A Moralidade no Antigo Testamento ( II ) – EB Parte 1

OS DESMANDOS DA CRIANÇA

Não se chegaria a satisfatório entendimento
do Antigo Testamento se não se considerassem de per si os principais temas de
“escândalo” moral que ele apresenta.  É o
que se fará no presente capítulo.

§ 1º  A LEI DO TALIÃO

Como se sabe, o código
legislativo de Moisés mandava que o dano causado ao próximo fosse reparado pela
imposição de semelhante prejuízo ao delinqüente.  É esta a famosa lei do talião1, que assim se
formulava:

“Darás vida por vida,     

 olho por olho,

 dente por dente,

mão por mão,

 pé por pé,
queimadura por
queimadura,

ferimento por
ferimento,contusão por
contusão” 2

Tal norma inegavelmente
visava a instaurar justiça, e justiça perfeita, incutindo um desagravo
equivalente ao agravo.  É este, aliás, o
efeito que todo processo judiciário tem em vista: restabelecer o mais
exatamente possível a ordem violada.  Há,
porém, maneiras diversas de executar este princípio: o modo mais simples
consiste, sem dúvida, em exigir do culpado o mesmo objeto materialmente
entendido.  Todavia esta forma de
reparação, embora pareça por excelência garantir a justiça, não raro pode ferir
a eqüidade; com efeito, a lei do talião não leva em conta as circunstâncias
capazes de atenuar a culpabilidade do delinqüente e, por conseguinte, mitigar o
rigor da pena a ser imposta.  A lei do
talião muito aproxima o homem do autômato, da máquina, não dando suficiente
atenção à dignidade espiritual do réu, que deve ser julgado primariamente
conforme a sua consciência.  Além do
mais, a natureza espiritual e material do homem exige que as sanções infligidas
a este não sejam de ordem meramente material, mas incluam também uma pena de
índole moral, pena que afete o homem diretamente na sua qualidade de ser
inteligente.

Se assim é, pergunta-se:
como pôde a lei do talião entrar no código legislativo do povo de Deus?

Antes do mais, considere-se
que tal maneira de punir era de uso mais ou menos geral entre os povos do
antigo Oriente.  Assim o código
babilônico dito do rei Hamurapi (depois de 1700 a.C.), bem anterior à
Lei mosaica (1240 a.C.),
prescrevia :

“Olho vazado por olho
vazado”. (Art. 196)

“Membro quebrado por membro
quebrado”. (Art. 197)

“Dente espedaçado por dente
espedaçado”. (Art. 200)

“Boi por boi, carneiro por
carneiro”. (Art. 263)

“Morte ao arquiteto de uma
casa que desmorone sobre o proprietário”. (Cf. art. 229)

“Morte ao filho do
arquiteto, se a casa cai sobre o filho do proprietário”. (Cf. art. 230)      

Normas análogas encontram-se
na legislação de Atenas promulgada por Solon (+ ca. de 559), assim como no
Direito Romano.

E por que eram tão comuns
esses princípios?

A sua difusão se explica por
corresponderem bem ao grau de civilização primitiva do homem antigo.  Simplificavam a aplicação da justiça,
dispensando de muitas ponderações, que são coisa familiar ao homem culto.  Além disto, mostrando de antemão a pena do
delinqüente, impunham facilmente temor, o que, para indivíduos rudes, era freio
mais eficaz do que motivos de ordem moral. 
Ademais, eram aptos a reprimir pretensões exageradas da pessoa que
tendesse a explorar a sua situação de vítima. 
Por estes títulos se vê que o talião era oportuno entre os povos
primitivos (se não o fosse realmente, não se explicaria uso tão generalizado).

Com o progresso, porém, da
cultura, os antigos pagãos foram percebendo o grau imperfeito da retribuição
pelo talião.  Consequentemente, admitiam
que o criminoso pagasse indenização monetária, caso nisto consentisse a vítima.3

Ora a todo este processo de
evolução o próprio Deus se quis acomodar na educação do seu povo.  Já antes de receberem a lei teocrática, os
filhos de Israel praticavam o talião, em meio a nações para quem tal praxe era
de todo normal.  Pois bem, ao promulgar a
Magna Carta de Israel, o Senhor se dignou respeitar a tradição da sua gente;
haveria de reformá-la, sim, mas aos poucos. 
Com efeito, os historiadores extrabíblicos referem que, entre os judeus
próximos à era cristã, o talião podia ser substituído pela indenização
pecuniária.4  Por fim, o Messias,
rematando o processo pedagógico do Antigo Testamento, aboliu de todo a prática,
aconselhando mesmo aos discípulos quer perdoassem gratuitamente a quem os
ofendesse (cf. Mt. 5, 38-42, 21-15).

