A única Igreja de Jesus Cristo

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 293 – Ano 1986 – p. 458

 
Este artigo se deve a D. Boaventura Kloppenburg O.F.M., Bispo Auxiliar  de Novo Hamburgo (RS), que, com grande acume teológico, estuda certo relativismo eclesiológico que vai sendo difundido em nossos dias. Com efeito, segundo alguns, as diversas denominações cristãs seriam equivalentes entre si, de modo que ser católico, ser batista, ser presbiteriano, ser pentecostal (…) não faria diferença diante de Deus. Segundo outros, nenhuma denominação cristã preenche todas as exigências da Igreja que Cristo quis fundar, de modo que esta só se realizará no fim dos tempos. Como fundamento destas proposições errôneas, muitos invocavam dizeres do Concílio do Vaticano II:  “A Igreja de Jesus Cristo subsiste na Igreja  Católica, Apostólica confiada a Pedro”. Ora Frei Boaventura, como teólogo perito (expert) do Concílio do Vaticano II, explica o autêntico sentido de tal passagem do Concílio: este quis afirmar que a Igreja Universal, confiada a Pedro, preenche todos os requisitos da Igreja fundada por Cristo, ao passo que as outras denominações cristãs só satisfazem alguns (ora mais, ora menos numerosos) desses requisitos.

Agradecemos a D. Boaventura a valiosa colaboração.

1.  O problema
“Até agora estávamos acostumados a nos considerar com a Igreja, única e verdadeira herança do legado apostólico da fé cristã”, acusa o Pe. Paulo Homero  Gozzi, S., na revista Vida Pastoral, de julho-agosto de 1986, página 2. Tal modo  de ver, porém, garante, já não seria a doutrina oficial da Igreja Católica desde o Concílio Vaticano II. Cita então o texto de um ante-projeto de documento sobre a  Igreja apresentado ao Concílio em 1962, no qual se ensinava que somente a Igreja Católica é a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Mas este texto, informa, “foi totalmente rejeitado pelos Bispos”, e “o que não se conseguiu mudar em quinhentos anos, alterou-se completamente em apenas dois anos de debates”. A doutrina certa do Vaticano II agora seria esta: “A Igreja de Cristo não é mais a Igreja Romana, nem se identifica mais com ela pura e simplesmente, mas subsiste nela”.
Depois explica: “O Concílio reconhece e admite que pertencem à única, verdadeira e indivisível Igreja de Cristo todos os batizados que professam a verdade do Deus Trino e confessam a Jesus Cristo como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembleias (Decreto sobre o Ecumenismo, UR 1). Isto porque nasceu também uma nova consciência da fundação da Igreja e da entrega de seu governo ante-projeto rejeitado, mas sobre o Apóstolos e seus sucessores. O papel de Pedro é coordenar o grupo de seus irmãos Apóstolos para mantê-lo unido (cf. Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium, III, n. 18)”.

Assim manipula-se o Concílio. O que lhe é atribuído no número 1 do Decreto sobre o Ecumenismo, lá não está. Se estivesse, seria realmente doutrina inaudita. O documento, na alínea 2 do citado número 1, fala não da Igreja, mas do movimento ecumênico, afirmando então que deste movimento participam “os que invocam o Deus Trino e confessam a Jesus como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembléias”. O articulista simplesmente trunca o texto do Vaticano II. E o que afirma com base no número 18 da Lumen Gentium (LG), também se distancia da doutrina do Concílio. No citado número 18, alínea segunda, o Vaticano I sobre a instituição, perpeitude , poder a natureza do sacro Primado do Romano Pontífice, propondo-a “novamente para ser criada firmemente por todos os fiéis”.
Deste contexto conclui o autor que o governo da Igreja não mais repousa sobre Pedro e seus sucessores, mas sobre os Apóstolos e seus sucessores! O papel de Pedro seria apenas o de “coordenar o grupo de seus irmãos Apóstolos para mantê-lo unido”. Na realidade, a doutrina sobre o Primado de jurisdição, explicitamente reafirmada pelo Vaticano II, vai muito além da mera função de coordenação. Definiu o Vaticano I que ao Sucessor de Pedro não cabe apenas a tarefa de inspeção ou direção, e sim “o pleno poder de jurisdição sobre toda a Igreja, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja universal” (Dz 1831). Sem limite de tempo, pessoa, lugar e coisas, seu poder se estende individualmente ou coletivamente sobre todos os fiéis, todos os pastores todos os ritos, em questões de doutrina da fé, de moral, de governo, de liturgia, de costumes (Dz 1827). E o Vaticano II, na Lumen Gentium, n. 22b insiste neste ensinamento:
“O Colégio ou o Corpo episcopal não tem autoridade se nele não se considerar incluído, como cabeça, o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, e permanecer intacto o poder primacial do Papa sobre todos, quer Pastores quer fiéis. Pois o Romano Pontífice, em virtude de seu múnus de Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja, possui na Igreja poder pleno, supremo e universal. E ele pode sempre livremente exercer este seu poder”.

