A Moralidade no Antigo Testamento ( II ) – EB Parte 3

Quando, pois, a bigamia é
introduzida na Escritura, o autor sagrado lhe atribui uma nota pejorativa.

A linhagem dos setitas,
fiéis a Deus (Gn 5, 1-32), assim como Noé, o justo salvo das águas (Gn 6-9),
são monogâmicos.  Precisamente o que
caracteriza a corrupção antes do dilúvio é o irrefreado comércio matrimonial,
talvez a poligamia (cf. Gn 6, 1-4).

De Abraão (ca. De 1800 a.C.; cf. Gn 12) em
diante, porém, os homens, mesmo piedosos, têm freqüentemente (dir-se-ia :
normalmente) mais de uma esposa.24

A praxe da poligamia foi
finalmente reconhecida pela Lei mosaica em 1240 (cf. Dt 17, 17; 21, 15; Lv
18,18).  Este dispositivo da Torá se
explica por um ato de tolerância divina. 
À legislação matrimonial de Israel podem-se aplicar em globo as palavras
de Jesus:

“Foi por causa da dureza do
vosso coração que Moisés o permitiu: a princípio, porém, não era assim”.  (Mt 19,8)

Com efeito, no decorrer dos
tempos a poligamia se tornara comum no antigo Oriente.25 Os hebreus, por conseguinte, eram, já pelo
seu âmbito de vida, inclinados a seguir tal praxe.  Ademais julgavam encontrar em sua concepção
religiosa um estímulo possante para não se afastar do uso geral: os
descendentes de Abraão estimavam, sim, que prole numerosa era sinal de bênção
divina (pois, próxima ou remotamente, agregava o pai de família à linhagem do
Messias), ao passo que esterilidade equivalia 
a maldição (cf. Is 63, 9 e Os 9, 14; Lc 1,25).  Entende-se então que, no caso de ser
infecunda a esposa, o varão hebreu procurasse unir-se a outra, a uma mulher
livre ou a escrava da sua consorte (a prole da escrava era considerada
pertencente à patroa).26

A largura tolerante de que
assim dava provas a Lei mosaica era de certo modo compensada por restrições que
a mesma formulava a respeito do uso do matrimônio; enumerava, sim, estados ou
fases de “impureza legal” (os períodos de menstruação, doenças, etc.), nos
quais os cônjuges eram obrigados a se abster do comércio matrimonial.27 É
verdade que também outros povos conheciam tais restrições ou estados de
“impureza”; todavia Moisés, ao sancioná-las oficialmente para Israel, queria
levantar a mente do povo a um ideal que os pagãos estavam longe de conceber;
reconhecendo usos comuns dos antigos povos, o Legislador hebreu lhes atribuía
um significado mais nobre, apto a corrigir a dureza de coração da sua gente:
deveriam ser observados em virtude de uma aspiração à pureza moral, interior,
ou à santidade:

“Vós vos santificareis e
sereis santos, porque sou santo e não vos tornareis impuros” (Lv 11,44), eis o
que o Senhor recomendava após discriminar as impurezas legais.

Referindo-se a este texto
bíblico, comenta Clamer:

“Tais prescrições
(restritivas do matrimônio) (…), não implicavam  necessariamente superstição
degradante: o freio religioso sendo quase o único que impusesse respeito, o
instinto racional mesmo sabia utilizá-lo para se defender contra os ímpetos do
instinto animal; nos períodos mais perigosos da menstruação ou do parte, a
mulher era colocada sob a tutela de um interdito religioso.  Aliás, qualquer que tenha sido a origem dos
costumes tradicionais promulgados pelo código mosaico, não será preciso dizer
que, quando foram inseridos na legislação de Israel, já ninguém mais sabia o
seu significado originário.  Sendo
expressão da vontade de Deus, esses usos tradicionais visavam assegurar a
santidade do povo de Deus: “Vós vos santificareis e sereis santos, porque sou
santo, diz o Senhor, e não vos tornareis impuros” (Lv 11,44).28

Na plenitude dos tempos, pelo
Evangelho, a poligamia seria removida dos usos do povo de Deus, cedendo o lugar
à monogamia inicial (cf. Mt 19, 4-6).

Divórcio

Eis outro elemento da antiga
Lei que causa surpresa ao cristão: a praxe do divórcio.