Um só tipo de talião
continua em voga na legislação de Cristo (…)

“Quem pratica a
misericórdia, obterá misericórdia”. (Cf. Mt 5, 7) “Quem não julga, não será
julgado; cada qual será julgado conforme tiver ele mesmo julgado; de modo
geral, a cada um será aplicada a medida que ele tiver aplicado ao próximo.” (Cf.
Mt 7, 1s; Mc 4, 24; Lc 6, 37s)

Eis as normas que, visando o
homem como imagem de Deus, tendem a refrear as paixões do indivíduo e torná-lo
cada vez mais semelhante ao Exemplar Divino.5 
Não teriam sido, porém, inteligíveis aos homens do Antigo Testamento.

Com a prática do talião
estão estreitamente ligados dois outros usos: o herém (extermínio dos inimigos)
e as imprecações.

§  2º  O
EXTERMÍNIO DOS INIMIGOS

Muito menos polido que hoje
era outrora o direito de guerra (…). No Oriente, ao povo vencedor reconhecia-se
a faculdade de dispor das posses e da vida dos vencidos, mesmo de mulheres e
crianças; felizes se poderiam considerar aqueles que, derrotados na guerra,
fossem apenas despojados de seus bens e reduzidos à escravidão! Tal praxe era
chamada o herém (anátema).

1.  É muito importante notar que o herém se
baseava não somente num grau de cultura pouco evoluída, mas também numa
concepção religiosa para nós estranha: cada povo julgava que, na guerra, a
honra dos seus deuses estava em jogo; uma derrota militar seria escárnio para
os deuses da nação vencida, assim como a vitória significaria triunfo da
Divindade.  Por conseguinte, aos deuses
do vencedor julgavam que deviam ser religiosamente imolados, por um ato de
extermínio total, os homens, as famílias, as cidades, os haveres, do povo
vencido.6

O uso, aliás, era tão comum
que não somente os semitas, mas até os germanos o praticavam, segundo o
testemunho de Tácito:

“Victores diversam aciem
Marti ac Mercurio sacravere, quo voto equi, viri, cuncta victa occisioni
dantur. – Os vencedores devotaram a Marte e Mercúrio o acampamento inimigo,
voto este em virtude do qual são entregues ao extermínio cavalos, homens e tudo
que pertence aos vencidos”.7

Ora tal praxe, familiar aos
antigos,8 foi também respeitada por Deus nas suas relações com Israel; a
mentalidade rude seria paulatinamente corrigida (…) Deve-se mesmo dizer que,
para os hebreus, o herém se tornava particularmente necessário e imperioso;
este povo, e ele só, possuía a verdadeira fé, para um dia transmiti-la ao
mundo; por conseguinte, era de sumo interesse na história sagrada que Israel
não corrompesse a sua religião.  Todavia,
a fim de manter incontaminada a crença de Israel, não havia outro meio senão a
absoluta separação dos hebreus dentre os demais povos; a experiência mais de
uma vez comprovou que, ao habitar pacificamente com tribos subjugadas em
guerra,  os judeus se deixaram seduzir
pelas suas pompas religiosas.9  Em
conseqüência, era absolutamente necessário que a legislação de Israel apelasse
para o herém e o sancionasse, a fim de se precaverem danos religiosos
(repita-se; a fidelidade dos filhos de Abraão ao verdadeiro Deus era, na
história, um valor insubstituível, que não podia ficar exposto a risco nenhum).10

Apoiando-se nestas ideias,
eis como o legislador sagrado incutia o herém a Israel:

“Quanto às cidades dos povos
que o Senhor teu Deus te há de dar como herança, nelas não deixarás a vida a
indivíduo nenhum que respire.  Entregarás
esses povos ao anátema: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os
heveus e os jebuseus, como o Senhor teu Deus te mandou, a fim de que não vos
ensinem a imitar todas as abominações que eles cometem para com os seus deuses
e não pequeis contra o Senhor vosso Deus”. (Dt. 20, 16-18; cf. 7, 2-4).

Procuremos explicitar melhor
o que a concepção acima exposta acarretava para os homens do Antigo Testamento.

O fato de que os hebreus
possuíam a verdadeira religião num mundo inteiramente idólatra, fazia com que a
sorte desse povo viesse a ser nada menos que a do reino de Deus em meio ao
reino do erro e do pecado.  Em outros
termos: já que o Senhor decretara realizar o seu plano salvífico através das
vicissitudes de Israel, os hebreus não podiam evitar a conclusão de que os seus
sucessos militares seriam vitórias do reino de Deus; inversamente, os triunfos
dos pagãos seriam triunfos daquele que, em última análise, fomenta a idolatria,
é o mentor da vida dos pagãos – Satanás. 
Dentro da mentalidade do Antigo Testamento, portanto, podia-se com toda
a razão dizer que o reino das trevas triunfava sobre o reino da luz cada vez
que Israel sucumbia na guerra; nessas ocasiões o Príncipe deste mundo parecia
pôr em perigo a causa mesiânica, a salvação do gênero humano.  Eis por que os hebreus diziam que os inimigos
de Israel eram os inimigos de Javé e vice-versa;11 (…), que as suas guerras eram
“as guerras de Javé” (cf. Êx 17,16) ou que “Javé combatia em favor de Israel”
(cf. Js 10, 14,42).  Eis igualmente por
que se afirmava, segundo um modo de falar típico dos israelitas, que Deus mesmo
inculca o herém (cf. Js 10,40)12 e, caso este não fosse devidamente executado
(o que geralmente se dava por desejo ganancioso que os israelitas tinham de se
aproveitar dos bens alheios), puniria os próprios judeus.13

