A Inquisição

inquisicao2História de uma Instituição controvertida

Introdução

Uma das acusações que sem cessar se levantam contra a Igreja Católica é a de ter terrorizado os povos cristãos pela “sinistra instituição da Inquisição”. As incriminações proliferam em meio de uma ignorância histórica quase completa. Sem conhecimento de causa fala-se de inocentes perseguidos, prisões, torturas, fogueiras… Só a palavra Inquisição encurte misterioso terror.

Nos nossos estudos sobre Galileu Galilei, condenado pela Inquisição Romana, sentimos a necessidade de aprofundar e esclarecer os conhecimentos sobre o órgão jurídico que tomou o caso do célebre pisano (Ver: Galileu Galilei é luz da História e da Astronomia. Editora Vozes).

Muitas vezes até é ignorado o fato de ter sido a Inquisição em tribunal, e é este o caráter que lhe dá a grande impopularidade. Qualquer tribunal de justiça é odiado pelos criminosos, receando pelos cidadãos honrados que se sentem difamados quando citados pelo juiz; finalmente, por falsos sentimentos humanitários, são difamadas as sentenças judiciárias como desumanas, esquecendo-se que qualquer sanção das leis deve ser dura, para intimidar os malfeitores e proteger os inocentes, e as sanções que os nossos antepassados julgavam necessárias eram realmente duras e hoje incompreensíveis. Foram estas as razões que geraram contra a Inquisição a atmosfera de ressentimento e repulsão, fomentada por propaganda malévola e favorecida pela incompreensão das suas finalidades e eleitos salutares.

A aversão contra o espectro sinistro do tribunal da fé é tão geral, que os próprios católicos, fiéis à sua Igreja, dela participam, influenciados por uma constante propaganda maliciosamente tendenciosa. Muitos confundem a imutabilidade do dogma católico com a disciplina eclesiástica. Considerando a Igreja como imutável, afirmam estar ela ainda hoje nas mesmas disposições como em séculos passados, e pronta para perseguir os dissidentes com torturas e fogueiras. Tais acusadores não sabem distinguir o essencial do acidental. Sabemos que o islamismo, fiel às doutrinas de Maomé, considera da sua essência submeter todo o mundo a ferro e fogo.  Ainda recentemente os ulemás do Paquistão se opuseram a uma constituição favorável a adeptos de outras religiões, declarando que o mundo islâmico continua ainda hoje em pé de guerra com todos os infiéis. A propagação da Igreja Católica é também uma características essencial e imutável, mas processa-se por meios persuasivos. A sua defesa contra os hereges, e em particular a modalidade desta defesa incorporada na Inquisição, é um ato disciplinar e acidental, sujeito a variações e ab-rogações. Na sua disciplina a Igreja se adapta às circunstâncias do lugar e do tempo. Ninguém pensa mais em restaurar a Inquisição e menos ainda seus métodos. Estes pertencem definitivamente ao passado.

Não é fácil remediar a ignorância que reina sobre este assunto de dificílima explicação. Raros são os autores católicos que ousam abordá-lo, desesperando desde o início de poder introduzir o leitor num mundo completamente alheio ao nosso, incompreendido até por muitos historiadores. “Para compreender a Inquisição, é preciso formar-se uma alma ancestral”. (Dictionnaire de Théologie Catholique).

As linhas que seguem não pretendem dar um compacto histórico completo, mas só auxiliar, na medida do possível, a compreensão daquele fenômeno histórico. A disposição da matéria obedece a este intuito. Algumas repetições foram inevitáveis. Começamos com algumas explicações e ponderações preliminares.

Cumprimos ainda com o grato dever de agradecer ao Pe. Dr. Frederico Laufer, S. J., Professor da História Eclesiástica, a valiosa colaboração e orientação.

1. A INQUISIÇÃO MEDIEVAL

O QUE É INQUISIÇÃO?

A Inquisição deve ser considerada como o resultado da unificação de duas instituições, uma eclesiástica e outra civil.

A Igreja tem a missão de propagar, fortalecer e proteger a revelação divina. Para satisfazer ao dever, ao “ofício” de proteger a fé, ela criou o tribunal eclesiástico do “Santo Ofício”.

Por outro lado já existiam, desde os tempos dos Imperadores romanos, leis e tribunais civis, dirigidos contra as heresias, que geralmente estavam acompanhadas de desordens e delitos comuns, e consideradas prejudiciais ao Estado.

A Inquisição constituiu-se pois pela reunião do tribunal do Santo Ofício com o tribunal civil. Tinha dois “braços”: O primeiro era o braço eclesiástico, que inquiria (Inquisição), corrigia e finalmente julgava os delitos de heresia. Sua finalidade principal não era vingar e castigar, a quem eram entregues os réus convictos e contumazes, para serem castigados segundo as leis civis.

É lícito perseguir Hereges?

Para compreender a aparição e atividade do tribunal da fé, devemos elucidar uma questão de princípios: Não será contrário ao espírito do evangelho, e até ao direito divino e humano, condenar um homem por causa das suas convicções e intenções internas? Não era já norma romana e pagã: “de internis non judicat practor”? Ou não era um abuso abominável do império romano ter perseguido os cristãos? E podia-se justificar a repressão violenta do maniqueísmo, de que teremos ainda de falar?

A questão proposta deste modo, a Igreja Católica dos primeiros séculos deu uma resposta clara e enérgica, interpretada historicamente por S. João Crisóstomo: “É um crime imperdoável matar um herege”.

Os imperadores romanos, também depois de convertidos, continuavam a guerra mais encarniçada à heresias, mas todos os historiadores estão concordes em afirmar que até o fim do primeiro milênio a Igreja Católica e os Romanos Pontífices se inclinaram mais para a benignidade com os heterodoxos.

As heresias, porém, nunca faltavam. Os maniqueus e donatistas nunca foram extintos, mostrando uma vitalidade assustadora. Surgiram os priscilianistas e outras seitas. Contudo o proceder constante dos mais conspícios representantes da religião cristã era a demência, repugnando o rigor da autoridade civil. Assim Santo Antonio defendeu durante muito tempo o sistema de benignidade com os hereges, acreditando que poderia convencer e atraí-los por uma franca discussão (Cf. B. Llorca, La Inquisición en España. Introdução).

A experiência desfavorável causou uma lenta mas segura mudança das opiniões. Já o mesmo S. Agostinho constatou o grande dano causado à religião pelos hereges obstinados – qualquer sujeito malicioso ou alucinado podia perverter inúmeros homens desprevenidos – e começou a defender o emprego da força excluindo contudo a pena de morte. O já citado S. João Crisóstomo chegou à mesma conclusão.

Interpretando a disposição dos ânimos que nascia, podemos dizer que a pergunta acima formulada foi substituída por esta: Será lícito reprimir a heresia pelo uso da força, quando ela constitui um perigo iminente para o ordem religiosa e civil? A autoridade civil já dera, desde havia muito, a resposta afirmativa e continua ainda hoje na mesma disposição. Siga um exemplo: Contrariando seus princípios de completa liberdade democrática, os Estados Unidos da América do Norte julgavam necessário proteger-se contra a desintegração de sua sociedade.  Começaram a citar diante dos tribunais os comunistas declarados, “por propagarem uma ideologia revolucionária”, com o fim confessado de derrubar a ordem existente e a constituição democrática. (Em tempos passados teria sido um crime de lesa-majestade, como veremos abaixo). Este proceder contra os comunistas é uma genuína restauração dos princípios inquisitoriais da Idade Média.

Vemos que a lógica moderna concorda com a dos nossos antepassados. Quando, porém, aprovamos assim o princípio, devemos aprovar também as modalidades, do seu proceder, como a história as relata. Elas eram a expressão do modo universal de pensar e agir naquele estado de cultura.

Como veremos abaixo, na parte histórica deste estudo, tanto o Estado como a Igreja se viam em face de um perigo crescente e ameaçador. Toda a sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a civilização e cultura do Ocidente, o progresso, a união e paz estavam ameaçados de dissolução. Imaginamos, em comparação, o que deveria acontecer hoje, se não houvesse policiamento para reprimir os atentados à ordem, bens, vida e pudor da população.  Seria o completo domínio do terror.

Em face do perigo, e constrangida de agir, a igreja tentou uma combinação da clemência em o rigor. O perigo, emanado da heresia, devia ser dominado com a força necessária. Porém com os próprios hereges, com os indivíduos, se usaria toda a clemência possível. A finalidade do novo órgão judiciário seria converter e reintegrar os hereges, absolvendo os penitentes e condensado só os contumazes, os incorrigíveis. A nenhum governo, a nenhum tribunal e juiz daquele tempo ocorria a ideia de absolver criminosos só por se mostrarem arrependidos. Foi este porém o princípio básico, o farol aceso pelo espírito de caridade e que iluminou toda a atividade inquisitorial durante os vários séculos da sua existência.

Assim compreendemos que todo o Ocidente cristão: a autoridade civil, os governadores da Igreja, todo o povo cristão, enquanto incontaminado pelo veneno, considerava indispensável o órgão regressou da heresia. Ficamos hoje estupefatos diante desta harmonia completa. Vemos os homens mais eminentes, seculares e eclesiásticos, destacados por prudência, ciência, caridade e santidade, patrocinar unanimemente a mesma causa. Não podemos duvidar que nós mesmos, se tivéssemos vivido naquela época, teríamos pensado como eles. Incriminá-los seria pois equivalente a condenar a nós mesmos, ou ao senso comum humano. O estudo das exposições seguintes corroborará esta conclusão.

A mesma convicção e concordância se encontrou entre os protestantes. A reforma é uma história de guerras e execuções dos católicos, não só na Inglaterra, sendo também na Alemanha e na França. Lutero, Melanchthon, Butzer decretaram a pena de morte para os “hereges”. Calvino mandou queimá-los e recebeu a aprovação de Lutero (Der Katholle, 20-10-1935).

Se os reformadores procederam da mesma forma como os governos católicos, contudo negamos que os princípios acima estabelecidos justifiquem seu proceder. Eles não se viam na necessidade de defender uma ordem existente, nem de salvar a religião de inovações perigosas, os de preservar a cultura de decadência. Para eles a perseguição da antiga religião era um meio de propagar suas próprias inovações. Desde o início eles imitaram os muçulmanos, propagando suas doutrinas pela pressão e até por fraude, com o auxílio dos reis, vendo que só por meios persuasivos não conseguiriam arrancar o povo ao seio da Igreja Católica.

Lembremos aqui como complemento o que fizeram os nazistas, proclamando alto o ódio como base de todas as suas relações com os dissidentes e foi este ódio que encheu os campos de concentração e de morte. Os comunistas anunciam a paz do mundo, uma paz singular que, para o exterior, “não exclui o emprego das armas” e, para o interior, estabelece a paz do cemitério. Com estes princípios é ameaçada a cultura universal, enquanto a Inquisição salvou a cultura, como veremos.

A questão que acabamos de tratar é de tanta importância, que não achamos supérfluo acrescentar as ponderações do Professor Dr. Frederico Laufer, S. J., feitas sob outro ângulo.

1.  A fé, revelada por Deus, restauradora do mundo, era considerada pela Cristandade medieval como seu tesouro mais precioso. Por ela o cristão se distinguia de todo o resto da humanidade. Era seu apanágio, privilégio divino.  Na mesma época da história que devia ver o aparecimento da Inquisição, a fé tão viva animou os exércitos dos Cruzados a sacrificar a vida pela defesa dos lugares santos. Se então na retaguarda, no próprio seio da Cristandade, hereges, talvez vindos do estrangeiro, fariam propaganda de uma crença contrária, já condensada pela Igreja desde séculos e reprovada pelo Estado por destruir a união da fé e a ordem social: podemos compreender a indignação que se apodera de todos.

2. É verdade que não se deve “forçar” atingiram  a aceitar a fé. Neste particular os medievais procediam corretamente.  Não obrigaram os judeus, nem os pagãos ou muçulmanos a abraçar a fé cristã. (Medidas estaduais diferentes nos séculos XV e XVI não emanaram da Igreja nem tiveram sua aprovação). Mas quem era cristão tinha da Igreja e da Cristandade até a morte, assumira supremas obrigações diante das autoridades, às quais davam direito de urgir o fiel cumprimento. Apostalando, o cristão tornava-se perjuro, réu de um crime considerado como o maior de todos.

3. Mas se alguém perde inteiramente a fé, ou convencendo-se subjetivamente de sua falsidade, agir contra este não será equivalente a sujeitá-lo ao terror, fazer de um hipócrita? A esta pergunta dava-se a resposta seguinte. Ao povo simples, ignorante e até ao homem culto mas isolado, não se pude reconhecer o direito de se levantar em assunto de fé e moral contra o consenso comum e a  autoridade eclesiástica estabelecida por Deus. As ideias novas contrárias à Igreja não podem gerar convicção objetiva, mas apenas subjetiva – adesão ao erro.

A mais, se os inovadores tivessem guardado para si suas idéias, poderiam viver em paz. Mas quando começavam a doutrinar, atrair gente simples e desprevenida, os pastores deviam defender a população e a ordem estabelecida, da mesma forma como hoje o Estado reprime revolucionários.

A propaganda herética não era pois considerada como o produto de verdadeira convicção intelectual, mas antes como obstinado fanatismo religioso, ou má vontade e religião contra a ordem social. A tais mentalidades não se pode fazer frente com instrução, com argumentos da razão, senão com coação, tribunal e prisão. Julgava-se junto aplicar a pena capital.

4. A Igreja – da mesma forma que o Estado – reclamava para si um poder coercitivo, o direito de infligir penas temporais. Mas ela nunca pronunciou ou executou uma sentença de morte.

5. Por sua vez o Estado convencia-se de que suas obrigações éticas provinham de dupla fonte: da necessidade de velar pelo bem comum e da ordem positiva de Deus, fundadora da Igreja visível e da ordem social. CAUSAS GERAIS QUE MOTIVARAM A INSTITUIÇÃO DO NOVO TRIBUNAL.

Para os criminosos comuns já existiam os tribunais civis. Mas tanto o Estado como a Igreja viam-se a braços com o desenvolvimento de numerosas ideologias perigosas, cujo conhecimento é necessário para compreender a necessidade da sua supressão por um órgão jurídico apropriado e novo.