Antes do mais, é importante
notar que os textos bíblicos referentes ao divórcio não o instituem em Israel
(como não instituem a poligamia), mas, supondo-o já em vigor, determinam as
formalidades necessárias para o tornar legal e diminuir a sua frequência.

Exigia, sim, a Lei mosaica
motivo serio – houvesse “algo de repugnante” na mulher – para que o marido a
pudesse repudiar (cf. Dt 24,1).  Tal
exigência não ocorria, por exemplo, no Código de Hamurapi, o qual simplesmente
rezava :

“Se um homem estiver
disposto a repudiar uma concubina que lhe tiver procriado filhos, ou uma esposa
que lhe tiver procriado filhos, ele restituirá a essa mulher o seu cheriqton
(espécie de dote) (…)” (Art. 137).

Além disto, a Lei mosaica só
ao marido reconhecia a iniciativa do divórcio; a mulher jamais a podia tomar.  Também esta cláusula restritiva não figurava
no Código de Hamurapi, onde se leem diversos motivos para que a mulher repudie
o esposo; eis um entre outros artigos babilônicos:

“Se uma esposa é boa dona de
casa, irrepreensível, e se o marido sai e muito a negligencia, essa mulher não
tem culpa; pode tomar o seu cheriqton e ir-se para a casa de seu pai”. (Art.
142)

Mais ainda: a legislação
israelita permitia, sim, que a mulher repudiada contraísse novas núpcias; caso,
porém, se casasse de novo, o seu primeiro marido nunca mais a poderia retomar
por esposa (cf. Dt 24, 1-4; Jr 3,1). 
Também este dispositivo visava a restringir os divórcios, admoestando o
marido a que não se separasse sem reflexão prévia.  Fora de Israel, entre os árabes, por exemplo,
o Corã permite que a mulher repudiada seja de novo recebida pelo marido, caso
haja entrementes vivido com outro homem (condição justamente contrária à
legislação mosaica)!

Por essas diversas
restrições, a Lei israelita bem dava a entender quão pouco desejável é o divórcio
numa sociedade que tenda à perfeição, chamada a ser o povo de Deus.  Na plenitude dos tempos, as restrições
cederiam à proibição formal (cf. Mt 19, 3-9).ulteriores aspectos

Por fim, ainda parece
oportuno observar:

Ao lado dos casos de
poligamia, concubinato e divórcio reconhecidos pela Lei, houve, sem dúvida, na
história sagrada, episódios que em hipótese alguma poderiam ser justificados; a
fraqueza humana neles se manifestou, constituindo, como dissemos, o fundo negro
sobre o qual mais havia de sobressair a graça da Redenção.

Tais episódios são entre
outros:

O pecado de Onã (donde o
nome do vício “onanismo”), que Deus puniu severamente, como refere Gn 38, 6-10;

O atentado incestuoso dos
sodomitas, que foi devidamente castigado, conforme Gs 19, 1-25;

A conduta licenciosa de
Salomão, que acarretou, como punição, o cisma do reino deste monarca (cf. 1Rs
11, 1-13, 29-33).  De resto, a Lei
admoestava particularmente o rei contra os abusos da poligamia (cf. Dt 17,17);

O feito das duas filhas de
Lote, relatado em Gn 19, 30-38, poderia ser também julgado culpa grave, sem
causar maior surpresa do que os episódios anteriores; as duas jovens teriam
tido cópula carnal com seu pai!  Apenas
seria de notar que a narrativa faz de Lote uma vítima inconsciente, ludibriada,
a quem não se pode imputar culpa no caso.29

Os exegetas recentes, porém,
são inclinados a crer que o trecho refere não uma história real, mas o que se
chama “uma narrativa etiológica”, 29a cujo significado seria o seguinte: os
moabitas e os amonitas eram povos vizinhos que, tendo-se oposto aos hebreus por
ocasião do êxodo, haviam incorrido no ódio e no desprezo destes (cf. Dt 23,
3-7; Jr 48, 26; Ez 25, 1-11).  Ora, para
exprimir a animosidade, ter-se-ia formado em Israel uma narrativa fictícia: “Moab”
(mê-ab) podia, conforme a etimologia, significar “Ele é do meu pai”, “Amon”
(bem-ammi) seria “Filho do meu pai”. 
Pois bem, estes nomes no decorrer do tempo haveriam sido apresentados
pela tradição israelita como os sinais de atos pecaminosos que teriam dado
origem aos dois povos: duas filhas haveriam, sim, concebido de seu pai Lote, e
gerado os homens a quem teriam imposto os nomes adequados” Ele é do meu pai”
(Moab), “Filho do meu pai” (amon)30 
Destes varões eram ditas proceder as duas nações inimigas ferrenhas de
Israel, as quais assim ficavam bem caracterizadas como oriundas do pecado,
impuras, gente com a qual não se podia ter amizade.31  A narrativa, portanto, exprimiria uma
“história” imaginada para depreciar amonitas e moabitas.  Eis como o Pe. Lagrange resume as razções que
o levam a adotar esta explicação:

