Aborto e a causa com duplo efeito – EB

Revista:
“PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão
Bettencourt, Osb

Nº 532, Ano
2006, p. 470

 

Em síntese:
O aborto nunca pode ser meio lícito para se obter um efeito bom, pois é um
homicídio e o fim (bom) não justifica os meios maus. Acontece, porém, que
certos atos bons executados com finalidade honesta podem ter um efeito mau não
desejado, mas inevitável; pode-se recorrer a tais atos, desde que a finalidade
do agente seja unicamente o efeito bom, e não haja outro meio para obter esse
efeito bom. Com exemplo de tal procedimento, cita-se o caso de uma mulher
grávida que sofre de infecção renal; pode tomar o antibiótico que a cure, ainda
que tal medicamento vá causar danos ao nascituro, desde que não haja outra
forma de atender à paciente. Os danos à criança não são meio para se tratar da
moléstia, mas conseqüência não desejada, e sim tolerada, de um procedimento
executado com a única finalidade de salvar a saúde da enferma.

O Pe. Luiz
Carlos Lodi da Cruz, Presidente do Pró-Vida de Anápolis, escreveu um artigo
muito esclarecedor sobre o aborto, tema candente de nossos dias. Vai, a seguir,
reproduzido, com os agradecimentos da Redação de PR.

A CAUSA COM
DUPLO EFEITO

1. O aborto
como meio

No ano 70
d.C., a cidade de Jerusalém foi sitiada pelo general Tito, em represália a uma
rebelião dos judeus comandada pelo partido dos zelotes. Flávio Josefo, chefe
militar da Galiléia, foi capturado pelos romanos. Escreveu com detalhes os
horrores daquela guerra, e tentou, em vão, fazer com que seus compatriotas se
rendessem. O texto a seguir refere-se ao cerco de Jerusalém:

“Josefo,
cuja própria família sofreu com os sitiados, não recusou nem mesmo diante dum
episódio desumano que prova que o desespero da fome já começava a turvar a razão
dos israelitas.

Os zelotes
percorriam as ruas em busca de alimento. Duma casa saía cheiro de carne assada.
Os homens penetraram imediatamente na 
habitação e pararam diante de Maria, filha da nobre família Bet-Ezob,
extraordinariamente rica, da Jordânia oriental. Maria tinha ido como peregrina
a Jerusalém para a festa da Páscoa. Os zelotes ameaçaram-na de morte se não
lhes entregasse o assado. Perturbada, a mulher estendeu-lhes o eu pediam, e
eles viram, petrificados, que era um recém-nascido meio devorado – o próprio
filho de Maria”.

Poder-se-ia
tentar justificar a atitude da mulher faminta, com o seguinte argumento: se ela
não tivesse matado o próprio filho, ambos teriam morrido; ao matá-lo para
saciar sua fome, pelo menos uma das vida foi poupada.

No entanto,
matar diretamente um ente humano inocente é um ato intrinsecamente mau, que não
pode ser justificado nem pela boa intenção, nem pelas possíveis boas
conseqüências, nem sequer pelo estado de extrema necessidade. Nunca é lícito
matar diretamente um inocente, nem sequer para salvar outro inocente.

No
repugnante caso acima, a morte do bebê era um meio para salvar a vida da mãe.
Analogamente, se durante uma gestação o aborto fosse um meio para salvar a vida
da gestante – e ainda que fosse o único meio – tal ato seria gravemente imoral.
É dever do médico salvar mãe e filho, mas não se pode salvar um deles por meio
da morte do outro. O fim, por mais nobre que seja, não justifica um meio mau
utilizado para alcançá-lo.

Há,
contudo, depoimentos médicos que negam com veemência que o aborto possa servir
de meio para salvar a vida da gestante. Segundo a Academia de Medicina do
Paraguai (1996), “em casos extremos, o aborto é um agravante, e não uma solução
para o problema”. Já em 1965, o médico-legal João Batista de Oliveira Costa
Júnior, em sua aula inaugural para os alunos dos Cursos Jurídicos da Faculdade
de Direito da USP, referindo-se ao aborto “necessário” ou “terapêutico” dizia:

Digo,
inicialmente, que, se me fosse permitido, chamá-lo-ia de aborto desnecessário
ou, então, aborto anti-terapêutico.

[…]

Ante os
processos atuais da terapêutica e da assistência pré-natal, o aborto não é o
único recurso; pelo contrário, é o pior meio, ou melhor, não é meio algum para
se preservar a vida ou a saúde da gestante.

Resumindo:
segundo afirmações contundentes de médicos, não há caso em que o aborto seja meio
para salvar a vida da gestante. Se houvesse tal caso, o aborto continuaria
sendo imoral.

2. O aborto
como segundo efeito

O aborto diretamente
provocado, ou seja, querido, como fim ou como meio, é um pecado gravíssimo.
Porém há procedimentos médicos ou cirúrgicos que em si não são abortivos, mas
que podem ter como efeito secundário e indesejado (embora previsível) a morte
do bebê por nascer. Em tais casos, a morte do inocente, se houver, ocorrerá indiretamente,
como segundo efeito de uma ação que, em si, é boa.