Para as exposições que seguem confira-se:

1) O tomo 64 da monumental Enciclopedia Europen-Americana, editada por Espasa-Calpe, Bilbao, Espanha (Citaremos Espasa);

2) Dictionnaire de Théologie Catholique, Paris, 1923 (Citaremos DTC);

3) A literatura ocasionalmente indicada.

1. OS MANIQUEUS. Já no tempo do Império Romano os maniqueus, que professavam uma doutrina dualística, eram considerados tão prejudiciais à ordem civil e religiosa que o Imperador Dioclesiano os mandou perseguir e eliminar por todos os meios possíveis.

Mas o maniqueísmo não foi extinto. Continuou a existir no Oriente. No século X, a Imperatriz Teodora fez massacrar uma centena de milhares de cátaros (=”puros”), como se chamavam os neo-maniqueus. Perseguidos também pelo Imperador Alexis Commenus, por 1118, muitos deles emigraram para o Ocidente onde acharam refúgio e granjearam novos adeptos. No século XII são encontrados nos Países Baixos, Alemanha, Lombardia, Espanha e França, onde eram chamados Albigenses.

Enquanto no Sul continuava a ameaça do islamismo, ao Norte dos Alpes a cristianização era de data recente e ainda imperfeita. A influência do Papado era diminuta, por causa do poder dos senhores feudais que governavam, ou constituíam o baixo e alto clero. Quanto menor era o ascendente da Igreja, tanto maior o perigo causado pelo neo-maniqueísmo ou catarismo.  Negando ou deturpando quase todas as doutrinas do cristianismo, a seita sinistra era detestada pelo povo que perseguia seus adeptos. As vezes, cátaros eram arrancados aos tribunais seculares ou eclesiásticos e lançados ao fogo. Porém a seita aumentava em número e influência e teve influxo pernicioso nos valdenses (Cfr. Wilhelm Neuss, Die Kirche des Mittelalters, 1946).

Os cátaros ameaçavam de decomposição a sociedade humana. Ensinavam a iliciedade do matrimônio: “O fruto proibido no paraíso terrestre fora o uso do matrimônio”. – “A propagação do gênero humano constitui uma obra diabólica”.  – “Uma mulher grávida é uma mulher que tem o demônio no corpo”. – Contudo só dos “perfeitos” podiam exigir a completa “pureza”, na abstenção do matrimônio.  Sendo evidentemente dificílima a perseverança no estado perfeito, prevenia-se a defecção pela “endura”, assassino por privação de alimento, prática que se estendia até as crianças. Muitos a praticavam voluntariamente (DTC). É de crer que a “endura” vitimou mais cátaros que toda a atividade inquisitorial (W. Neuss).

Estas doutrinas e praxes subversivas eram sustentadas e propagadas com fanatismo. O novo surto do maniqueísmo, nos cátaros e albígenses, tinha caráter mais violento do que nunca, a tal ponto “que os príncipes, os reis, os imperadores e o povo em massa procederam à execução dos hereges que consideravam como o maior perigo” (B. Llorca).

O mesmo autor nota que, se jamais houve uma heresia perigosa para o Estado e para a Igreja, era sem dúvida a dos albigenses e cátaros. Eles se rebelaram contra a autoridade do Estado não menos do que contra a da Igreja. A princípio a Igreja se mantinha afastada das perseguições e recomendava compaixão para com os hereges, indulgência que aumentava o perigo e obrigou finalmente os Papas a mudarem de atitude.

2. OS VALDENSES. Desde 1173 reuniam-se homens que pretendiam viver a vida de Cristo e dos Apóstolos. Em breve tornaram-se hereges e faziam propaganda ativa na Lombardia, Piemonte, França, Alsácia, Boêmia, Áustria, Baviera, Pomerânia, Brandesburgo. Desprezavam a autoridade da Igreja, que chamavam de nova Babilônia e lhe arrancavam os fiéis. Insurgiam-se também contra a justiça secular, combatiam as guerras e as Cruzadas.

Omitimos aqui a enumeração de muitas outras seitas, como também certas
distinções que se podem fazer entre maniqueus, cátaros e albigenses, e
as relações das seitas entre si.

3.  OS JUDEUS – fora da Espanha e Portugal – geralmente não eram perseguidos.  Só esporadicamente ouvimos o contrário, como por exemplo a ação do Margrave de Brandenburgo que em 1510 mandou queimar 38 judeus. Era-lhes proibido fazer proselitismo e aos convertidos apostatar novamente da fé.  Contudo por seu ódio à religião cristã, seus pretensos em reais sacrilégios e assassínios, pelo afã de conseguir riquezas, principalmente pela usura, eles provocavam a vingança do povo e a atenção perpétua das autoridades.

4. Perseguidos pela Inquisição seriam mais tarde também os “EXCOMUNGADOS CONTUMAZES” e os “ESPIRITUALISTAS”  de diversas seitas, que provocavam cisma na Ordem Franciscana e queriam obrigar a todos os fiéis a observar a pobreza absoluta, entravando assim qualquer progresso material e cultural.

5. A MAGIA, divinação, sortilégio, alquimia, culto do demônio, pactos com o demônio, que se consumavam no “sabat”. A crença na magia e nas “bruxas”, que hoje revive assustadoramente, nunca falhou nos tempos antigos e medievais. A justiça leiga combatia a magia e perseguia os magos e as bruxas. Também a legislação os reprimia.  Muitas vezes, sentenciados brandamente pelo tribunal eclesiástico, eram de novo requeridos pela justiça leiga e invariavelmente castigados pela morte.

Citemos um caso (DTC). Aos 15.10.1346 a Inquisição de Exilles (Dauphiné, França) sentencia um mago por quatro delitos.  Confesso e arrependido, ele recebe penitência de jejuns e peregrinações.  Mas a “Cour mage” civil também o processa e o condena a morte por 15 delitos, dos quais citamos os seguintes: 1) Teve relações com o demônio; 2) renegou a Deus e pisou a cruz com os pés; 3) escutou os conselhos do demônio; 4) o demônio proibiu-o de beijar a cruz. Estes quatro delitos são mencionados nas sentenças dos dois tribunais, mas o tribunal leigo continua: Compôs pós mágicos; cometeu malefícios e assassinou crianças; foi ao “sabat”; cometeu envenenamentos…

Também o povo crédulo e supersticioso via nos magos e bruxas seus maiores inimigos e cometia inúmeras violências em que não podiam faltar atentados contra a honra e os bens alheios.

6. A Inquisição devia julgar também certos crimes de direito comum, principalmente os delitos graves contra a moralidade.

7. Entre as  causas que geraram a Inquisição devemos enumerar também a ideologia da Idade Média. O POVO, com sua fé ardente, não podia aturar o erro, nem o desprezo de suas crenças. Sentia-se provocado e injuriado por sacrilégios cometidos pelos hereges. Toda a discussão ideológica levava a violências, cometidas por ambas as partes. Os REIS, por sua vez, consideravam a unidade religiosa como base, ou parte da unidade civil. Para eles a perseguição dos hereges era uma questão política de unidade e paz interna. Realmente, onde medrava a heresia, imediatamente havia distúrbios, rebeliões dos hereges, reações populares violentas, guerras religiosas.

Para resumir e ilustrar as causas até aqui alegadas, ouçamos Espasa: Os repetidos sacrilégios, as doutrinas que ameaçavam a propriedade, a honra e a paz das famílias e dos povos, os incêndios e assassinatos, as desordens e rebeliões chegaram a tal ponto, que os próprios reis – que ao princípio se mostravam indiferentes, quando não favoreciam os hereges – viam suas dinastias em perigo. Causaram desordens os sequazes de Tanchelino, que se dizia encarnação do Espírito Santo e se casoupublicamente com uma estátua da Virgem, cometendo inúmeros atos imorais e apropriando-se de vultuosos bens.  Arnaldo de Bréscia com seus bandos apoderou-se de Roma e a saqueou, provocando guerra civil. Pedro de Buis foi assassinado, quando ia pôr fogo a todas as imagens sagradas, venerada pelo povo.

Espasa continua: A multiplicidade e o progresso das heresias no século XII tão grande, que punha em grave perigo a Igreja e o Estado, ameaçando a nova civilização ocidental, e originando não só a perversão dos costumes e a anarquia nas crenças, mas também lutas civis produtoras de enormes desordens públicas.

Tanto a Igreja como o Estado se viam na necessidade de agir. Mas enquanto se tratava de heresias, o Estado precisava da cooperação da Igreja, única competente em questão de fé.

A história parece provar que, apesar da sua gravidade, as causas alegadas não teriam bastado para vencer a relutância da Igreja. Mas sobreveio a insistência e a arrogância dos reis – tanto na Idade Média como mais tarde na Península Ibérica – que finalmente determinaram os Papas a agir. Acrescem pois as seguintes causas de caráter diferente.

8. A INSISTÊNCIA DOS REIS. Uma carta de Luís VII da França, enviada em 1162 ao Papa Alexandre III, ilustra muito bem a posição que tomavam a Igreja e o Estado: “V. Sabedoria preste atenção toda particular a esta peste (maniqueus em Flandres) e a suprima antes que se possa agravar. Eu vos suplico pela honra da Fé cristã, daí nesta causa toda a liberdade ao Arcebispo (de Reims), ele destruirá aqueles que assim se levantam contra Deus, sua severidade junta será louvada por todos os que, nesse país, estão animados de genuína piedade. Se Vós agirdes de outro modo, os murmúrios não se aquietarão e desencadeareis contra a Igreja Romana as veementes censuras da opinião” (DTC).

A carta deixa entrever que o Papa, fiel à antiga tradição da Igreja, muitas vezes manifestada por seus representantes, era contrário a medidas de coação. Mas a iminência do perigo já começava a mudar a “opinião”, povo e príncipes exigiam repressão eficiente, em muitas regiões o próprio povo e as autoridades agiam por sua conta. O Papa entendeu que devia mudar de atitude e regular o proceder juridicamente.

9. A ARROGÂNCIA DOS REIS. Quão completa é a questão da Inquisição e das suas origens depreendemos de um ponto de vista inesperado exposto por Mons. Donais (Cfr. F. de Almeida, História da Inquisição em Portugal). Depois de um século de desenvolvimento a Inquisição foi fundada definitivamente pelo Papa Gregório IX em 123). Segundo Mons. Donais a razão desta decisão foi para o Papa “A necessidade de criar uma arma de defesa para repelir as intrusões do Imperador Frederico II na esfera eclesiástica”, F. de Almeida continua: “É bem conhecida a dobrez política de que usou o Imperador nas suas relações com a Santa Sé, faltando sem escrúpulo aos compromissos mais solenes e excedendo muitas vezes o círculo da sua autoridade. A pretensão de dominar o papado é manifesta… O zelo, por vezes excessivo, que Frederico II mostrou na repressão da heresia, obedecia ao mesmo pensamento de dominar o poder eclesiástico, procurando ganhar prestígio na opinião dos fiéis e afirmando solenemente a própria autoridade. Fala da “plenitude do seu poder” que lhe “vinha de Deus”. O Senhor constituíra-o defensor da tranqüilidade da Igreja, para a não deixar “contaminar por alguma ovelha ronhosa”. Apóia-se em “ambos os direitos” (civil e eclesiástico)(…) Ao mesmo tempo o Imperador planejava lançar na mesma fogueira os hereges e os seus inimigos pessoais e políticos. E assim o fez”.

A decisão papal de opor uma barreira às invasões na esfera política, instituindo a Inquisição, não queria pois perseguir os hereges com novo rigor, mas obstar à prática de crimes políticos cometidos em nome da Igreja. O proceder de Frederico II achou mais tarde irritação nos reis da Espanha e Portugal, como ainda veremos.

HISTÓRIA DA INSTITUIÇÃO

Depois de ser considerado de preferência os aspectos jurídicos do tribunal da Inquisição, acompanhemos seu desenvolvimento histórico. As grandes desordens e inquisições causadas pelas heresias durante a Idade Média exigiam enérgica intervenção dos poderes públicos. A iniciativa não podia partir da Hierarquia Eclesiástica. O Papa só podia insistir com os príncipes de remediar os males. Também os bispos eram quase impotentes com seus meios escassos e reduzida influência. Na Alemanha, onde os bispos eram ao mesmo tempo príncipes, eles podiam agir com maior facilidade. Na França a reação ao perigo era mais urgente. Mas o conceito de um tribunal de dois foros era ainda desconhecido. As idéias deviam clarear com a experiência e à custa de muitos esforços infrutíferos de extinguir as heresias por meios persuasivos.

Para o seguinte, confira-se Espasa e DTC.

Em meados do século XII era desesperadora a causa da religião ortodoxa no Languedoc. Os albigenses (cátaro-maniqueus) propagavam suas crenças por meio das armas, de incêndios e saques. Particulares e comunidades dirigiam-se ao Papa, pedindo intervenção e auxílio. Começou então uma prolongada ação papal, cujas diferentes fases esboçaremos brevemente. Em 1178 o Papa Alexandre III encarregou o bispo de Meaux de intervir junto aos senhores feudais. Em 1179 o III Concílio de Latrão lembrou o direito romano, mas distinguiu entre as penas espirituais da Igreja e as temporais infringidas pelo poder civil. Seguiu uma série de legações infrutíferas. Em 1184, o Concílio de Verona, celebrado com a presença do Papa Lúcio III e do Imperador, determinou que o juízo sobre as heresias era da alçada papal. O Papa incumbiu os bispos de visitar suas dioceses, colher informações sobre as heresias e ameaçar de censuras eclesiásticas os hereges e os senhores feudais que os protegiam. Por sua parte o poder civil admoestava os barões de não fomentar as heresias. Aos transgressores e em geral a todos os hereges eram infligidas as penas estabelecidas pelas leis civis, como confiscação, desterro, infâmia e outras.

Aqui já aparecem nitidamente distintas as duas componentes da futura inquisição, a Eclesiástica e a Secular, mas estavam ainda coordenadas, procedendo cada uma independentemente da outra. Faltava só um passo que em breve se de, para reunir os dois tribunais em um só. O Concílio de Verona constituiu portanto o primeiro passo no estabelecimento da Inquisição.