“O autor certamente não
acreditava na historicidade do episódio, (…) quando narrava a origem incestuosa
de Moab e Amon.  A ironia é tão acerba,
os trocadilhos tão artificiosos e cruéis que a tradição sabia muito bem como os
devia entender; S. Jerônimo dizia dos rabinos do seu tempo, sem contra eles
protestar: “Assinalam o trecho com pontinhos, para indicar que não merece
fé”.  Abstração feita da finalidade do
pontilhado, o sentido exégético é muito exato: uma sátira não é história”.32

A interpretação assim
concebida não é incompatível com a inspiração do texto sagrado.  Com efeito, o hagiógrafo pode ter consignado
no livros do Gênesis tradições populares, cujo significado era conhecido entre os
judeus; inserindo o episódio de Gen 19, 30-38, o autor não fazia senão
exprimir, nos termos mesmos em que isto se costumava fazer em Israel, a
animosidade existente entre o seu povo e os adversários do seu povo.  Não queria de modo nenhum apresentar como
históricos os traços que não eram tidos como tais pela gente que os referia.

§  5º 
MENTIRA E FRAUDE

A moral cristã ensina que
jamais é lícito dar a entender o contrário do que se julga ser verdade, com a
intenção de enganar o próximo.  Todavia,
esta norma, por depender de grande pureza de consciência, não era de todo clara
aos homens anteriores a Cristo (nem aos pagãos nem aos israelitas), nem foi
evidente a todos os cristãos desde o início da nossa era.33

Não é, pois, de admirar que
na Sagrada Escritura se achem relatados casos de mentira até de homens e
mulheres piedosos.  Já que uma ou outra
dessas históricas se torna, por vezes, motivo de debates, analisar-se-ão abaixo
alguns episódios clássicos.

A fraudulência do Patriarca
Jacó

Jacó, filho de Isaque, tem
um nome que, segundo a etimologia popular hebraica (cf. Gn 27,36), é autêntico
oráculo: o Suplantador.

Esta designação, de fato, o
caracteriza na história sagrada.

Já ao nascer, saiu do seio
materno segurando o calcanhar de irmão gêmeo Esaú, que o precedia e que, por
isto, teria todos os direitos de filho mais velho (cf. Gn 25, 24-26).34  De resto, quando ainda gestava os dois
gêmeos, Rebeca sentira que colidiam entre si no ventre materno, e fora por Deus
advertida de que tal luta se prolongaria no decurso de sua vida, sendo que o
mais velho acabaria por servir ao mais jovem (cf. 25, 22s).

Mais tarde, Jacó
aproveitou-se da fadiga de seu irmão que voltava da caça e, em troca de um
prato de lentilhas oportunamente oferecido a Esaú, comprou para si os direitos
de primogênito (cf. 25, 29-34).

Antes da morte de Isaque,
Jacó – de resto, instigado por sua mãe Rebeca – se apresentou ao pai débil e
cego, dando-lhe a entender que era o filho mais velho Esaú; assim conseguiu
enganar o pai e usurpar para si a bênção e primogênito, que o constituía
herdeiro não somente dos haveres paternos, mas também das promessas divinas
referentes ao povo do Messias (cf. 27, 1-45).