Por
exemplo, uma intervenção cirúrgica cardiovascular em uma mulher grávida pode
ter como conseqüência a morte do nascituro. Em tal caso, a morte do inocente não
é um fim visado pela cirurgia (o fim é a cura da cardiopatia). Também não é um
meio (pois não é a morte da criança que “causa” a cura da mãe). É simplesmente
um segundo efeito.

Para que se
possa, porém, tolerar o risco de um efeito secundário mau, é preciso que o bem
a ser alcançado seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente a ele.
No caso relatado, a cirurgia não seria lícita se fosse possível esperar até o
nascimento do bebê ou se houvesse outro meio terapêutico que fosse inofensivo
para a criança.

Note-se bem
que não se trata de “praticar um ato mau com boa intenção”. Isso nunca é
moralmente lícito. O fim não justifica os meios, embora Maquiavel tenha dito o
contrário.

Repita-se:
a morte do bebê nunca pode ser querida como fim nem como meio. Quanto muito,
pode ser tolerada como um segundo efeito de uma ação boa.

3. O
princípio da causa com duplo efeito

Muitos de
nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados mas inevitáveis. Ao tomarmos
uma aspirina para curar uma dor de cabeça, podemos causar dano ao estômago. Ao
corrigirmos o próximo, às vezes ele se sente humilhado ou envergonhado. Ao
lutarmos contra o aborto, causamos a ira dos abortistas.

Podemos
praticar tais atos, que tenham duplo efeito: um bom e outro mau? Sim, mas com
alguma condições.

que a
intenção do agente seja obter o efeito bom, e não o mau;

que o
efeito bom seja obtido diretamente da ação, e não através do efeito mau;

que o
efeito bom seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente ao efeito
mau;

que não
haja outro meio de se obter tal efeito bom, a não ser praticando a ação boa que
produz tal efeito secundário mau.

No
princípio em questão, trata-se de praticar um ato bom com boa intenção, mas que
produz um efeito colateral mau indesejável, mas inevitável, embora previsível.
Vejamos o exemplo seguinte:

Uma mulher
grávida sofre de uma infecção renal. O médico prescreve-lhe um antibiótico. Há,
porém, o perigo remoto de a droga causar danos ao nascituro. No entanto, não há
outro antibiótico que seja menos nocivo ao bebê nem é possível esperar o
nascimento da criança para iniciar o tratamento.

Nesse caso:

a) a
intenção do agente é curar a infecção renal (efeito bom) e não causar dano ao
nascituro (efeito mau);

b) a cura
da infecção renal (efeito bom) é obtida diretamente da ação de tomar o
antibiótico, e não através do dano causado ao nascituro (efeito mau). Se,
absurdamente, a mulher não tomasse o antibiótico, mas lesasse diretamente seu
bebê, tal dano não iria causar a cura de sua infecção renal.

c) como a
chance de lesão à criança, embora exista, é pequena, e como o tratamento é
urgente, o efeito bom (a cura da infecção renal) é proporcionalmente superior
ao possível efeito mau.

d) não há
outro meio de se obter a cura da infecção, a não ser pela ingestão de um
antibiótico. O médico poderia prescrever outro antibiótico, mas nenhum seria
isento de riscos para a criança.

Logo, o ato
pode legitimamente ser praticado.

O princípio
da causa com duplo efeito foi descrito de maneira lapidar pela Academia de
Medicina do Paraguai (1996):

“Não comete
ato ilícito o médico que realize um procedimento tendente a salvar a vida da
mãe durante o parto ou em curso de um tratamento médico ou cirúrgico cujo
efeito cause indiretamente a morte do filho, quando não se pode evitar esse
perigo por outros meios”.

Resumindo:
provocar diretamente o aborto é inadmissível, ainda que ele fosse o único meio
de salvar a vida da gestante. Porém, a morte indireta de um inocente, como a
criança por nascer, pode às vezes ser tolerada como efeito secundário de um
procedimento que, em si, é bom.

O
conhecimento claro do princípio da causa com duplo efeito, com a distinção
precisa entre meio mau  e efeito
secundário mau, é um requisito básico para resolver várias questões de
Bioética.

KELLER,
Werner. E a Bíblia tinha razão (…) Tradução de João Távora. 2. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1958, p. 340.

ACADEMIA DE
MEDICINA DEL PARAGUAY. Declaración aprobada por el Plenário Acadêmico
Extraordinario em su sesión de 4 de Julio de 1996.

COSTA
JÚNIOR, João Batista de O. Por que, o aborto terapêutico? Revista da Faculdade
de Direito da USP, São Paulo, volume IX, p. 312-330, 1965.

ACADEMIA DE
MEDICINA DEL PARAGUAY. Idem. nº 4.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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