Depois do Concílio de Verona o Papa mandou numerosos missionários para converter os hereges. Um após outro abandonou a ingrata tarefa. Os albigenses se recusavam a entrar em discussões e ameaçavam os legados do Papa.  Por mãos dos hereges morreu o cisterciense Castronovo. O assassínio do legado Pierre de Castelnau em 1208 desencadeou as horrorosas guerras albigenses, cujos excessos revelaram a necessidade de refrear a agressividade dos hereges, por meios legais.”A regulamentação do proceder por parte do poder eclesiástico e do poder secular, apresentava-se como o meio de reprimir as arbitrariedades com que procediam os príncipes, os senhores feudais e o povo” (Cf. G. Scnürer, Kirche and Kultur im Mittelalter, II e III, 1929).

Em 1215, São Domingos de Gusmão – o depois fundador dos Frades Pregadores, os dominicanos – participou dos esforços infrutíferos de reduzir os extraviados ao redil da Igreja. Foi provavelmente em 1216 que o Papa Inocêncio III o designou primeiro inquisidor. Naquele mesmo ano fundou-se pois, em Toulouse, o primeiro tribunal da Inquisição, a que deviam seguir muitos outros em todos os países cristãos.

Revestido do novo poder, porém empregando quase unicamente a pregação, o exemplo de suas virtudes e o Rosário. São Domingos conseguiu a conversão de mais de cem mil pecadores públicos, na maior parte albigenses.

Como instituição permanente e oficial para toda a Igreja, a Inquisição aparece só em 1231, por bula do Papa Gregório IX.

Fundado o Tribunal do Santo Ofício na França, ele se estendeu rapidamente por toda a Europa. A sua entrada quase imediata na Itália será considerada mais adiante, o mesmo tempo o Imperador Frederico II colaborou com os legados do Papa na perseguição dos hereges sicilianos. A iniciativa do Imperador teve vastas conseqüências. Por vários decretos ele declarou a heresia crime de lesa-majestade.

A respeito desta concepção nota o Cardeal Hergenröther (Kirchengeschichte, II, p. 710): “Segundo o direito imperial a heresia não só igualava mas superava em culpabilidade o crime de lesa-majestade (…) “. Não menos do que a Igreja, o estado considerava a heresia como o maior dos crimes: crimen maximum.

Em 1232 um decreto imperial estendeu a Inquisição a todo o Império. Deste modo ela entrou na Alemanha, onde na verdade teve pouca influência e em breve decaiu. Em seguida achou entrada na Boêmia e Hungria. Finalmente cobriu toda cristandade ocidental – inclusive a Península Ibérica, com exceção da Inglaterra (DTC).

Estas últimas palavras referem-se à Inquisição estritamente medieval. Em épocas posteriores ela funcionou também durante algum tempo na Inglaterra. “Assim Maria, a Católica, tentou, por meio dela, restaurar a Fé católica. Mas as poucas condenações registradas naquela época desapareceram diante das enormes massas de católicos espoliados dos seus bens, encarcerados e executados debaixo do regime subsequente da rainha Isabel”. (Cf. Der Katholik, 20-10-1935).

O Papa Gregório IX confiou os tribunais da Fé aos dominicanos e franciscanos. Assumiram os frades, em obediência à Santa Sé, uma missão que lhes valeu, principalmente aos dominicanos, muitas inimizades e até hoje injustas acusações. Vários inquisitores morreram pelas mãos dos hereges.

Em breve se fez sentir a necessidade de uma direção central que tivesse as atribuições de um tribunal supremo de apelação e resolvesse dúvidas e consultas. Em 1263 o Papa Urbano IV nomeou João Caetano Ursino primeiro inquisidor geral. Séculos mais tarde, em 1542, Paulo III aboliu o cargo de inquisidor geral e confiou suas atribuições à nova Inquisição Romana. Em 1568 Sixto V. Reformando as Congregações da Cúria Romana, confirmou as disposições de Paulo III. Com essa centralização chegou a seu término a evolução da Inquisição, chamada medieval, por ter suas origens na Idade Média. Ela funcionou até o século XV. Depois perdeu importância em muitos países, tendo contudo uma renovação na Itália, e outra fundação de caráter diferente na Península Ibérica. Estas Inquisições regionais serão consideradas à parte.

Os modos de proceder eram tão estáveis que as exposições gerais que logo daremos ficaram essencialmente as mesmas no correr dos séculos e nos diferentes países. Os processos abrangiam heresia, suspeita de heresia, cisma, apostasia, magia, adivinhação, vaticínios, sacrilégios.

Procedimento do tribunal da inquisição

Quanto à sua forma jurídica, o Santo Ofício era um tribunal revestido das mesmas características de todos os tribunais da Idade Média e início dos tempos modernos. Seu proceder era secreto, exigiam-se testemunhas, dava-se ao réu conhecimento das acusações, advogado (conselheiro) e autorização de defesa. Ao menos na Espanha, a partir de certa época, o fisco pagava a defesa dos processados pobres (Espasa). Na exposição do procedimento seguimos o Dictionnaire de Théologie Catholique.

1. O procedimento começava por um manifesto ou pregação que convidava os culpados de heresia a comparecer espontaneamente, e dos mais exigia a denúncia dos criminosos.

2. Determinava-se um “Tempo de Graça” de 15 a 30 dias. Quem se apresentava durante este prazo, prometendo emenda, só recebia penitência leve.

3. Os suspeitos ou denunciados eram citados diante do tribunal.

Procedia-se ao interrogatório dos acusados.

5. Ouviam-se os acusadores e testemunhas. Segundo antiga lei, era sujeito a castigo quem não conseguia provar sua acusação. Esta prudente cautela, já usada pelo direito romano, dificultava tanto o procedimento que foi ab-rogada, medida infeliz, embora inteligível pelas circunstâncias particulares do tribunal da fé: a natureza da acusação era tal que frequentes vezes ela se apoiava em indícios e não em provas. Contudo o regulamento exigia dos inquisidores de não se fiarem senão em pessoas honradas e discretas. Um falso acusador era tratado com o mesmo rigor como os hereges.

6. Quando a obstinação do réu a exigia, seguia a “vexação”, constituída por prisão preventiva e dura. Quando finalmente esta não surtia efeito, podia-se usar a tortura, de que falaremos abaixo.

7. Sentença e auto-de-fé. Para garantir sentença justa, os inquisidores não podiam decretar penas graves – como prisão perpétua ou relaxamento ao braço secular – sem a presença e cooperação do bispo local. Mais tarde, Bonifácio VIII (1204-1303) exigiu o concurso do bispo para todas as sentenças. Os denunciantes não eram manifestados aos acusados para evitar represálias. Mas os nomes deviam ser comunicado aos expertos (assessores) que em número de 25, 32, 45 ou até 51, formavam o “júri” do tribunal, e deviam ser ouvidos.  Esta praxe distinguia favoravelmente a Inquisição de todos os outros tribunais.

Aos réus convictos mas o tribunal infligia penitências moderadas.

Depois de o tribunal ter concluído certo número de processos procedia-se a um ato público e solene, em que se promulgavam as sentenças, os convictos arrependidos pronunciavam sua abjuração, e os impenitentes eram entregues, “relaxados”, ao braço secular. Estas sociedades eram os célebres autos-de-fé, celebrados com a finalidade de restaurar a pureza da fé, deturpada pelas heresias, reconciliar os errantes, intimidar hereges ocultos e fortalecer cristãos vacilantes.

Em geral eram poucos os que ficavam obstinados até o fim. Sem dúvida muitos fingiam arrependimento. Quando restava um ou outro declarado impenitente, era entregue ao braço secular. A autoridade civil recebia os réus e os levava em lugar diferente do auto-de-fé e ali quase sempre os executava. Em certos casos eram estrangulados e queimados depois de mortos, outros delinquentes mais graves eram queimados vivos. Entraremos em mais pormenores ao caracterizarmos a Inquisição Espanhola.

Tortura

As infinitas acusações contra o instinto da Inquisição estribam-se quase exclusivamente na praxe cruel da tortura e da execução pelo fogo. Tais procedimentos são tão contrários aos nossos sentimentos, apurados pelo progresso dos séculos, que não os podemos compreender e unanimemente os reprovamos. É verdade que muitos acusadores da Inquisição – protestantes, comunistas – deveriam primeiro considerar os abusos maiores cometidos nas próprias fileiras, mas fica a impressão penosa do que realmente sucedeu.

O desenvolvimento histórico nos deve esclarecer sobre os fatos, sua motivação e culpabilidade.

Falemos separadamente da tortura e da fogueira

A tortura, usada no Império Romano pagão, desaparecera quase por completo na era cristã. A Igreja a reprovava. Pelo ano de 804 o Papa Nicolau I a repeliu formalmente, numa carta ao rei dos búlgaros e o primeiro compilador sistemático do direito eclesiástico na Idade Média, Graciano, estabeleceu pelo ano 1140 que nenhuma confissão devia ser extorquida por tortura.

Mas os jurisconsultos daquele tempo sentiam-se inábeis na prática de inquirir a culpabilidade de um acusado. Os tribunais dos povos germânicos recorriam para este fim freqüentemente aos ordais, isto é, a manifestação do juízo divino por meio de uma prova de fogo, de água ou outra, também ao duelo, meios ineptos, usados por falta de melhores. Além disto não se podiam protelar as sentenças por longas investigações e audiências de testemunhas, tantas vezes subornadas ou maliciosas, amigos ou inimigos dos acusados. Quando portanto no século XII reviveu o direito romano, os tribunais civil aceitaram prontamente o expediente da tortura, que lhes parecia um meio rápido de conseguir a manifestação da verdade.

Realmente os métodos brandos e humanos dos nossos dias teriam sido uma provocação dos malfeitores. Lembremos aqui um episódio do nosso século. Um Xá da Pérsia, que visitou a Europa, viu também as prisões.  Sacudiu a cabeça: “Em nossas regiões, moradas tão agradáveis estariam sempre superlotadas”.

O proceder do poder civil acabou por tornar a tortura o uso legitimado, considerado aos poucos como natural. Nas dadas circunstâncias é compreensível que ela achasse aceitação também em tribunais eclesiásticos.Os representantes da Igreja pensavam como todos os homens do seu tempo. Se os quisermos acusar, deveríamos, acusar toda a sociedade humana do Ocidente, precisamente aquela sociedade que estava na porta do progresso e da cultura.

Quando em 1231 o Papa Gregório IX erigiu canonicamente o tribunal do Santo Ofício, ele se conservou fiel à antiga tradição eclesiástica, excluindo o uso da tortura. Somente 20 a 30 anos mais tarde, o Papa Inocêncio IV julgou legítima a sua aplicação, não somente em crime de homicídio e furto, mas também “contra os assassinos de almas e ladrões de sacramentos de Deus que são os hereges”.

Ainda assim a justiça eclesiástica se distinguia em geral favoravelmente da civil por maior prudência e moderação. O Papa Inocêncio IV logo cercou o uso da tortura com certas cautelas: exigiu que só depois de esgotados os outros meios de descobrir a verdade, se recorresse a ela, e quando de fato existissem veementes indícios de culpabilidade. Não devia levar à perda de algum membro e menos ainda a perigo de morte (“citra membri diminutionem et mortis periculum”). Não deveria também ultrapassar meia hora e somente ser aplicada  uma vez.

Aos próprios clérigos era proibido, por longo tempo, assistir à interrogação vexatória e mais tarde sua presença era ao menos desaconselhada e dificultada. Dos inquisitores exigiam-se qualidades morais não comuns. Existem entre eles até santos canonizados, como S. Pedro, Mártir. Mas infelizmente esta exigência nem sempre era observada; o poder secular em países distantes podia burlar as normas pontifícias. É só pensar no processo dos Templários.

Para remediar abusos ocorridos, o Papa Clemente V, dificultou em 1311 a tortura por restrições tão severas, que os inquisidores protestavam, declarando as condições inaplicáveis. O Papa porém não cedeu, e a bula “Multorum querela” não foi revogada, mas confirmada para todo o futuro.

Sem dúvida ocorriam abusos, geralmente imputáveis à índole de Inquisidores exaltados, e em certas regiões e épocas os procederes eram também notavelmente mais duros. Porém quanto maior a influência da Igreja e menos impedida por forças antagônicas, tanto mais humano era também o tribunal.

Aqui não podemos imitar os adversários de má fé, que se comprazem morbidamente em descrever cenas horrorosas, quase sempre exageradas ou completamente inventadas. Quem quiser informar-se sobre os métodos usados de extorquir confissões, leia nos livros de história os processos dos tribunais civis, e saberá o que aproximadamente se deve ter provocando nos tribunais da Inquisição.

Concordamos hoje em considerar a antiga praxe da tortura como cruel e inepta, e constitui um progresso notável o ter compreendido sua inutilidade e tê-la abolido. Não será fora de propósito lembrar que nem nos nossos dias ela desapareceu por completo, até aos países democráticos, conscientes de sua cultura. O proceder da polícia argelina causou recentemente um escândalo internacional. – Testemunhas fidedignas ou as mesmas vítimas nos relataram que as paredes caladas de centros policiais brasileiros viram cenas que na época nazista e nos países comunistas.

FOGUEIRA

Da tortura, destinada a arrancar confissões, devemos nitidamente distinguir a execução pelo fogo, que tinha caráter de castigo. Sempre havia e há homens selvagens ou degenerados, que cedem aos mais baixos instintos, e por vingança ou prazer diabólico cometem inomináveis crueldades. Mas ao homens moderno e civilizado causa uma impressão sumamente penosa ver que povos cultos pudessem adotar por consenso comum tais medidas crudelíssimas. Tratemos ao menos de compreender, sem o desculpar, o triste fenômeno, acompanhando o seu desenvolvimento histórico.

No tempo do Império Romano pagão a justiça se julgava impotente para reprimir a ousadia dos criminosos por penas brandas e pela simples execução à morte. Seria talvez difícil provar que esta convicção fosse errônea.  Já então se infligiam penas corporais “horribile flagellum”, confiscação dos bens, desterro, condenação às galeras, morte por degolação, crucifixão e finalmente pelo fogo.