Nem é verdade que aquele texto provisório apresentado em 1962 ao Concílio “foi totalmente rejeitado pelos Bispos”, pelo simples fato de jamais Ter sido objeto de votação.   

Mais desconcertante, todavia, é a conclusão que o articulista da Vida Pastoral tira da substituição do verbo “est” (é) pelo verbo “subsistit in” no atual número 8, segunda alínea, da Lumen Gentium:
“A Igreja de Cristo não é mais a Igreja Romana, nem se identifica mais com ela pura e simplesmente, mas subsiste nela”. Também o Sr. Luiz Carlos Araújo, Profecia e Poder na Igreja (Paulinas 1986) argumenta com o “subsisti in”, para inferir que “todas as Igrejas cristãs estão sendo, em graus diferentes, a Igreja de Cristo” (p. 21). Já antes, em Igreja: Carisma e Poder (Petrópolis 1982), Frei Leonardo Boff, O.F.M., se baseara no mesmo “subsistit in” para deduzir que a Igreja de Cristo” pode subsistir também em outras Igrejas cristãs” (p.125). Nega-se assim a doutrina de fé sobre a unicidade da Igreja de Cristo.

2.  Que ocorreu de fato no Concílio?
Na Comissão de Doutrina, na qual eu estava presente na qualidade de “peritus”, encarregada da redação do texto sobre a Igreja, discutia-se a segunda alínea do número 8. Nela se ensinava que a única Igreja de Jesus Cristo, que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica e que nosso Salvador, depois de sua gloriosa ressurreição, entregou a Pedro para a apascentar e confiou a ele aos demais Apóstolos para a propagar e reger, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, “é a Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora fora de sua visível estrutura se encontrem vários elementos de santificação e verdade”. Após demorado debate, do qual participei pessoalmente, o “este” foi substituído por “subsistit in”. Todo o resto do texto ficou exatamente como estava e ainda hoje está. Por que se fez a mudança? Na relação oficial, a Comissão explica que com este verbo o texto se adaptou melhor à afirmação acerca dos “elementos eclesiais de santificação e verdade” presentes também em outras denominações cristãs, algumas das quais, como as orientais, sempre foram consideradas até mesmo como “Igrejas” (a locução “Igrejas Orientais” não foi inventada pelo Vaticano II): “ut expressio melius concordet cum affirmatione de elementis ecclesiasticis quae alibi adsunt” (este grifo está no original).

Era, pois, intenção do Concílio Vaticano II ensinar que a una e única Igreja, como Jesus Cristo a quis e fundou, existe historicamente e como tal é hoje cognoscível; e que sua forma existencial concreta é a Igreja que está sendo dirigida pelo Sucessor de Pedro. Ao mesmo tempo, porém, reconhecida que vários elementos (“plura elementa”) eclesiais queridos por Cristo estão presentes (“adsunt”) em Igrejas e Comunidades separadas de Roma. Isto é: a “eclesialidade” não se identifica sem mais (“est”) com a Igreja Católica, mas incompletamente ou imperfeitamente ((segundo o maior  ou menor número de elementos eclesiais presentes);  ela, a eclesialidade, se encontra outrossim nas Igrejas ou Comunidades separadas. Num voto modificativo (o “placet iuxta modum”) 19 votantes sugeriram então que se dissesse “subsistit integro modo in”, isto é, a Igreja de Jesus Cristo se realiza de modo completo, perfeito ou pleno na Igreja Católica, insinuando que ela se realiza nas outras denominações de modo não perfeito ou pleno. A Comissão respondeu que tal doutrina se encontra mais adiante, no número 14. Veja-se sobre isso meu estudo A Eclesiologia do Vaticano II, pp. 59-64, livro que a Editora Vozes retirou do comércio.

Esta, pois, é a doutrina clara e firme do Concílio Vaticano II: “Unicamente por meio da Igreja Católica, que é o auxílio geral da salvação, se pode conseguir a total plenitude dos meios de salvação. Cremos que o Senhor confiou todos os bens da Nova Aliança a um único Colégio apostólico, a cuja testa está Pedro, a fim de constituir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é necessário que se incorporem plenamente todos os que de algum modo pertencem ao Povo de Deus” (UR 3e.).

