A quarta família

HOMOUnião gay pode ser reconhecida como entidade familiar

por Adriana Aguiar

A união homossexual deve ser reconhecida como uma entidade familiar e não apenas como “sociedade de fato”. A manifestação – a primeira no âmbito do Supremo Tribunal Federal – é do ministro Celso de Mello, para quem a regência do assunto deve ser deslocada do campo do Direito das Obrigações para o campo do Direito de Família. Até aqui, na esfera do Superior Tribunal de Justiça, a união homossexual é reconhecida ainda apenas como sociedade de fato. Como se formar um casal fosse algo como ser sócios em um negócio.

A opinião do ministro, incidental, deu-se no exame da ADI 3.300-DF, da qual o Celso de Mello é relator. O ministro extinguiu o processo por razões de ordem técnica – a ADI atacou norma legal já revogada. Mas expendeu considerações sobre o que ele próprio afirmou ser uma “relevantíssima questão constitucional”, entendendo que se impõe ao STF discutir e julgar, em novo processo, o tema pertinente ao reconhecimento da legitimidade constitucional das uniões homoafetivas e de sua qualificação como “entidade familiar”.

Celso de Mello entende que deve ser reconhecido o direito à diferença e o direito personalíssimo da pessoa. O ministro citou recentes decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que já deslocou a discussão da união homossexual para o campo do Direito de Família. O relator chega a indicar o instrumento correto para que a questão volte ao Supremo: a ADPF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

O ministro cita na sua decisão a desembargadora Maria Berenice Dias, do TJ do Rio Grande do Sul, para reforçar que “o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características”.

No atual contexto, a Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento (definida nos parágrafos 1º e 2º do artigo 226); a família que decorre da união estável (parágrafo 3º do mesmo artigo 226) e a família decorrente da entidade familiar monoparental (quando ocorre de apenas um dos cônjuges restar com os filhos), definido no parágrafo 4º, também do artigo 226.

Caso prospere a conceituação preceituada pelo ministro do STF, o quadro legal brasileiro terá a quarta forma de família, a que será decorrente da união homoafetiva.

Leia a íntegra da decisão

MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.300-0 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

REQUERENTE(S): ASSOCIAÇÃO DE INCENTIVO À EDUCAÇÃO E SAÚDE DE SÃO PAULO E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): FERNANDO QUARESMA DE AZEVEDO E OUTRO(A/S)

REQUERIDO(A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

REQUERIDO(A/S): CONGRESSO NACIONAL

EMENTA: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS. PRETENDIDA QUALIFICAÇÃO DE TAIS UNIÕES COMO ENTIDADES FAMILIARES. DOUTRINA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI Nº 9.278/96. NORMA LEGAL DERROGADA PELA SUPERVENIÊNCIA DO ART. 1.723 DO NOVO CÓDIGO CIVIL (2002), QUE NÃO FOI OBJETO DE IMPUGNAÇÃO NESTA SEDE DE CONTROLE ABSTRATO. INVIABILIDADE, POR TAL RAZÃO, DA AÇÃO DIRETA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA, DE OUTRO LADO, DE SE PROCEDER À FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE NORMAS CONSTITUCIONAIS ORIGINÁRIAS (CF, ART. 226, § 3º, NO CASO). DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA (STF). NECESSIDADE, CONTUDO, DE SE DISCUTIR O TEMA DAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOAFETIVAS, INCLUSIVE PARA EFEITO DE SUA SUBSUNÇÃO AO CONCEITO DE ENTIDADE FAMILIAR: MATÉRIA A SER VEICULADA EM SEDE DE ADPF?

DECISÃO: A Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo e a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo – que sustentam, de um lado, o caráter fundamental do direito personalíssimo à orientação sexual e que defendem, de outro, a qualificação jurídica, como entidade familiar, das uniões homoafetivas – buscam a declaração de inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.278/96, que, ao regular o § 3º do art. 226 da Constituição, reconheceu, unicamente, como entidade familiar, “a união estável entre o  homem  e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (grifei).

As entidades autoras da presente ação direta apóiam a sua pretensão de inconstitucionalidade na alegação de que a norma ora questionada (Lei nº 9.278/96, art. 1º), em cláusula impregnada de conteúdo discriminatório, excluiu, injustamente, do âmbito de especial proteção que a Lei Fundamental dispensa às comunidades familiares, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas por relações homoafetivas.

Impõe-se examinar, preliminarmente, se se revela cabível, ou não, no caso, a instauração do processo objetivo de fiscalização normativa abstrata. É que ocorre, na espécie, circunstância juridicamente relevante que não pode deixar de ser considerada, desde logo, pelo Relator da causa.