Até no mais aceso das perseguições, poupava-se geralmente aos cristãos a pena do fogo, bem que houvesse exceções, como a morte de S. Lourenço, assado a fogo lento. Mas já existiam os maniqueus e seu influxo desintegrador da sociedade humana inspirava maiores receios aos romanos do que a doutrina de Cristo. O Imperador Diocleciano, que no fundo não aborrecia os cristãos, mostrava-se implacável com os maniqueus e mandou exterminar os seus chefes pelo fogo e decapitar os simples adeptos. Tornou-se praxe corrente queimar tais inimigos do Estado.

Pretendendo continuar o antigo império, os primeiros imperadores cristãos reclamavam também para si os poderes imperiais de “pontífices maxim” e como tais persistiam na perseguição dos hereges, principalmente dos maniqueus.

Aos poucos porém aumentou a influência da Igreja.  Já o primeiro imperador cristão, Constantino, aboliu o castigo da crucifixão, como também o ferrête; a pena capital foi dificultada e sua aplicação proibida durante o tempo da quaresma; na páscoa havia anistias, as penitenciárias foram melhoradas e a tarefa de velar pelos detidos foi confiada, em larga escala, aos bispos. O influxo da Igreja é manifesto e o historiador sincero tem de reconhecer que o espírito genuíno do Evangelho tendia a abrandar os costumes e reprimir crueldades. Desapareceu também a pena do fogo.

Infelizmente na Idade Média deviam surgir tendências contrárias, reavivando a ideologia pagã. A primeira iniciativa partiu de Bolonha, onde no século XI a célebre universidade desenterrou o direito romano, começando a ensiná-lo nas cátedras.

A Igreja inicialmente tentou opor-se à restauração do direito pagão. Aos clérigos foi proibido o seu estudo, por contrariar o direito canônico. Muitos, como Rogério Bacon, Cesário de Heisterbach o combatiam como incompatível com o espírito cristão. Porém eram grandes as vantagens da unificação do direito em comparação com a multiplicidade dos direitos regionais. Os príncipes da Idade Média começaram a emancipar-se mais e mais da Igreja. O novo direito holandês oferecia-lhes pretextos para ampliar seus direitos. Frederico II achou nele apoio para seus planos imperialistas de cesarismo. A legislação do Ocidente imbuía-se de novo das idéias pagãs, reapareceu a tortura e pior ainda a fogueira. Foi na França onde primeiro ressurgiu oficialmente a pena do fogo, já muito antes de aparecer a Inquisição. O primeiro decreto foi publicado no ano de 1022 pelo rei Roberto II que, no mesmo ano, entregou 13 hereges à fogueira (G. Schnürer). Quão pouco tal medida ofendia o senso comum daquele tempo, fica manifesto pelo fato de o rei Luís IX a reafirmar em 1229.  E contudo este rei tinha tão altas qualidades morais que a posteridade lhe outorgou o título de santo. Como o direito romano, também o decreto de Roberto II visava os hereges. Seguiu Pedro II de Aragão em 1197, depois o Imperador Frederico II em 1224 e finalmente os demais países europeus.  Notemos, portanto, o que aqui nos interessa particularmente: que não foi a Igreja, mas o poder secular que restaurou a praxe pagã, e que outrossim não a Igreja, mas o poder civil perseguia inicialmente os hereges. O poder civil fez retroceder o progresso civilizador iniciado pelo espírito da caridade evangélica. Não podendo contrariar o poder superior dos príncipes, nem prescindir do seu auxílio, a Igreja se conformou, e o enorme perigo que os hereges constituíam para toda a cultura ocidental parecia não dar outra saída. Ao depois todos os ânimos se reconciliaram com os fatos comungados, aceitando finalmente a fogueira como instituição necessária e legítima.

O reaproveitamento da fogueira na Idade Média tem ainda outra fonte, também inibida do espírito pagão. Sabemos pelos relatos dos evangelhos que Cristo expeliu demônios e que os demônios tomavam posse dos homens. Eles armam tentações aos fiéis. Mas não foi esta doutrina cristã que engendrou a superstição popular dos malefícios mágicos e das bruxas, ligadas ao demônio. Esta crença sinistra nasceu no mistério das matas escuras do Norte, onde a fantasia sobressaltada dos pagãos viam mil influxos maliciosos de espectros e espíritos maus. Quando Carlos Magno sujeitou os saxões (germanos), achou radicado nos nativos a crença dos bruxos e bruxas, e constatou com mágoa que o povo os queimava vivos. Ele tentou abolir a praxe por rigorosa proibição (W. Neuss).

Este procedimento do nobre imperador, a favor de tantos inocentes achou o apoio da Igreja.  Em 1080 o Papa Gregório VII admoestou seriamente ao rei Haakon da Dinamarca de não proceder contra as mulheres inocentes. Três bruxas, queimadas em 1090 pelo povo, foram consideradas como mártires. Ainda em 1311 um sínodo episcopal de Trier combatia a crença nas “cavalgadas” – vóos com o auxílio do demônio – noturnas das bruxas.

Mas também aqui se deu o infeliz retrocesso. Em geral as penas estabelecidas tornavam-se muito duras. Delitos menores como um roubo de cavalo ou de abelhas eram castigados com a morte. No século XIII a lei dos saxões (Sachsen-spiegel) e dos suábios (Schwabenspiegel) mandavam queimar as bruxas. A crença na sua perversão se firmava cada vez mais, apoiando-se em inúmeros “testemunhos fidedignos”, muitos extorquidos pela tortura. Finalmente emudecia toda a contradição. As perseguições tornavam-se gerais. Impressionado pela multiplicação dos pactos com o demônio, e dando fé às acusações, o Papa Inocêncio VIII autorizou em 1484, já nos albores dos tempos modernos, a perseguição das bruxas. Mas não devia ser arbitrárias, foi incluída na alçada da Inquisição.

A decisão de confiar o julgamento dos feiticeiros e bruxas à Inquisição teve conseqüências benéficas. O tribunal eclesiástico procedia com justiça e só relaxava ao braço secular os réus convictos e impenitentes. Infelizmente a Alemanha viu nos séculos XV e XVI um grande declínio da fé e moral, acompanhado de um espírito de rebelião contra o Papa e a Igreja. Era o tempo da cisão religiosa pela reforma. Naquele tempo de fé obscurecida e de muita superstição, a crença nos malefícios diabólicos tornou-se uma verdadeira psicose entre católicos e protestantes. Os tribunais leigos emancipavam-se, perseguindo as bruxas por própria conta. As torturas tornavam-se cada vez mais desumanas, com todos os requisitos da crueldade. As fogueiras se multiplicavam assustadoramente. Intervir a favor das vítimas inocentes acarretava a mesma perseguição.

Um exemplo pode ilustrar com que facilidade se decretava a pena capital, ilustrando também como, pelo uso descontrolado da tortura, pior do que a própria morte, se podia extorquir qualquer confissão desejada! Questionada na tortura, uma “bruxa” confessou que matara por malefícios seus dois filhos e causara a morte de um cavalo branco, propriedade de certo camponês. Mas as crianças estavam vivas e o camponês não perdera nenhum animal.  Contudo a bruxa tinha confessa e foi executada (Zoepfl).

A alucinação era geral, invadiu protestantes e católicos. Mas bem o nota o historiador W. Neuss que a razão consistia na decadência religiosa: “…onde a ação (repressiva contra a bruxaria) continuava na competência da Inquisição, como na Itália e Espanha, não as produziram perseguições de notável importância. Só depois da cisão religiosa pela reforma, principalmente no século XVII, elas deviam – primeiro na Alemanha e propagadas dali nos demais países do Norte – celebrar suas horrendas orgias”.

De um juiz de Dresden, Bento Carprov (1595-1666), referem que pronunciou 20.000 sentenças capitais (não só de bruxas) e ainda se gabava de ter tido 23 vezes toda a sagrada Bíblia. Avalia-se em mais de 100.000 o número de mulheres infelizes, na quase totalidade inocentes, queimadas em terras germânicas.(Alemanha, Escandinávia…).

Confira-se com esta fúria desenfreada o proceder refletido e justo da tão mal afamada Inquisição Espanhola. Nos três séculos da sua existência, só sentenciou 12 bruxas à morte. Adiante teremos ainda ocasião de considerar a relativa moderação desta Inquisição.

Vozes esparsas se levantavam contra a alucinação coletiva. Uma das primeiras foi a do nobre calvinista Johann Weyer em 1563. Foi freneticamente combatido por católicos e protestantes. No século XVII vários jesuítas ousavam levantar-se contra os crimes cometidos em nome da justiça. O mais eminente foi o P. Friedrich von Spee, cuja Cautio Criminalis apareceu em 1631. A obra teve grande repercussão e influiu eficazmente na tardia ab-rogação das leis iníquas. É significativo que o autor não ousou publicar seu nome na primeira edição.

Muitos autores mal informados ou intencionados responsabilizam a Inquisição pela morte de Joana D’Arc.  Historiemos brevemente o caso.

Na guerra dos cem anos os borguinhões aprisionaram a pastora guerreira, paladina do rei da França Carlos VII, e a entregaram aos ingleses, dos quais eram aliados. Estes instauraram um processo político, presidido pelo indigno bispo Cauchon, de Beauvais. A inocente vítima foi queimada viva como bruxa aos 30.5.1431. O ato não teve a mínima aprovação de Roma. Já 25 anos mais tarde o Papa revisou o processo e declarou a inocência de Joana D’Arc.  Ela foi canonizada em 1920.cpa_para_entender_a_inquisi_o

A pena horrorosa do fogo teve pois dupla origem, integralmente provinda do paganismo. Os príncipes da Idade Média a restauraram nos seus tribunais. A Igreja a aceitou, mas ela nunca assumiu a responsabilidade formal da pena capital. Relaxava os condenados ao braço secular, pedindo-lhe na fórmula da entrega de poupar ao réu a mutilação (praticada pela justiça leiga) e a pena de morte. “Mas o juiz secular sabia que normas tinha que observar” (DTC). Mais tarde o pedido de clemência tornou-se mera fórmula, quando as autoridades eclesiásticas acharam necessário exigir o cumprimento das leis civis.

Dado o começo, a praxe se consolidou e como já observamos, todos, também os eclesiásticos se habituaram a considerá-la legítima. Todos pensavam que era justa: o povo a praticava e reclamava, os príncipes a decretavam, a Igreja a aceitou; querendo acusar, devemos acusar toda a sociedade medieval.

A história da tortura e fogueira revela que já na Idade Média começou o renascimento das idéias pagãs. O poder secular valeu-se de sua força e as impôs à Igreja. Contudo a caridade evangélica continuava a mitigar ao menos o rigor e diminuiu notavelmente o número de condenações. Acrescentemos aqui mais uma prova do influxo benéfico que a religião exerceu sobre a jurisdição.

Na Idade Média os mosteiros, povoados de monges disciplinados e piedosos, pareciam um refúgio também para criminosos sentenciados. Foram confiados aos mosteiros, para que a mansidão, caridade e conscienciosidade ali reinantes abrandassem a mente dos extraviados. O sistema achou aplauso e os resultados eram espetaculares. Quando S. Bernardo certa vez, em princípio do século XII, andava de viagem, encontrou um triste cortejo que levava um malfeitos ao patíbulo. Cheio de compaixão, o santo se lançou no meio do povo, pegou na corda com que levavam o culpado: “Deixai-me este homem, disse, eu o enforcarei com minhas mãos!” Sem largar a corda, ele o levou ao conde de Champagne e solicitou a entrega do malfeito. O conde cedeu às instâncias de Bernardo a quem muito estimava. No mosteiro de Clairvaux “este lobo assanhado se tornou cordeiro”. Foi chamado de Constâncio, nome que honrou. Perseverou trinta anos numa vida de penitência até morrer, na mesma Clairvaux, de morte edificante.

Os grandes excessos de crueldade e de execução em massa só reapareceram nos começos dos tempos modernos com o seu grande declínio e apostasia da fé.

Inquisição na Itália

A Inquisição Italiana foi fundada pouco depois da francesa. O motivo principal da instituição foi, como na França, a necessidade de reprimir a seita anti-social dos cátaros. Como data da sua origem efetiva considera-se o ano de 1224, quando o Papa Honório incumbiu vários bispos do Norte a proceder contra os hereges. Oficialmente, como tribunal, ela começou a funcionar, como nos outros países, no ano de 1232 pela bula do Papa Gregório IX.

Vários inquisidores, entre eles S. Pedro Mártir, foram assassinados pelos hereges.  Na Lombardia – três séculos mais tarde – distinguiu-se o inquisidor Miguel Chisleri, depois elevado à dignidade papal e conhecido pelo mundo inteiro como S. Pio V (1570). Na república veneziana as leis civis impunham aos hereges a pena de morte, o que acarretava a execução de todos os hereges convictos, tanto contumazes como arrependidos.  Pio V tentou subtrair a Inquisição ao poder civil, concentrando nela os dois poderes civil e eclesiástico. Não o conseguiu, porém regularizou o procedimento para que as sentenças fossem sempre justas.

Enquanto nos diferentes países e na própria Itália já funcionavam os tribunais da fé, a cidade de Roma ficou isenta durante mais de três séculos. Bastava o fato de os hereges não acharem proteção e fomento para afastá-los da cidade dos Papas. Este estado de cousas mudou quando, no século XVI, apareceu a ameaça do protestantismo, que tentou esforçadamente penetrar na Itália, como nos demais países católicos.

L. von Pastor, autor da História dos Papas, conta no V tomo da sua obra – Pontificado de Paulo III – que até religiosos, como os agostinianos-eremitas pregavam as doutrinas de Lutero. Em 1539 um capuchinho espalhava as mesmas heresias. Os protestantes alemães se gloriavam do seu sucesso na Itália. Módena e Lucca já ameaçavam separar-se da Igreja Católica. Os mais perigosos eram os pregadores que pretendiam pregar a doutrina católica, mas na realidade a falsificavam com os erros de Lutero. Havia indícios de heresia na própria  Roma.

Em face do perigo, Paulo III achou necessário criar em Roma uma nova sede da Inquisição, que seria ao mesmo tempo o órgão central e supremo para todos os tribunais deste gênero na Itália e em toda a Igreja. A decisão recomendada também por S. Inácio de Loiola (Mon. Ignat., Epistulae), foi executada aos 4.7.1542, data que marca, pois, o início da Inquisição Italiana.