O conceito de que as guerras
de Israel eram ato religioso explica outrossim as prescrições de pureza
impostas aos guerreiros hebreus: era excluído do acampamento militar todo homem
que tivesse tido relações conjugais ou contraído imundície legal por acidente
ou por toque de cadáveres.  O guerreiro
era um homem santificado, consagrado ao serviço de Deus:

“O Senhor teu Deus caminha
em meio do teu acampamento, para te proteger e entregar diante de ti os teus
inimigos; teu acampamento, portanto, deve ser santo, a fim de que Ele não
encontre em ti algo de indigno e se afaste de ti”. (Dt 23, 15; cf. Nm 31,
19-24; 1Sm 21, 6; 2Sm 11, 11).

Verdade é que outros povos
antigos guardavam semelhantes normas de pureza na guerra.  As observâncias podem Ter sido comuns a
muitas nações; a mentalidade, porém, que as animava em Israel, era de todo
própria (monoteísta); cf. págs. 136s.

A consciência de que os
feitos belicosos de Israel eram obra religiosa aparece claramente no livro de
Ester: o conflito entre judeus e persas que este opúsculo descreve se originou
do fato de que Mardoqueu, israelita, se recusou a prestar homenagem (fazer
genuflexão) a Amã, primeiro ministro do rei da Pérsia, homenagem que tinha
significado religioso; em conseqüência disto, o povo eleito passou a ser
perseguido.  Ora foi dessa opressão –
meramente política em aparência, no fundo, porém, estritamente religiosa – que
a chama javista de Israel procurou-se libertar, e de fato se libertou.

3.  Ulterior observação se impõe: embora a
legislação de Israel reconhecesse o herém, ela o abrandava assaz, em confronto
com o que faziam os outros povos.14 
Assim, tolerando o herém, mas um herém mitigado, o Senhor dava a
entender que imperfeito era tal procedimento.15 
Eis alguns testemunhos:

a) o Deuteronômio muito
insiste na humanização do código militar de Israel; recomenda, por exemplo,
que, na campanha de conquista da terra prometida, ao defrontar uma cidade
inimiga, não cananéia, o povo eleito procure reduzir os seus habitantes a
tributo e serviço temperados pela benevolência, evitando o derramamento de
sangue; caso, porém, o adversário obrigue a uma campanha militar e seja
derrotado, Israel vitorioso é exortado a poupar mulheres e crianças;16

b) a mulher não cananeia
feita prisioneira de guerra podia ser tomada como esposa de um israelita, que a
trataria com todo o carinho; abusar de tal prisioneira era estritamente vedado
(cf. Dt 21, 1-14).

Dois episódios da história
sagrada, um do período dos Juízes (cf. Jz 21, 13) e o outro do reinado de Davi
(cf. 2Sm 20, 14-22), dão a ver que as exortações à brandura não ficaram sendo
letra morta: em ambos os casos, os chefes israelitas entraram em acordo com
inimigos não cananeus.

Houve também homens do povo
de Deus que espontaneamente se mostraram humanitários para com os
adversários.  Por exemplo: conforme 2Sm
8,2. Davi, animado de louvável compaixão, não hesitou em romper o costume de
matar todos os prisioneiros; resolveu exterminar apenas a metade dos cativos
moabitas, metade designada pela sorte …! É o que explica que, em 1Rs 20,31,
os sírios reconheçam a clemência rara de que dão provas os reis de Israel; com
efeito, diziam os soldados a seu monarca Benhadad, vencido por Acab:

“Ouvimos que os reis da casa
de Israel são reis clementes. Permite que nos revistamos de sacos sobre os rins
e cordas sobre as cabeças,17 e que vamos Ter com o rei de Israel; talvez te
poupe a vida”.

4.  Acontecia também que os israelitas, ao
aplicarem a lei do herém, por vezes se deixavam levar não pelo zelo de Deus, mas
por paixão humana.  É o que se verifica,
entre outros casos, na história de Jéu: este General foi, por mandado divino,
ungido rei de Israel e recebeu a incumbência de exterminar a casa de Acab, rei
iníquo seu antecessor (cf. 1Rs 9, 2-10); Jeú o fez realmente, mas, embora
intencionasse zelar pelos interesses de Javé, cedeu à crueldade horrorosa (cf.
2Rs 10, 1-17) (…) Ora o feito de Jeú foi, um século mais tarde, explicitamente
repreendido pelo Senhor mesmo, mediante o profeta Oseias (cf. Os 1,4s),  Este episódio permite concluir que nem tudo
que a Sagrada Escritura refere Ter sido mandado por Deus foi executado de
maneira correspondente à vontade divina.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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