conhecimento corresponde a algum
desejo seu legítimo.

1. Poderíamos ainda dizer: o céu é a participação de
criatura no colóquio que Pai e Filho, no Espírito Santo (Amor), entretém
eternamente entre si. O ritmo da vida trinitária se torna o ritmo de vida dos
bem-aventurados; estes são envolvidos no fluxo e refluxo, no intercâmbio, que
se verifica entre as três Pessoas Divinas,

Assim se verifica que no céu o nosso conhecimento
obedece a uma ordem inversa da que ocorre na terra; neste mundo, primeiramente
tomamos conhecimento das criaturas, e, através destas, nos elevamos ao Criador;
ao contrário, na vida celeste veremos diretamente a Deus e, em Deus, as
criaturas (aliás, é assim que o próprio Deus conhece as criaturas: contempla a
sua infinita Perfeição e, nesta, os seres criados, como reflexos ou modos de
participação da infinita Perfeição Divina).

A visão de Deus projetará sobre as criaturas a
verdadeira luz, de sorte que perceberemos o valor genuíno de cada uma delas,
sem nos deixar iludir pela beleza ou pela desarmonia aparentes, Mais
precisamente: os bem-aventurados contemplam em Deus o grande plano de salvação
dos homens concebido desde toda a eternidade, plano que compreende a permissio
do pecado, a Encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo, o dom da
Eucaristia, das Escrituras Sagradas, a vida misteriosa da lgreja, a maneira,
aparentemente desconcertante, como Deus provê a redenção dos homens; o bem-aventurado
contempla em Deus, também, a história das obras que ele tenha empreendido na
terra, os caros parentes e amigos que haja deixado.

– É Santo
Agostinho quem nos diz:

“Os
bem-aventurados verão a Deus e tudo aquilo que agora não vemos, mas aceitamos
na fé segundo a exígua medida da capacidade humana.  Aqui prestais fé, lá vereis’ (De civitate
Dei, 20,21, 1).

Examinemos agora:

2.2. A bem-aventurança acidental

Pergunta-se: além
da posse direta de Deus, quais os bens que ainda poderiam causar alguma
felicidade, embora acidental, aos justos no céu?

Eis as fontes donde
se deriva essa bem-aventurança acidental:

bens da inteligência

bens da vontade

bens do corpo – comum
a todos os justos         

Bem-aventurança –
bens da convivência celeste

acidental

martírio (mártires)

própria de certos
justos doutrina teológica eminente

(doutores)

virgindade
(virgens)

Percorramos
brevemente os diversos títulos:

2.2.1. Bem-aventurança
acidental comum a todos os justos

1) Bens
da inteligência: como
dito atrás, Deus corresponderá as legítimas aspirações dos bem-aventurados,
dando-lhes a conhecer criaturas e acontecimentos que de perto lhes dizem respeito.  Entre outras coisas, é certo que os
bem-aventurados têm conhecimento das preces que neste mundo Ihes são dirigidas,
pois Deus, que fez os homens solidários entre si, não permite que essa comunhão
seja dissolvida pela morte; por isto pedimos aos justos que intercedam por nós
no céu, e Deus Ihes dê a conhecer nossas orações para que, de fato, eles rezem
por nós ao Pai.

Além das noções assim reveladas, contribuirão para a
felicidade dos justos os conhecimentos adquiridos na terra: qualquer verdade
conhecida na vida presente, mas relegada ao esquecimento, reviverá no céu e
tornar-se-a fonte de alegria (note-se bem: qualquer verdade, seja religiosa,
seja científica, seja histórica, seja cultural…).

2) Bens
de vontade: da contemplação deriva-se, na terra e no céu, o deleite da
vontade nos objetos contemplados. Tal deleite não será perturbado por
contrariedade alguma.  As almas conscientes de não
ter alcançado a bem-aventurança a que outras chegaram, não experimentarão
inveja nem pesar.  Também a sorte infeliz
de outras criaturas, quer vivam neste mundo, quer no inferno, não afetarão a
felicidade dos justos no céu.  A razão
disto é que a vontade e as tendências dos justos no céu estarão plenamente
identificadas com a santíssima vontade de Deus; tudo o que os bem-aventurados
no céu conhecem, conhecem-no como Deus o conhece, ou seja, através do prisma da
justiça perfeita, da sabedoria infinita, da misericórdia absoluta; verão, pois,
em todos os erros das criaturas algo de abominável, sim, mas algo que não causa
detrimento a perfeição do universo ou a harmonia final da história; verão mesmo
nas falhas das criaturas algo de que o Deus Santo toma ocasião para manifestar
seus atributos sumamente adoráveis.

Tenhamos por certo também que nenhum desejo dos
justos no céu daixará de ser saciado; cada qual será tão feliz quanto for capaz
de o ser

3) Bens do corpo: Após a ressurreição, o corpo permanecerá
unido a alma e
participará da sua glória.  A reconstituição
do ser humano em sua estrutura completa não poderia deixar de acarretar
particular alegria para os bem-aventurados.

4) Bens de conviêdncia
celestial:  Os justos se regozijarão por se encontrarem
com Cristo, com a Virgem Santíssima, com os Santos; alegrar-se-,ão por estar de
novo corn familiares e amigos, unidos na intimidade de Deus; reconhecer-se-ão se
comunicarão uns com os outros, sem a mínima sombra de egoísmo ou imperfeição.

2.2.2. Bem-aventurança própria
de certos justos

Os teólogos admitem que os mártires, os doutores da
fé, as virgens e os cônjuges fiéis ao seu casamento possuirão recompensa
especial, pois o martírio, o ensinamento fecundo das verdades da fé, a
virgindade e a fidelidade conjugal implicam um heroísmo singular.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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