Ao mesmo tempo Paulo III admoestou os agostinianos, franciscanos, cônegos regulares do Latrão e dominicanos, a trabalharem intensamente para extirpar os erros luteranos.

Que o perigo era real na própria cidade de Roma, ficou notório em 1559 quando um grupo de hereges maltratou o inquisidor Sacote e tentou queimar o mosteiro de Santa Maria sopra Minerva, onde estavam os arquivos da Inquisição. Os cidadãos impediram o saque e os mesmos inquisidores pediram e obtiveram o perdão dos culpados.

A Inquisição Romano-Italiana devia funcionar principalmente nos séculos XVI e XVII. Já tivemos ocasião de observar que em qualquer instituição humana, máxime quando se estende por diferentes países, não podem faltar abusos. Também na história da Inquisição apareceram fraquezas e falhas sempre reprovadas por Roma. Sem dúvida terá sido na própria Roma, na imediata presença dos Papas, onde devemos procurar a verdadeira índole do tribunal eclesiástico. Consideremos seus distintivos.

Os fatos históricos provam que precisamente na Itália o proceder era rigorosamente jurídico, segundo as normas da equidade, excluindo arbitrariedades e processos precipitados. Não encontramos fanatismo que por vezes maculava a honra do tribunal eclesiástico. As perseguições de bruxas eram casos raros, da mesma forma as sentenças capitais.

Na Itália também se constata, com evidência, que é injusta a acusação de ter sido a Inquisição um meio compulsório para converter adeptos de crenças diferentes. A Igreja nunca teria perseguido os hereges se eles se contestassem com guardar para si suas crenças erradas e viver sua vida individual. Que o motivo das ações repressivas era a atividade dogmatizante, a propaganda indefesa dos dissidentes, e convincentemente ilustrado pela atitude tomada em face do judaísmo.

Em Roma e nos Estados Pontifícios viviam numerosos judeus. Em nenhuma parte do mundo eles foram tratados tão humanamente como debaixo do regime suave da tiara. Este espírito, que reina em toda a Igreja, achou em outros tempos sua expressão condensada: “É bom viver debaixo do báculo”. A Igreja nunca fez passos para forçar a conversão dos judeus. Tão pouco, apesar do perigo da infiltração protestante, eram molestados os adeptos de Lutero e Calvino que entravam legalmente na Itália.  Só eram procurados e perseguidos aqueles que apostatavam e, por seu exemplo, palavra falada ou escrita, ameaçavam a perversão dos fiéis.  Sirva de exemplo o caso de Giordano Bruno, apóstata não só da religião cristã, mas de toda fé religiosa, e cujos escritos respiram um ódio sem limites a Deus, a Jesus Cristo, à Igreja e ao papado. Galileu Galilei não preocupou a Inquisição, enquanto ele aderia, embora notoriamente, à doutrina de Copérnico, considerada em Roma como falsa. Mas o tribunal se comoveu e entrou em ação, quando a atividade propagandista, inconsiderada e apaixonada, do matemático florentino, parecia tomar o rumo protestante do livre exame da Bíblia.

Se todos os tribunais do mundo, tanto leigos como eclesiásticos, tivessem usado a mesma moderação como a Inquisição Romana, inúmeros horrores teriam sido poupados ao Ocidente.  Nem assim o tribunal romano deixa de ser hostilizado. Os adeptos de Lutero e Calvino nunca perdoarão à Inquisição o ter preservado a Itália –  como também a Espanha e Portugal – da infiltração protestante.  Infelizmente também o erro cometido no processo de Galilei prejudicou a fama da mesma Inquisição e até de toda a Igreja Católica. (Cfr. Galileu Galilei, Editora Vozes).

A INQUISIÇÃO ESPANHOLA

Falando do tribunal eclesiástico da Inquisição, não podemos passar em silêncio a forma que ele tomou na Península Ibérica, na Espanha e em Portugal.

Quase todos os panfletos e outros produtos literários de adversários da Igreja, falando da Inquisição, só mencionam a modalidade espanhola.  No Brasil é mencionada também a portuguesa, em outros países, porém, muitos leitores se convencem de que só na Espanha, “o país católico por excelência”, ocorreram aqueles “horrores de crueldade”. Falam de masmorras, torturas na calada da noite, crueldade satânica, fogueiras, extermínio em massa de judeus e mouros.  Seria a manifestação do espírito intolerante da Igreja Católica, de fanatismo religioso, de premeditada crueldade.

Para esclarecer ânimos inquietados e refutar luminosamente as acusações aleivosas, nada será mais próprio do que expor a simples verdade histórica.

Antecedetes

A mal afamada Inquisição começou no século XV, mas devemos primeiro considerar os antecedentes que influíram decisivamente nas características especiais da ação espanhola.

Depois da invasão dos visigodos e seu estabelecimento na Espanha, veio a conquista muçulmana que ocupou quase toda a Península. Em muitas regiões asiáticas e africanas, onde se estendeu e fixou o islamismo, desapareceu o cristianismo. Só ficaram fiéis uma parte dos egípcios sírios, armênios e principalmente espanhóis. O povo resistiu a toda pressão de abraçar as doutrinas do Alcorão. Nunca se conformou com a sujeição e começou um esforço multissecular de libertação.

Esta fidelidade religiosa e mais ainda a invencível tenacidade na luta, em que o povo indomável conseguiu livrar-se de um opressor poderoso, por própria força, é uma façanha única na história. Tal luta de sete séculos devia deixar profundos vestígios na índole e no caráter espanhol.  Ficou-lhe impresso, como segunda natureza, um espírito guerreiro, indômito, pronto para todos os sacrifícios, inclusive o da vida. Este espírito, que teve sua mais alta expressão na cavalaria espanhola, acompanhou os conquistadores do novo mundo, e assombrou os povos do Extremo Oriente, da África e da América. Os latinos da América Central e do Sul ufanam-se de serem filhos de heróis.

Ao lado da luz não podem faltar as trevas.  A opressão de séculos, junto com os ataques à religião, tinham ferido o ânimo do povo espanhol.  Sobrevivia um profundo ressentimento e ódio contra os opressores.  O espírito guerreiro incluía quase que necessariamente propensão à crueldade sem escrúpulos, que podia manifestar-se em violentas insurreições. O povo sofria ao ver em seu meio adeptos de outras religiões – mouros e também judeus – que continuavam a espalhar suas crenças, e enriqueciam à custa dos cristãos. A recordação do glorioso passado enchia o espanhol de orgulho e altivez, consciente do próprio valor.

Todos estes traços do caráter espanhol influirão nos acontecimentos que em seguida temos que considerar.

Seguimos de preferência:

1) Historie de L’Église, de Augustin Fliche et Victor Martin, tomo 15: L’Église et la Renaissance, 1951.

2) Bernardino Llorca: La Inquisiciòn en España, 2ª ed., 1946.

Pelo fim do século XV a luta multissecular contra os mouros chegava a seu fim. Só lhes restava como último reduto, o reino de Granada. O resto da Península estava livre e repartido entre vários reinos. No Oeste estava Portugal, independentemente. Aragão era  governado pelo rei Fernando, o Católico. Em Castela reinava Isabel, a Católica. Pela união matrimonial os dois reis católicos prepararam a união política dos dois reinos e de toda a Espanha.

Fundação da Inquisição

Desde o fim do século XIV existia, principalmente em Castela, a questão dos judeus. Várias vezes o povo foi possuído de um verdadeiro furor anti-semítico e cometeu grandes massacres. As razões deste ódio eram as comuns:  as riquezas dos judeus, adquiridas em parte pela usura à custa dos cristãos; eram também acusados de crimes e sacrilégios.

Por medo das violências muitos judeus se convertiam. Estes “novos cristãos” eram suspeitos. Sua conversão frequentes vezes não fora sincera e eles eram ativos em fazer proselitismo, com grande prejuízo da religião cristã.

Havia portanto cripto-judeus, até entre o clero e muitos  outros judeus francamente fiéis às suas crenças. Todos contrariavam a política de unificação dos reis católicos, que não podiam conceber unidade política sem unidade da fé. Estes motivos – paz entre o povo, união política a fundação da Inquisição em Castela. Mas o novo órgão judiciário não devia derrogar os poderes reais. Pediram pois ao Papa Sixto IV a fundação de uma nova Inquisição em Castela, em que o próprio rei nomeasse os inquisidores.

E o erro dramático de Sixto IV de não ter reconhecido o alcance do pedido real. Com a concessão que fez em 1-11-1478, anuindo ao pedido, foi dado um passo de consequências imprevisíveis.

Aos 27-9-1480 os reis nomearam dois inquisidores que se estabeleceram em Sevilha e assim começou a nova Inquisição, conhecida na história simplesmente como a “Inquisição Espanhola” e que tanta celeuma devia provocar. O prototribunal começou a proceder arbitrariamente, sem ação judiciária, fez tantas prisões e confiscações, praticou atos tão violentos de torturas que motivou protestos por parte de Sixto IV. Consciente do seu erro o Papa tentou voltar atrás.

Começou uma luta encarniçada entre o Papa e o rei Fernando. Abusivamente o rei já tinha estendido à ação de sua  nova Inquisição ao reino de Aragão. Nem se observam as disposições que garantiam justiça no procedimento.

Aos 18-4-1482, o Papa enviou à Espanha uma nova bula. Nomeou por própria autoridade  oito inquisidores em Castela. Dispôs que os inquisidores não pudessem proceder senão em comum e de acordo com o bispo local; os nomes não em comum e de acordo com o bispo local; os nomes das testemunhas e suas declarações e todo o processo deviam ser comunicados aos acusados; quando os réus apelavam a Roa, não se devia opor a dificuldade alguma, e toda a documentação devia ser enviada à Cúria Romana. Finalmente o Papa subtraiu “de fato” os delinquentes ao tribunal inquisitório, concedendo a todos os ordinários (bispos), vigários gerais e inquisidores a faculdade de absorver todos os  conversos judeus que, contritos e arrependidos, confessassem suas culpas. Eram um verdadeiro indulto geral e amplíssimo perdão.

Por seu lado o rei, vendo seus planos diretamente contrariados, e receando pela unificação nacional, mostrou-se ofendido e descortês. Chegou a ameaçar desobediência formal, no caso de as disposições romanas lhe parecerem inoportunas e perigosas. Pastor, que revolveu os arquivos do Vaticano, diz que o rei Fernando rompeu realmente as relações com Roma e ameaçou o Papa, com a convocação de um concílio cismático.

Receando uma ruptura definitiva, Sixto IV tornou a retroceder. Resistiu completamente os direitos concedidos sobre a Inquisição, quando também a rainha se queixou sentida de o Papa ter acolhido calúnias que maculavam a honra dos soberanos espanhóis e pediu para a Inquisição “a independência” que lhe era necessária. Mas esta independência que a rainha achava necessária, significava independência do Papa e poder discricionário do rei.

O Papa receou ruptura. Este fato exige comentário. Só o historiador pode avaliar todos os problemas com que os Papas se debatiam tanto no governo interno da Igreja, como nas relações com os soberanos da religião. Lembremos só uma circunstância. Os muçulmanos, repelidos da Espanha. Irromperam na Europa pelos Bálcãs. Estava ameaçada toda a civilização ocidental. Os Papas têm o merecimento imortal de ter preservado a Europa da barbárie. Ainda hoje nós nos beneficiamos da ação salvadora dos Papas. Eles não deixavam de admoestar os príncipes a renunciar às suas dissensões e unir suas forças contra o inimigo comum. Para garantir o apoio dos príncipes os Papas deviam evitar de os indispor. Uma ruptura, finalmente, teria efeitos desastrosos, tiraria toda esperança de auxílio além de criar um novo inimigo e a ruína da fé no país separado. Cinquenta anos mais tarde a ruptura com Henrique VIII da Inglaterra devia arrancar aquele país ao seio da Igreja.

O Papa Sixto IV viu-se na necessidade de permitir o mal menor para evitar o maior. A conseqüência foi uma diminuição da autoridade papal e aumento do poder real. Toda a história eclesiástica está repleta de tais usurpações do poder secular sobre os direitos da Igreja.

Então pois longe da verdade aqueles que acusam Sixto IV e em geral o papado, de se ter mostrado indiferente em face dos abusos cometidos na Espanha. Os Papas estavam sempre prontos para levantar a voz a favor dos oprimidos, mas deviam ser muitas vezes testemunhas caladas, sabendo que falar era inútil ou até nocivo.

Para garantir a “independência” da Inquisição, a  rainha Isabel pedira também uma corte inquisitorial suprema em Espanha, que recebesse as apelações contra as sentenças dos tribunais inferiores. As ameaças de D. Fernando devem ter impressionado profundamente ao Papa Sixto IV, por que ele fez também esta enorme concessão (23-2-1483). Cortados assim os recursos à Santa Sé, o Papa perdeu praticamente a influência sobre a Inquisição Espanhola.

No mesmo ano o Papa sancionou a designação, pelo rei, de um inquisidor geral. O escolhido era Frei Tomás de Torquemada.

Os reis católicos tinham alcançado o que desejavam. Empenharam-se em organizar a nova instituição, trabalho que foi realizado por Torquemada. Não se pode negar que este homem enérgico teve qualidades eminentes, mas sua severidade valeu-lhe uma fama exagerada de fanático, sem consciência nem entranhas.

Nova bula de 17-10-1483, estendeu a  nova Inquisição para o Aragão, com o que desapareceu ali a anterior Inquisição Medieval.

Assim terminou a fase inicial da Inquisição Espanhola. O Papa Sixto IV não se conformou com sua perda de influência. Não podia invalidar os fatos consumados. Mas para aliviar, na mediada do possível a sorte dos conversos e hereges, mandou aos bispos admitir à reconciliação todos os sujeitos que, arrependidos, a pedissem, também aqueles que estavam submetidos à ação  judiciária da Inquisição. Depois de vários anos de incerteza esta determinação de Sixto IV foi, no essencial, definitivamente aprovada e ratificada por Alexandre VI aos 12-8-1493.