Após estas vitórias
fraudulentas, Jacó se foi para a Mesopotâmia a fim de escolher esposa na família
de seus ancestrais.  Tendo-se fixado em
casa de seu tio Labã, optou por Raquel, filha deste; todavia, só conseguiu
obter o assentimento definitivo de Labã após haver sido explorado por este,
prestando-lhe quatorze anos de serviço agrícola e pastoril (cf. 29, 1-30).  Antes, porém, de regressar à sua terra com a
família já constituída, Jacó se quis indenizar dos trabalhos que lhe foram
extorquidos: aceitando uma oferta de Labã, resolveu levar consigo parte do gado
de seu tio, parte aparentemente modesta, a saber: os cordeiros negros e as
cabras malhadas que, para o futuro, nasceriam dos carneiros brancos e das
cabras negras ou escuras de Labã (este, e não aquele, é o tipo normal e mais
freqüente do gado).  Todavia a modéstia
de Jacó era ilusória: o “Suplantador” soube usar de um artifício habitual entre
os criadores de gado primitivos, para que os carneiros brancos e as cabras não
malhadas gerassem prole respectivamente negra e malhada, a qual lhe
pertenceria.35  Assim Jacó se tornou rico
à custa alheia (cf. 30, 25-43).

Ora foi esse homem tão
fraudulento que Deus abençoou (…) Em vez de a repreender, dir-se-ia que o
Senhor confirmou a violação de direitos que Jacó cometeu em sua vida.

Como se há de entender essa
história?

Uma fase posterior da
existência de Jacó nos leva à reta interpretação:

O hagiógrafo em Gn 32, 23-32
narra que, na caminhada de volta à Palestina, o Patriarca certa noite lutou
contra um personagem misterioso que lhe aparecera; finalmente, o desconhecido
confessou-se impotente, mas ainda quis tocar o nervo da anca de Jacó,
tornando-o coxo; a seguir, pediu ao Patriarca que o deixasse partir.  O “Suplantador” rogou-lhe então a bênção como
condição para que o libertasse; em resposta, o estranho adversário não somente
lhe deu a bênção, mas também mudou-lhe o nome de Jacó para “Israel” (= Forte
contra Deus), “pois, dizia, foste forte contra Deus; também dos homens hás de
triunfar” (v. 29).

A narrativa é certamente
obscura.  O profeta Oséias, 12, 4s.,
identifica o lutador anônimo com um anjo, até mesmo com Deus – o que contribui
para tornar mais enigmático o cenário de Gn 32. 
O resultado da luta também é ambíguo; quem terá vencido? Notemos que o
estranho personagem fez as vezes de mais fraco, pedindo ser libertado, mas não
deixou de se mostrar superior, mutilando Jacó, dando-lhe a bênção desejada
(coisa que só em nome de Deus poder dada) e impondo-lhe novo nome (que era um
oráculo profético).  Que significa isso
tudo?

Os estudiosos contemporâneos
dão ao trecho um sentido muito mais nobre e espiritual do que o que, à primeira
vista, se lhe poderia atribuir. Ei-lo:

O hagiógrafo ou a tradição
israelita teriam recorrido à imagem antropomórfica muito viva para designar uma
luta que se passou não fora de Jacó, mas estritamente na consciência
deste.  O “Suplantador”, dizem, depois de
várias fraudes, via-se de regresso à casa, sabendo que seu irmão Esaú lhe ia ao
encontro com quatrocentos homens; o perigo de morte que então enfrentava o fez
cair em si; tomando consciência dos atos injustos que cometera, julgou ter
chegado a hora de sofrer o castigo de Deus; o abatimento a que este pensamento
o reduziu eqüivalia para ele a uma agonia ou luta.  O Patriarca, porém, não morreu nessa crise;
ao contrário, conseguir sair da depressão (…) Com efeito, o Senhor lhe deu a
saber que o pouparia, embora o pudesse “derrotar”; não o amaldiçoaria, mas, ao
contrário, daí por diante, o tornaria “divinamente” forte contra os homens)=
“Israel”, ou seja, o portador das inabaláveis promessas e bênçãos messiânicas;
Jacó, para o futuro, não seria o “Suplantador” que vence por meios
fraudulentos, mas aquele que sabe contar com o auxílio de Deus mais do que com
a própria habilidade. O defeito deixado na coxa de Israel lembrar-lhe-ia a
“impotência” do seu poder humano e a “prepotência” de Deus, que liberalmente
outorga a vitória ao indivíduo que Ele escolhe. 
É o que delicadamente insinua Sb 10,12:

“A Sabedoria outorgou-lhe (a
Jacó) o prêmio em árduo combate, a fim de que ele reconhecesse que a piedade é
mais poderosa do que tudo”.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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