3. Documentos complementares
Quando Leonardo Boff, no citado livro, concluiu do “subsistit in” que a Igreja de Cristo” pode subsistir também em outras Igrejas cristãs”, um documento especial de Santa Sé sobre aquele livro (Notificação da Congregação para a Doutrina da Fé, de 11-03-1985) rejeitou semelhante exegese conciliar como “exatamente contrária à significação autêntica do texto conciliar”.
E a Notificação sobre o livro de Leonardo Boff explica:
“O Concílio tinha escolhido a palavra subsistit exatamente para esclarecer que há uma única subsistência da verdadeira Igreja, enquanto fora de sua estrutura visível existem somente elementa Ecclesiae, que – por serem elementos da mesma Igreja – tendem e conduzem em direção à Igreja Católica”. E manda ver a Declaração Mysterium Ecclesiae, de 24-06-1973, na qual se reafirmava:

“Os católicos  têm o dever de professar que, por misericordioso dom divino, pertencem à Igreja que  Cristo fundou e que é dirigida pelos sucessores de Pedro e dos demais Apóstolos, nos quais persiste íntegra e viva a primigênia instituição e a doutrina da comunidade apostólica e o patrimônio perene da verdade e a santidade da mesma Igreja. Por  isso não é lícito aos fiéis imaginar que a Igreja de Cristo seja simplesmente um conjunto – sem dúvida dividido, apesar de conservar ainda alguma unidade – de Igrejas e comunidades eclesiais; e de nenhuma maneira são livres para opinar que a Igreja  não exista mais hoje em lugar nenhum, de forma que se deva considerá-la como uma meta a ser procurada por todas as Igrejas e comunidades”.

Pois, como ensina o Concílio, a Igreja, de fato, se encontra plenamente lá onde os sucessores de Pedro e dos outros Apóstolos realizam visivelmente a continuidade com as origens (LG 8b); e a unidade, que é um dom de Deus, de fato foi dada a esta Igreja “e nós cremos que ela subsiste inamissível na Igreja Católica” (UR 4c), cotada “de toda a verdade revelada por Deus e de todos os meios da graça” (ib 4f). E o Concílio  Vaticano II é categórico quando assevera: “Por isso não  podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por Deus mediante Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar perseverar” (LG 14a). Mais severo ainda, adverte: “Não se salva contudo, embora incorporado à Igreja, aquele que, não perseverando na caridade, permanece no seio da Igreja “com o corpo; mas não com o coração”. Lembrem-se todos os filhos da Igreja de que a condição exímia em que estão se deve não a seus próprios méritos, mas a uma peculiar graça de Cristo. Se a ela não corresponderem por pensamentos, palavras e obras, longe de se salvarem, serão julgados com maior severidade” (LG 14b).

Em documento de outra natureza, a Declaração Dignitatis humanae, sobre a Liberdade Religiosa, o Concílio não é menos claro, porém mais positivo: “Professa em primeiro lugar o Sacro Sínodo que o próprio Deus manifestou ao gênero humano o caminho pelo qual os homens, servindo a Ele, pudessem salvar-se e tornar-se felizes em Cristo. Cremos que esta única verdadeira Religião se encontra (subsistere) na Igreja Católica e Apostólica” (n. 1b).

A Pontifícia Comissão  Teológica Internacional publicou no ano passado Temas Seletos de Eclesiologia (veja-se o texto completo português em SEDOC de abril de 1986, 921-966), dedicando o décimo capítulo ao tema da unicidade da Igreja. Sua conclusão é esta: “De nossa análise consta que a  autêntica Igreja não pode ser entendida como uma utopia que visaria a atingir todas as comunidades cristãs hoje divididas e separadas. A verdadeira Igreja, bem como sua unidade, não são exclusivamente uma realidade futura. Elas já se encontram na Igreja Católica, na qual está realmente presente a Igreja de Cristo”.

4. Conclusão
A doutrina oficial da Igreja, por conseguinte, é sem dúvida esta: a única Igreja de Jesus Cristo de fato subsiste de modo pleno somente na Igreja Católica; nas outras Igrejas ou Comunidades separadas da Sé Apostólica de Pedro, ela subsiste apenas parcialmente, em diferentes graus de perfeição, segundo o maior ou menor número de elementos eclesiais substanciais nelas presentes.

E porque a Igreja de Jesus Cristo é uma só, a que foi edificada sobre Pedro e que o próprio Salvador denomina “minha Igreja” (Mt 16, 18), e unicamente nela se encontra a plenitude dos meios de salvação e santificação, exorta o Documento de Puebla n° 225: “Temos o dever de proclamar a excelência de nossa vocação à Igreja Católica”, já que, como ensina belamente no n. 227, ela “é o lugar onde se concentra ao máximo a ação do Pai, que na força do Espírito de amor, busca solícito os homens para partilhar com eles – em gestos de indizível ternura – sua própria vida trinitária”.

Nossa abertura ao diálogo ecumênico não deve ser motivo para atenuar a clareza e a firmeza de nossa fé católica. Ainda neste ponto o Concílio Vaticano II é firme quando nos dá a seguinte regra: “É absolutamente necessário que a doutrina inteira seja lucidamente exposta. Nada é tão alheio ao ecumenismo quanto aquele falso irenismo, pelo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e seu sentido genuíno e certo é obscurecido” (UR 11).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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