Expulsão dos Judeus e Mouriscos

Ao lado dos conversos, havia na Espanha uma minoria importante de judeus não convertidos, cerca de 160.000 (Llorca fala de 200.000), entre talvez cinco milhões de habitantes. Sua presença era incompatível com os princípios de união política e religiosa dos soberanos espanhóis, que resolveram tomar medidas extremas. Imitando a Inglaterra (1290) e a França (1306), os reis baixaram, em 1492, um decreto que expulsava todos os judeus de Castela e Aragão. O ato inumano só concedia o prazo de três meses.

Começou então um triste êxodo de infelizes, na maior parte espoliados de todos os bens  que não podiam vender ou levar consigo. Certo número emigrou para a França, de onde se espalhou pela Europa, procurando principalmente os Bálcãs. Certo número passou para a África do Norte. A maior parte, cerca de 120.000, tomou a resolução  infeliz de procurar Portugal. Abaixo teremos que falar de sua trágica sorte.

O mesmo ano de 1492, que viu a expulsão dos judeus, trouxe também um acontecimento faustoso para a Espanha. Depois de uma guerra de 10 anos, caiu Granada e com ela o último reino mourisco na Península. Mas o feliz sucesso devia dar aos reis  católicos novo ensejo de cobrir seus nomes de desonra.

O novo arcebispo de Granada, Frei Fernando de Talavera, entregou-se com abnegação à evangelização dos muçulmanos. Já de idade avançada, aprendeu a língua árabe, fez imprimir manuais na mesma língua para uso dos clérigos, empregou processos catequéticos inéditos. Muitos se converteram. As conversões eram livres e sinceras.

Mas o método era lento, exigindo paciência, e esta faltava aos reis Ximénez de Cisneros, conselheiro  e favorito dos reis, entrou em ação. Suas medidas compulsórias e sacrílegas, aos olhos dos muçulmanos, provocaram uma insurreição (1500), e este bastou como pretexto para faltar às promessas solenes dadas por ocasião da capitulação de Granada. Aos mouros fora garantida a propriedade dos seus bens e o livre exercício de sua religião. Em fevereiro de 1502, uma pragmática real só deixava aos mouros escolha entre a conversão e o exílio.

Entre os muitos que então aceitaram o batismo originou-se um cripto-islamismo, paralelo ao cripto-judaísmo de Castela. Os novos cristãos chamados “mouriscos” pareciam tão perigosos que a Inquisição começou suas atividades contra eles. Por maior infelicidade o inquisidor designado, Diego Rodriguez de Lucero, era um fanático que até intentou um processo contra o nobre arcebispo Talavera, por ser condescendente demais com os mouriscos. Seus excessos foram tais que provocaram uma insurreição dos aristocratas. Finalmente foi destituído do seu encargo, processado e encarcerado.

Em fé da verdade devemos defender os Papas e a Igreja e até a própria Inquisição da aleivosa acusação de terem provocado ou só colaborado na conversão forçada dos judeus e mouros e na sua cruel expulsão. Foram atos despóticos dos reis, consumados em oposição às admoestações de homens sensatos, principalmente  dos prelados eclesiásticos.

Acabamos de esboçar  os inícios da Inquisição Espanhola. Abaixo consideraremos  seu modo de proceder. Ela continuou a funcionar nos séculos seguintes e mostrou mais vitalidade do que em outros países. Ainda a encontramos no século XVIII, tendo contudo perdido muito da sua importância.

Caráter da Inquisição Espanhola

Os historiadores discordam entre si se a Inquisição Espanhola eram uma instituição eclesiástica ou secular. A Histoire de l’Église responde: “Era uma instituição eclesiástica, mas ao serviço de um Estado que queria ele mesmo arvorar-se em Igreja”.

A mais grave acusação que se pode levantar contra a Inquisição Espanhola é sua dependência do poder secular. Ela lutou frequentemente ao lado dos reis contra o que se chamava  pretensões de Roma e do Papa. Esta oposição já começou entre os primeiros inquisidores e os Papas Sixto IV e Inocêncio VIII. Mais tarde ocorreu a causa tristemente célebre do arcebispo Bartolomeu de Carranza, que foi uma luta continuada entre os Papas e os inquisidores apoiados pelos reis espanhóis. A Inquisição foi também um instrumento para dificultar o governo papal na Espanha, pondo dificuldades à aceitação das bulas pontifícias. Freqüentes vezes, e ainda em oposição  ao Romano Pontífice, a Inquisição  foi um instrumento político, em vez de ser exclusivamente um tribunal de fé. Principalmente depois do advento dos Bourbons (1701) a Inquisição foi degradada em muitos casos a um instrumento dócil da coroa e dos ministros.

“O rei tinha assim em mão um tribunal, a que não podia escapar nenhuma Grande e nenhum arcebispo”, declara – segundo Llorca, com exageração – o historiador Ranke, e o mesmo continua: “As confiscações, cujas vantagens eram exclusivamente para el-rei formavam  uma espécie de entrada regular para a câmara real”.

Siga um exemplo para ilustrar o espírito de independência que animava aos inquisidores apoiados pelo rei. Em 1586 a Inquisição Espanhola, debaixo do inquisidor geral Cardeal Quirora, encarcerou quatro  jesuítas. Logo a seguir confiscou todas as cópias papais relativas à Companhia de Jesus, como também as cópias das suas Constituições, aprovadas pela Santa Sé. Um inquisidor deu um parecer sobre estes escritos, em que acha “manifestas heresias”. Portanto o próprio Papa era acusado de heresia!

Quando a notícia do agravo à dignidade da Santa Sé chegou a Roma, o Papa Sixto V ficou profundamente indignado. Exigiu imediatamente a restituição das bulas confiscadas. Só uma segunda ordem ao Cardeal Quiroga, acompanhada da ameaça de perder a púrpura, surtiu efeito. Sixto V exigiu também a entrega das atas dos processos contra os quatro jesuítas. A Inquisição se julgou suficientemente independente do Papa, para lhe negar o cumprimento da ordem. Finalmente depois de dois anos de prisão os jesuítas foram absolvidos.

Pouco depois as autoridades espanholas acharam por bem submeter a Ordem da Companhia de Jesus a uma visitação. O visitador seria o prelado Jerônimo Manrique. O Papa, inteirado do plano, proibiu a visitação, porque  “um prelado”, que era filho natural, e tivera na juventude três filhos naturais, não podia ser instrumento apto a reforma de uma ordem religiosa” (Ludwig v. Pastor, Geschichte der Päpste, X). O incidente mostra o quilate das pessoas que as autoridades espanholas escolhiam para fins eclesiásticos.

Além de ilustrar a índole da Inquisição espanhola, o episódio relatado responde à afirmação de terem sido os jesuítas os detentores da Inquisição Espanhola e Portuguesa, como afiançam panfletos publicados em terras brasileiras. A Inquisição já existia antes de ser fundada a Companhia de Jesus, e seria difícil encontrar jesuíta investido do cargo de inquisidor. Antes, como acabamos de expor, deve-se considerar os jesuítas como vítimas da Inquisição.

A justiça exige que, depois de ter considerado os aspectos negativos da Inquisição Espanhola, procuremos também os aspectos positivos que falam a seu favor. Quando resolvemos estudar a fundo a história da Inquisição, estávamos prevenidos em particular contra a modalidade espanhola, alvo de tantas acusações, pensando encontrar infindos abusos e horrores, tanto em freqüência como em crueldade, das torturas e queimadas praticadas em outros países, principalmente contra as bruxas, que sentimos um alívio inesperado, lendo os relatos sobre o procedimento da Inquisição Espanhola. Passados os primeiros anos da fundação, o tribunal procedia segundo estatutos rigorosos que exigiam imparcialidade e justiça.

Procedimentos da Inquisição Espanhola

Os abusos acima relatados desacreditaram a Inquisição Espanhola mais no próprio campo católico, do que nas rodas anticlericais, que antes aplaudiam a qualquer oposição feita à Sé Apostólica. A orientação política menos interessa os adversários , suas acusações visam o próprio funcionamento do tribunal.

Aqui não precisamos repetir o que na primeira parte deste estudo dissemos sobre o emprego geral da tortura e da fogueira na antiguidade e Idade Média. Mas devemos passar em revista o que em particular se assaca aos métodos espanhóis, considerados como os mais desumanos. Seguimos aqui a Bernardino no Llorca que estudou a fundo a questão e traz numerosos pormenores.

“ÉDITO DE FÉ”. No essencial o procedimento dos inquisidores era o mesmo como na Inquisição Medieval. Quando se julgava necessário proceder em alguma região, era publicado o “Édito de Fé”, anunciando a vinda do tribunal e exigindo a denúncia dos hereges.

Em seguida anunciava-se também o “Tempo de Graça” de trinta ou quarenta dias, em que todos os culpados podiam apresentar-se, abjurar seus erros e ser absolvidos com penas levíssimas.

DENÚNCIAS. Quanto às denúncias, as leis inquisitoriais exigiam suma cautela. Por regra geral eram indispensáveis pelo menos três denúncias claras e dignas de fé. Em muitos casos os inquisidores nem procediam após ter recebido cinco ou até dez denúncias.

Llorennte (espanhol, fugiu com a retirada dos franceses da Espanha em 1813; influiu eficazmente em toda literatura referente à Inquisição Espanhola; dos 200.000 judeus, exilados pelos reis católicos, conseguiu fazer 800.000) afirma que: “se a Inquisição não tivesse aceito as denúncias anônimas e se tivesse ameaçado de penas severíssimas os falsos caluniadores não haveria a centésima parte dos processos”.

Para esta gravíssima acusação o autor não traz a menor prova. Ao contrário, o protestante E. Schäfer (Beiträge zur Gesschte des spanischen Protestantismus und der Inquisition im 16. Jahrhundert) que se distinguiu por sua objetividade, depois de ter feito investigações conscienciosas, constata que “as delações anônimas não tiveram influxo algum no aumento dos processos. Em todas as atas que correspondem aos protestantes espanhóis, apenas se encontra um caso de denúncia anônima”. Também Llorca não encontrou em todas as atas originais que examinou nenhuma acusação anônima.

E. Schäfer constata também que ódio ou inimizade desempenhavam um papel muito reduzido nas denúncias. Os acusados tinham interesse em provar o ódio pessoal dos acusadores, mas em pouquíssimos casos é que o conseguiram.

Contra os falsos acusadores existiam realmente ameaças severas e, caso dado, eram postas em execução.

PRISÃO.  Quando havia denúncias fidedignas, o denunciado era citado e interrogado. Também podia ser posto em prisão preventiva (“prisão secreta”). Esta medida porém só se tomava por causa muito grave, por certeza ou quase certeza de culpabilidade; proceder cauteloso que favoravelmente distinguia o tribunal eclesiástico dos civis, que prendiam os suspeitos com grande facilidade. Sobre esta prisão foram publicadas as coisas mais exorbitantes: enxovias miseráveis, escuras, úmidas, mal-cheirosas, alimentação paupérrima, consistente só em pão e água, sem os vestidos necessários, sem ocupação alguma da parcialidade, evoca aquela prisão sinistra e contesta:”Os cárceres secretos da Inquisição pertenciam aos melhor organizados do seu tempo, enquanto as prisões  perpétuas (que abaixo mencionaremos) apenas merecem o nome de cárceres… eram sem dúvida locais suficientemente folgados, limpos, providos de luz suficiente para ler e escrever. Os presos deviam trazer uma cama e seus próprios vestidos… Quanto à comida o inquisidor de Valladolid enumera outras cousas além de pão e água, como carne, vinho e frutas. Também o isolamento não era tal como é descrito, nem faltava ocasião para entretenimento.

PRIMEIRAS AUDIÊNCIAS. Montana (citado por Llorda; copiado e seguido por muitos autores) afirma que os detidos esperavam semanas ou até meses antes de serem chamados à primeira audiência. A verdade é que havia prescrição de citar o acusado dentro dos oito dias seguintes à detenção.

Para fazer devidamente o trabalho delicado dos interrogatórios, existia o célebre “Diretório”.

ACUSAÇÃO E PRIMEIRA DEFESA. Terminadas as primeiras audiências, o fiscal  formulava a acusação que era comunicada ao réu para este preparar sua defesa. Neste trabalho, geralmente muito escassos. Ele recebia a ajuda do “advogado” ou “letrado”, ou até de dois deles. Também podia apresentar testemunhas de abono. Feita a defesa do réu sem ele ter provado sua inocência, o processo devia continuar.

PROVA E SEGUNDA DEFESA. Procurava-se a prova das testemunhas. Se o réu confessava a sua culpa antes de ela ser provada, ele era tratado com especial consideração. Porém se fazia esta confissão só depois de se terem apresentado provas convincentes, empregava-se muito maior rigor.

Todas as testemunhas já ouvidas eram citadas pela segunda vez, para se ratificarem. Todos os testemunhos dignos de fé eram comunicados ao réu, que recebia uma cópia, para estudá-los detidamente com seu advogado e redigir o segundo escrito de defesa. Também podia propor novas testemunhas de descargo, que o tribunal chamava da mesma maneira como todas as mais. Schäfler chega à conclusão: “A extraordinária abundância de peças originais demonstra que a  Inquisição realmente se esmerou por fazer justiça ao acusado”.

Compreende-se que com tantas cautelas a  marcha dos processos era bastante lenta. Todo o trabalho do processo e o chamamento de tantas testemunhas, que por vezes moravam distante, exigiam muito tempo. Contudo a prisão preventiva  raras vezes protraía-se além de alguns meses, no que também a prisão preventiva chega a duras anos.

TORTURA. Depois da prova contra o acusado e sua segunda defesa, nem sempre a questão da culpabilidade ou inocência estava resolvida. Se restava  alguma dúvida, os inquisidores soíam recorrer aos “peritos”, qualificadores do Santo Ofício, para eles decidirem do assunto. O resultado podia ser muito diverso. Na maior parte dos casos dava-se uma solução definitiva.

Mas podia acontecer que os testemunhos contra o réu eram bastante convincentes, mas não suficientes para deduzir sua culpabilidade. Em câmbio ele não conseguiria  provar sua inocência. Então os inquisidores recorriam geralmente à tortura com o fim de achar por este meio a verdade.