Refiro-me ao fato de que a norma legal em questão, tal como positivada, resultou derrogada em face da superveniência do novo Código Civil, cujo art. 1.723, ao disciplinar o tema da união estável, reproduziu, em seus aspectos essenciais, omesmo conteúdo normativo inscrito no ora impugnado art. 1º da Lei nº 9.278/96.

Uma simples análise comparativa dos dispositivos ora mencionados, considerada a identidade de seu conteúdo material, evidencia que o art. 1.723 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) efetivamente derrogou o art. 1º da Lei nº 9.278/96:

Código Civil (2002)

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a  união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”

Lei nº 9.278/96

“Art. 1º. É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.”

Extremamente significativa, a tal respeito, a observação de CARLOS ROBERTO GONÇALVES (“Direito Civil Brasileiro – Direito de Família”, vol. VI/536, item n. 3, 2005, Saraiva):

“Restaram revogadas as mencionadas Leis n. 8.971/94 e n. 9.278/96 em face da inclusão da matéria no âmbito do Código Civil de 2002, que fez significativa mudança, inserindo o título referente à união estável no Livro de Família e incorporando, em cinco artigos (1.723 a 1.727), os princípios básicos das aludidas leis, bem como introduzindo disposições esparsas em outros capítulos quanto a certos efeitos, como nos casos de obrigação alimentar (art. 1.694).” (grifei)

A ocorrência da derrogação do art. 1º da Lei nº 9.278/96 – também reconhecida por diversos autores (HELDER MARTINEZ DAL COL, “A União Estável perante o Novo Código Civil”, “in” RT 818/11-35, 33, item n. 8; RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, “Comentários ao Novo Código Civil”, vol. XX/3-5, 2004, Forense) – torna inviável, na espécie, porque destituído de objeto, o próprio controle abstrato concernente ao preceito normativo em questão. É que a regra legal ora impugnada na presente ação direta já não mais vigorava quando da instauração deste processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade.

O reconhecimento da inadmissibilidade do processo de fiscalização normativa abstrata, nos casos em que o ajuizamento da ação direta tenha sido precedido – como sucede na espécie – da própria revogação do ato estatal que se pretende impugnar, tem o beneplácito da jurisprudência desta Corte Suprema (RTJ 105/477, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RTJ 111/546, Rel. Min. SOARES MUÑOZ – ADI 784/SC, Rel. Min. MOREIRA ALVES):

“Constitucional. Representação de inconstitucionalidade. Não tem objeto, se, antes do ajuizamento da arguição, revogada a norma inquinada de inconstitucional.”

(RTJ 107/928, Rel. Min. DECIO MIRANDA – grifei)

“(…) também não pode ser a presente ação conhecida (…), tendo em vista que a jurisprudência desta Corte já firmou o princípio (…) de que não é admissível a apreciação, em juízo abstrato, da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de norma jurídica revogada antes da instauração do processo de controle (…).”

(RTJ 145/136, Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei)

Cabe indagar, neste ponto, embora esse pleito não tenha sido deduzido pelas entidades autoras, se se mostraria possível, na espécie, o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade proposta com o objetivo de questionar a validade jurídica do próprio § 3º do art. 226 da Constituição da República.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de não admitir, em sede de fiscalização normativa abstrata, o exame de constitucionalidade de uma norma constitucional originária, como o é aquela inscrita no § 3º do art. 226 da Constituição:

“- A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida.

– Na atual Carta Magna, ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, ‘caput’), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição.

– Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas.

Ação não conhecida, por impossibilidade jurídica do pedido.”

(RTJ 163/872-873, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno – grifei)

Vale assinalar, ainda, a propósito do tema, que esse entendimento – impossibilidade jurídica de controle abstrato de constitucionalidade de normas constitucionais originárias – reflete-se, por igual, no magistério da doutrina (GILMAR FERREIRA MENDES, “Jurisdição Constitucional”, p. 178, item n. 2, 4ª ed., 2004, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 2.333/2.334, item n. 1.8, 2ª ed., 2003, Atlas; OLAVO ALVES FERREIRA, “Controle de Constitucionalidade e seus Efeitos”, p. 42, item n. 1.3.2.1, 2003, Editora Método; GUILHERME PEÑA DE MORAES, “Direito Constitucional – Teoria da Constituição”, p. 192, item n. 3.1, 2003, Lumen Juris; PAULO BONAVIDES, “Inconstitucionalidade de Preceito Constitucional”, “in” “Revista Trimestral de Direito Público”, vol. 7/58-81, Malheiros; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/287-288 e 290-291, item n. 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora).

Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2006

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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