Siga um resumo das exposições de B. Llorca: Sem dúvida foi um procedimento cruel e constituiu um progresso notável dos tempos subsequentes ter compreendido a inutilidade do processo e tê-lo abolido. Todos os tribunais de todos os  Estados empregavam a tortura, herança do direito romano. A Inquisição Medieval não a empregou no começo. Foi introduzida por Inocêncio IV em 1252 e todo o mundo a recebeu como a coisa mais natural. A Inquisição Espanhola foi o tribunal  que usou a tortura com mais parcimônia e cujos métodos de atormentar eram evidentemente mais suaves e estavam rodeados de mais garantias de equidade e justiça. – Esta afirmação Llorda a prova por fatos  históricos, que aqui não referimos.

O historiador E. Schäfer, embora protestante, levanta-se contra os caluniadores, expondo a verdade: “que a tortura nunca era empregada para arrancar confissões de crimes que não se tinham cometido (…). Em realidade a execução da tortura era muito menos cruel e arbitrária do que estamos acostumados a imaginá-lo”.

A tortura não se empregava em todos os processos (…), eram muitos poucos os em que se fazia uso dela. Só podia ser empregada em casos bem determinados.

Nunca se empregou o fogo. Procurava-se provocar dor aguda, mas sem causar feridas, nem qualquer gênero de dano corporal. Um inquisidor vigilante assistia à ação e a suspendia imediatamente, quando se notava debilidade que pudesse pôr a vida em perigo. A duração não excedia uma hora e por regra geral o tormento se dava uma vez só para a mesma causa. É outra vez calúnia que se tenham inventado artificialmente novos aspectos da acusação para repetir a  tortura.

A realidade difere imensamente das invenções maliciosas. A história nos ensina que a tortura inquisitorial era menos moderada em outros países. Se esta diferença tem sua causa nas várias índoles raciais, o espanhol se destaca vantajosamente pelo caráter de outras nações europeias.

Depois da segunda defesa e da tortura – quando era aplicada – estava normalmente terminado o processo. Todo  o procedimento era guiado por normas diferentes das que inspiravam os tribunais seculares. Enquanto estes procuravam descobrir o crime para castigá-lo, os tribunais da Inquisição procuravam induzir o réu a se converter e ser libertado das penas da lei. Aos acusados, portanto, sempre brilhava a luz da esperança e movidos por conselhos, instruções e exortações benévolas, muitíssimos se convertiam, sendo absolvidos e reintegrados.

SENTENÇA FINAL. Terminado finalmente o processo, reunia-se em plenário todo o tribunal ao qual juntava o ordinário (bispo) e os consultores do Santo Ofício. Todos tinham direito ao voto que davam por escrito.

1. Provada a inocência do acusado, era ele completamente absolvido.

2. Não sendo provada a acusação, mas havendo alguma culpa no réu, este era absolvido, com a imposição de alguma penitência, maior ou menor segundo o caso.

Todos estes não apareciam no auto-de-fé.

3. Se a suspeita era maior ou consistente, porém sem prova completa, havia  lugar à abjuração e o réu aparecia no auto-de-fé, mas como reconciliado. Quando não havia auto-de-fé, a sentença era lida publicamente nas salas de audiência.

4. Quando a culpa era provada, podiam ocorrer dois casos: no primeiro, o réu não esperava pela condenação, mas, reconhecendo sua culpa, pedia perdão. Neste caso era admitido à reconciliação, mas eram-lhe impostas penas  gravíssimas. No segundo caso o réu se mantinha obstinado e era relaxado ao braço secular.

AS PENAS. Não insistimos aqui nas penas  leves como a imposição de certas orações, a abjuração, açoites “que não eram muitos duros”, como confessa o próprio historiador. E. Schäfer

A pena mais grave era o relaxamento ao braço secular, que invariavelmente executava o réu pela fogueira, mas nem sempre vivo.

Não repetiremos aqui o que na primeira parte deste estudo expusemos sobre o desenvolvimento histórico desta pena e a relutância inicial por parte da Igreja. É fato histórico que as autoridades eclesiásticas acabaram por aceitar a pena de fogo introduzida pelo poder civil e ao depois acostumados, todos a achavam proceder natural e legítimo. Mas devemos fazer graves reservas, às quais nos conduz o procedimento nada oculto e claramente provado pelos arquivos da Inquisição Espanhola.

Em primeiro lugar o número de relaxados estava longe de ser tão enorme como se há divulgado. Se o mal intencionado Llorente eleva o número a 30.000, outros dão sem hesitar o dobro e até mais de 100.000 executados pelo horrendo suplício. Tais números não seriam extraordinários num tempo, em que, como vimos, a pena de morte se infligia com tanta facilidade que já em perjúrio, adultério ou um simples furto a acarretava. Em consideração  dos costumes vigentes, a Inquisição mostrava grande moderação. Llorca admite que de 1483 até 1834, portanto no espaço de mais de três séculos, o número de relaxados deve ser avaliado entre dez e quinze mil. Admitindo o número mais elevado, achamos uma média anual de 43 relaxados, menos de meia dúzia por corte individual. Em verdade o número era mais elevado no princípio e menor no segundo e terceiro século mas espetacularmente seculares. Lembremos só os 20.000 sentenciados à morte pelo único juiz de Dresden. Comparemos também com a sorte infeliz das 100.000 bruxas, todas queimadas vivas em terras germânicas – só 12 na Espanha – enquanto dos relaxados pela Inquisição Espanhola, só poucos eram queimados  vivos.

Na realidade a Inquisição tinha achado mais um expediente para avaliar a sorte dos sentenciados. Na noite que precedia a execução, cada condenado era assistido por dois capelães que o preparavam para a morte e lhe recomendavam a conversão. Quando nesta ocasião, ou já antes, ele dava algum sinal de arrependimento, talvez só fingido, era estrangulado na execução e só o cadáver queimado. O número de queimados vivos era na realidade extremamente reduzido.

Assim E. Schäfer, que, como protestante se interessou pela sorte dos seus correligionários, constatou que dos 220 protestantes, condenados pela Inquisição Espanhola, apenas uma dúzia morreu pelas chamas. Confiramos estes 220 protestantes com os milhares de católicos sentenciados na Inglaterra; e estes não eram inovadores, mas sua única culpa consistia  em ficarem fiéis à antiga religião da qual apostataram os seus perseguidores.

Uma triste consequência do relaxamento ao braço secular  e só inteligível pelo espírito do tempo, era a confiscação de todos os bens do justiçado, a favor do fisco real, e a inabilitação a cargos públicos dos seus filhos e netos em linha masculina.

O número de condenados à  morte  era portanto bastante reduzido. De longe a maior parte dos culpados arrependia-se e era admitida à reconciliação, o que era o fim principal da Inquisição.

Certo número de réus era também condenado às galeras por alguns anos.

O CÁRCERE PERPÉTUO. Já tivemos ocasião de falar da prisão preventiva. Desta se deve distinguir a prisão penal a que eram condenados muito dos réus convictos. Aqueles que ficavam obstinados durante todo o processo, e só prometiam emenda depois de provada a sua culpa, eram reconciliados mas sujeitos a graves penas, geralmente à prisão.

O cárcere penal era chamado perpétuo, em oposição à prisão preventiva. Distinguia-se cárcere perpétuo pata toda a vida e cárcere perpétuo para oito ou mais anos.

Os adversários da Inquisição Espanhola esmeraram-se em inventar descrições horripilantes, mas são em absoluto inverídicas as descrições sinistras de calabouços e masmorras escuras e impenetráveis. Llorca refere uma estampa tendenciosa em que aparece uma mulher no momento de ser encerrada com pedras e cal dentro de quatro paredes. O mesmo autor acrescenta: jamais a Inquisição Espanhola empregou este castigo, embora seja verdade que outros tribunais o usaram.

O cárcere penal da Inquisição era uma vila de pequenas casas com capela. Também havia edifícios maiores com habitações que as mulheres cozinhavam. Também os presos não estavam incomunicáveis. Assim “Daniel de Cuadra, lavrador, não se acha presente à chamada, porque todas as manhãs sai de madrugada ao campo, para ganhar seu sustento, e portanto o cárcere é para ele uma espécie de local para dormir” (E. Schäfer). O mesmo autor confirma: “Os casados parece não estavam separados, mas viviam juntos. A Instrução de 1561 ordena expressamente ao diretor (alcaide) do cárcere perpétuo de prover os presos com instrumentos e trabalho para que  possam ganhar sua vida e ajudar-me em sua miséria. Atendia-se a queixas dos detidos. Havia bastante liberdade de movimento e ação”. Já vimos que o mesmo E. Schäfer apenas reconhece ao cárcere perpétuo a característica de prisão.

AUTO-DE-FÉ. A última fase dos processos inquisitoriais éramos autos da fé (atos de fé). Também este ato não era o espetáculo repelente, inventado maliciosamente pelos adversários da Igreja Católica, em que magistrados e povo se deleitavam em contemplar as multidões de infelizes condenados à morte, retorcendo-se nas chamas.

Na  realidade os autos-da-fé, eram grandes manifestações de fé católica. Na praça mais importante da povoação levantavam-se grandes tribunais, onde tomavam lugar os convidados de honra, inclusive por vezes membros da família real. Em volta apinhava-se o povo.

O alto tinha começo com a chegada processional dos delinquentes seguidos pelo corpo  dos inquisidores. Chegados ao lugar, procedia-se ao “auto-da-fé” pelo juramento solene, de todos os assistentes, de fidelidade à fé católica e ao Santo Ofício. Os membros da família real, se os havia, adiantavam-se primeiro para prestar o juramento ritual. “Era o ato oficial de fé, feito por um Estado, pela boca de seus representantes – reis, magistrados, povo entusiasmado – que se sentem na posse da verdade. É impossível negar-lhe o atrativo do grande e sublime que imprime caráter a um povo” (Llorca).

A este ato de fé seguia o sermão acomodado à circunstância, para o qual se convidava um dos grande oradores, tão comuns naqueles tempos de fé e religiosidade.

Depois do sermão começava a leitura das sentenças e o ato terminava com a reconciliação ou degradação dos condenados. Finalmente dispersava-se a reunião.

Nada portanto de fogueiras ou espetáculos sangrentos.

Os sentenciados à morte, sempre pouco numerosos, eram levados fora da cidade, onde se fazia a execução. Os penitentes da última hora eram primeiro estrangulados e os corpos lançados  ao fogo, onde morriam também os impenitentes cujo número, como vimos, era muito reduzido.

Não duvidamos que este espetáculo da execução atraía também curiosos, e que se despertavam instintos de crueldade – aliás nunca alheios às massas, nem ao homem moderno. Ainda em nossos dias aconteceu, numa grande metrópole do mundo civilizado, que o público gritou freneticamente contra o lutador de box que estava sucumbindo aos golpes do seu adversário. No dia seguinte assistiram a seu enterro.

Este procedimento da Inquisição de afastar o espetáculo das penas finais do povo reunido ao auto-de-fé, é muito diferente das práticas observadas pelo poder civil nas execuções dos criminosos do direito comum ou das bruxas. Este procurava a maior publicidade para mais impressionar o povo, incutir terror  salutar e intimidar os malfeitores ocultos. Para este fim o poder público tinha reassumido na Idade Média a pena da fogueira e acrescentava outros suplícios que a pena se nega a descrever.

Julgamento sobre a inquisição Espanhola

A exposição histórica da Inquisição Espanhola nos revelou seu maior defeito, sua dependência dos reis que dela abusavam frequentemente para fins alheios à religião e à finalidade da instituição. Também o Santo Ofício laborava dos defeitos gerais, de todos os tribunais daquele tempo, principalmente no uso tão pouco recomendável e desumano da tortura e das execuções pelo fogo a cargo do braço secular.

Mas também o relato dos fatos históricos nos provou que é completamente imerecida a má fama do mesmo tribunal quanto ao proceder contra os suspeitos de heresia. O proceder era rigorosamente regulamentado, para excluir qualquer arbitrariedade e injustiça. Os próprios inquisidores, embora dependentes do rei em questões políticas, mostravam grande senso de justiça nos processos.

O protestante E. Schäfer, várias vezes citado como testemunha insuspeita e sincera, e que viu milhares de atas originais, declara: “Não se pode desconhecer na Inquisição espanhola, tanto objetiva como subjetivamente, o esforço em aplicar um procedimento abertamente  justo”. Que alguns inquisidores se tenham deixado levar por paixões pouco nobres, é um fenômeno humano, que não pode ser imputado ao sistema. Centenas de milhares de atas conservadas  provam o verdadeiro desejo de fazer justiça aos réus.

O tribunal eclesiástico era incomparavelmente mais moderado e humano do que os tribunais  civis.

A Inquisição Espanhola  teve efeitos muito benéficos. Ela conseguiu manter a unidade da Fé e afastar da Espanha o temido sincretismo judeu-islamítico-cristão. Ela preservou a Espanha da alucinação e dos horrores pela proibição de livros, prejudiciais à fé e costumes, como também pelo combate aos falsos místicos ou “alumbrados”, criando assim o ambiente próspero para a sadia literatura ascética e mística dos séculos XVI e XVII que constitui a inveja do mundo contemporâneo” “Llorca). A Inquisição não foi, como a denegriram, um obstáculo, mas sim o fomento da ciência, literatura e cultura.

Com suma vigilância a Inquisição Espanhola impedia a importação de livros protestantes, provenientes principalmente dos Países Baixos. Com mão forte atalhou a propaganda a tal ponto que os pequenos núcleos de protestantismo foram rapidamente dissolvidos. Por conseqüência o número de sentenças  contra protestantes era mínimo.

Notemos ainda que os protestantes não podem acusar os governos católicos de intolerantes, pois foi por influência protestante que nasceu na Alemanha o iníquo princípio “cujus regio, illius religio”. Em virtude deste princípio, inúmeros homens pacíficos foram expulsos dos seus lares e da pátria.

Pelo fato de a Inquisição ter preservado a Península Ibérica da cisão religiosa, ela a salvou também das guerras religiosas. As longas guerras contra os huguenotes na França, entre 1562 e 1598, a guerra dos 30 anos na Alemanha, de 1618 a 1648, ceifaram vítimas às centenas de milhares, nas batalhas e nos inúmeros atos de violência contra o povo inerme. A Alemanha ficou despovoada, reinava imensa miséria. Logicamente os denegridores da Inquisição Espanhola devem preferir todos estes horrores à paz e ordem que reinava na Espanha.

A Inquisição Portuguesa

Nos países que não são de  língua portuguesa é pouco conhecida a atuação da Inquisição em Portugal. Aqui não a  podemos omitir por ela interessar diretamente o Brasil, onde também funcionou durante algum tempo. É preciso ainda responder às calúnias que se propagam no Brasil sobre a Inquisição Portuguesa, responsabilizando a Igreja Católica de crimes que ela reprovava. Assim desanuviar-se-á a confusão e ânsia na mente de muitos leitores bem intencionados.

Pela perseguição dos judeus e a dominação abusiva do tribunal eclesiástico por parte do poder civil, Portugal escreveu uma página sombria da sua história. Constatemos porém desde já, e logo o veremos, que a culpa não recai sobre a Sé Apostólica de Roma nem no nobre povo lusitano e só, como na Espanha, sobre alguns personagens proeminentes.

Seguimos e resumimos o relato de 200 páginas da História  da Igreja em Portugal, tomo III, parte II, de Fortunato de Almeida…

A questão Judia

A mesma questão judia que agitara Castela, existia também em Portugal. O povo odiava os judeus “como gente absorvente que por tradição inveterada abusava das necessidades alheias, para se enriquecer”. Também ofendiam o sentimento do povo. Profanavam o Santíssimo Sacramento e cometiam outros sacrilégios e crimes. Certa vez enforcaram uma estátua de Nossa Senhora. O ódio do povo e a inquietação do governo aumentaram repentinamente quando, em 1492, 120.000 judeus, expulsos da Espanha entraram clandestinamente em Portugal, elevando o número de 80.000 a 200.000, entre uma população total de um milhão. D. João II os reduziu à escravidão. El-rei D. Manuel restituiu-lhes a liberdade, mas foi uma  trégua de curta duração.

Em 1496, D. Manuel negociou seu casamento com a princesa D. Isabel, filha dos reis católicos. A noiva, talvez por querer imitar seus pais, em cooperar na sua política, estabeleceu como condição das núpcias que os judeus fossem expulsos de Portugal, antes que ela entrasse nesse reino. El-rei apressou-se a satisfazer a exigência da noiva, e decretou, em dezembro de 1496, que todos os judeus e mouros forros se retirassem do reino.

Mas quando eles se reuniram nos portos para serem transportados à África, foram negados os navios necessários e a expulsão se converteu maliciosamente em perseguição horrorosa. Quase todos que sobreviveram foram convertidos à força e constituíram em Portugal os “cristãos novos”, no íntimo fiéis à  sua antiga fé.

Aumentava constantemente o ódio do povo contra os judeus – cristãos novos. Em 1506 houve em Lisboa um massacre que durou três dias, e custou a vida a mais de 1.900 pessoas. A culpa principal tinham alguns frades fanáticos, que depois foram executados.

Uma luta histórica

Em 1531, D. João III pediu ao Papa a Instituição de uma nova Inquisição em Portugal com os mesmos privilégios como em Castela. El-rei a queria ter em mão e nomear os inquisidores. O motivo não expresso era a repressão dos judaizantes, mas os motivos alegados para influir no Papa eram inventados ou dolosamente deturpados, como a afirmação de que o reino  foram invadido pela heresia de Lutero, o que era redondamente falso. Afirmava-se que os judeus se tinham apartado dos ritos judaicos, sem a  mínima referência à conversão  forçada. Aos 17-12-1531, o Papa Clemente VII, que só podia julgar pelas informações recebidas, nomeou, ele mesmo, Frei Diogo da Silva inquisidor-mor de Portugal. Aos 7-4-1533 o mesmo Papa, provavelmente  melhor informado, concedeu o perdão geral aos cristãos novos.

O rei ficou profundamente  desgostado e até difamou o Papa de ter aceito peitas para conceder o perdão. A difamação aleivosa foi repetida várias vezes, entretanto cometiam-se bárbaras crueldades contra os novos cristãos.

Aos 13-10-1534 foi eleito o Papa Paulo III. D. João III aproveitou da ocasião para ameaçar ruptura com a Santa Sé se o Papa não revogasse as disposições de Clemente VII. Também Carlos V  interveio a favor de el-rei.

Continuavam as negociações, conduzidas com paixão por parte do rei. O Papa permanecia contrário à concessão pedida, receando – como de fato mais tarde devia acontecer – que as tiranias e crueldades praticadas em Castela se reproduzissem em Portugal.

A que ponto chegou a tensão na corte de Lisboa, podemos concluir do fato que um conselheiro do rei lhe propôs entre vários alvitres o de desobedecer ao Papa, pois “se o Papa deixava de fazer o que devia, melhor do que Henrique VIII da Inglaterra, el-rei podia desobedecer”.

Este alvitre era do bispo de Funchal, homem ambicioso e sem escrúpulos, e prova até que ponto D. João III tinha o clero nas suas mãos.

Em consideração desta sugestão de rebelião, de outros conselhos apaixonados dados ao rei, da ameaça de ruptura já pronunciada e do caráter voluntarioso e indomável de D. João III, concluímos com espanto que era real o perigo de que Portugal e com ele o Brasil fossem arrancados à Igreja Católica, tornando-se cismáticos, como a Inglaterra. D. João III deu logo um passo que pode ser interpretado como o início da ruptura, pedindo ao Papa retirasse o núncio de Lisboa, “pois não era cá necessário às consciências dos fiéis”. – O Papa não retirou o núncio.

Paulo III envolvido em tantos negócios cheios de dificuldades, como as invasões dos turcos, incremento do protestantismo, questões de um concílio ecumênico, veria com prazer um meio de liquidar as desavenças com o monarca português, mas novas provocações de Lisboa o fizeram renovar as decisões anteriores (12-10-1535).

A reação não tardou. Em Lisboa um clérigo do núncio foi preso. O núncio fulminou censuras  contra os juízes do rei, executores da prisão. A luta chegou ao extremo, Interveio novamente Carlos V e sua pressão sobre o Papa devia ser decisiva. Com efeito a 23-5-1536, Paulo III concedeu a Inquisição a Portugal. Nomeou comissários seus os bispos de Coimbra e Lamego, inquisidor-mor seria o bispo de Ceuta, o quarto inquisidor seria nomeado pelo rei..

O Papa não concedera tudo. Mas a Inquisição podia funcionar. Se agora o rei tivesse procedido com moderação, haveria concórdia entre Portugal e a Santa Sé. Mas não tardaram a  vir queixas a Roma: sobre falsificação de disposições papais, continuação da lei desumana que vedava aos judeus a emigração e privava os fugitivos de todos os bens. O Papa ameaçou suspender o tribunal até se esclarecerem as queixas. O resultado  foi ao menos moderação no exercício dos processos por algum tempo. O rei entretanto não se aquietou. Acusou o núncio de favorecer os cristãos novos por venalidade. Esta reiterada difamação da Santa  Sé e dos seus representantes foi inventada por um rei que procurava  atrair com dádivas as pessoas que tinham influência em Roma. Continuava a fazer diligências para obter a “inquisição livre”, livre de Roma, mas sujeita ao rei, em que este nomearia os inquisidores.

Em 1539, o rei fez o ato arbitrário, investindo seu irmão, o infante D. Henrique no cargo de inquisidor-mor. A nomeação parece encaminhada, em parte, a provocar um conflito com o núncio, que de fato estalou imediatamente. O Papa não aceitou a nomeação de D. Henrique. O núncio foi expulso de Portugal. Nas negociações que se seguiram o embaixador português usou de grosserias com o Sumo Pontífice. Paulo III expediu uma bula com certas garantias aos acusadores. A bula não chegou a ser publicada porque D. João III logo a impugnou. Carlos V, temendo pela Inquisição Espanhola, insistia  em que a portuguesa fosse severíssima. De  modo nenhum D. João III queria em Portugal núncio que fiscalizasse a ação do tribunal do Santo Ofício. Impediu a entrada em Portugal do novo núncio mandado por Paulo III em 1542.

Esta luta encarniçada, em que a Santa Sé defendeu insistentemente os princípios de tolerância, continuou e ainda teve seus episódios nos fins do século XVIII. Todavia a Santa Sé foi obrigada a transigir. Aos 16-7-1541, o Papa conferiu de novo os poderes da Inquisição ao Infante D. Henrique recomendando-lhe usar do poder moderadamente e tomando providências para este fim.

Assim pois se originou a Inquisição Portuguesa, que “envenenou a vida em Portugal até o tempo de Pombal” (Histoire de l’Église, XV).

De Roma diziam os agentes portugueses que mais se não pudera alcançar, por ser corrente na cúria que era melhor dar a Deus contas de misericórdia que do rigor de justiça (Almeida).

Este relato, que é só um resumo das múltiplas polemicas entre o rei e o Papa, responde cabalmente a muitas perguntas desorientadas como estas: Por que o Papa não aprendeu dos abusos cometidos na Espanha? Por que concedeu a Portugal a mesma Inquisição, porta aberta para tantas injustiças? Por que não  protestou contra os crimes cometidos em nome da justiça? Os fatos relatados bastam para corrigir as idéias erradas que levam à formulação destas e outras perguntas, equivalentes e graves e injustas acusações.

Menos ainda que as origens da Inquisição, pode-se imputar à Santa Sé o desenvolvimento posterior e arbitrário do tribunal. O absolutismo real, com propósito de aumentar a autoridade da Inquisição, instrumento útil nas mãos da realeza, começou a derrogar abusivamente aos direitos dos bispos. A Inquisição Portuguesa era, como na Espanha, um tribunal entregue a pessoas eclesiásticas, mas dependentes do Estado, que lhes orientava o modo de proceder. Ainda veremos num exemplo frisante até que ponto o respeito de Deus, da Santa Sé e  da consciência cristã podia ser desprezado.

Julgamento

Fortunato de Almeida conclui que é difícil emitir um juízo seguro sobre alguns aspectos  da Inquisição Portuguesa. Com João III não fora movido pelo puro zelo do cristianismo. O motivo de procurar a unidade da fé eram sem dúvida político. Sem escrúpulos ele adotou as mais odiosas e violentas providências contra os judeus, quando nos Estados Pontifícios eles gozavam em todos os tempos pelo despotismo do poder secular, de impor a sua autoridade até nas matérias de natureza espiritual”. (Estas palavras foram escritas antes de serem confirmadas pelas tiranias nazistas e comunistas). Certos procederes de D. João III assumem caráter doentio pela obstinação implacável. Em Roma acusava-se o rei de pretender a Inquisição como meio de espoliar os judeus das riquezas que possuíam. As dificuldades financeiras em que se debatia a administração pública roboram a suspeita. Precisava só imitar o confisco dos bens, praticado em Castela, onde tanto se abusava dele.

Fortunato de Almeida conseguiu reunir dados estatísticos sobre uma temporada de grande atividade inquisitorial. A estatística não deixa de ser instrutiva. Damos só os números totais: de 1684 até 1747, portanto em 63 anos, foram sentenciados em todo o território português: 4.672 acusados, dos quais só 146 foram relaxados à justiça secular: 3,1% dos julgados. Em Évora entre 804 réus, nenhum foi relaxado, o que prova que as sentenças  dependiam em larga escala da disposição dos juízes. Em Lisboa, em certa época, nota-se um máximo de rigor, que só ali no curto prazo de 17 anos, custou a vida a mais da metade dos condenados. Naquele tempo de recrudescimento em Lisboa era inquisidor D. Nuno da Cunha Ataíde, 1706 a 1750, personagem que mais de uma vez revelou zelo indiscreto e critério estreito. No exercício do ofício inquisitorial mostrou-se moderado durante 21 anos, condenando 676 réus e relaxando só 18 ao braço secular: 2,7%. Porém nos 17 anos seguintes, de 547 sentenças, não menos de 84 entregavam os condenados à morte: 15%. Se do número total de relaxamentos  tiramos os condenados de D. Nuno, evidentemente vítimas de um rigor injusto, o número de relaxados em Portugal nem chegava a 1,4%.

Estes números não seriam excessivos, até em países civilizados hodiernos. Em nossos  dias os déspotas modernos nos acostumaram a números diferentes.

Quanto ao julgamento total da Inquisição Portuguesa deveríamos repetir em parte o que acima julgamos da Inquisição Espanhola, em particular ela deu ao país e suas colônias, entre as quais o Brasil, apaziguamento do povo, unidade religiosa e preservação do protestantismo.
O período pombalino

Uma grande figura, aos olhos de muitos adversários da Igreja Católico, é Sebastião José de Carvalho, Conde de Oeiras, o famoso Marquês de Pombal. Afirmam ter sido ele quem primeiro, por princípios liberais, ousou levantar-se contra a dominação eclesiástica e quebrar o poder tirânico da Inquisição. Para refutar as diversíssimas acusações basta expor a verdade histórica.

É verdade que Pombal começou a derrogar os privilégios da Inquisição, mas os motivos foram exatamente os mesmos que orientaram D. João III na fundação do mesmo tribunal. Este queria ampliar seus direitos, dominando a Inquisição, aquele queria o mesmo aumento  de poder, suprimindo a Inquisição a favor do foro civil. Que seu proceder não era ditado pelo amor da liberdade nacional e da justiça, é patente pelo seu modo de governar que o coloca ao lado dos maiores tiranos da história. Sem nos preocupar com seus desmandos puramente pessoais e políticos, consideramos aqui só suas relações com os representantes da Igreja.

Já antes de chegar ao poder, o futuro Marquês de pombal era antipático a D. João V: “Conheço cabalmente o espírito turbulento, hipócrita e audacioso de Carvalho…” O rei negou-se até a morte a confiar um ministério a Sebastião J. de Carvalho. Foi o fraco D. José I que  o chamou e o constituiu ministro.

Em 1754 o Padre Gabriel Malagrida, S. J. (Cfr. Biografia escrita por Paulo Mury, S.J.) vindo do Brasil, encontrou o marquês e não o saudou por não o conhecer. Apostrofado pelo ministro por causa da irreverência, o padre se desculpou com humildade. Em seguida aproveitou do encontro para avisar, reverentemente ao ministro que o Sr. Mendonça, irmão de Carvalho, granjeara tanto ódio no Maranhão que se devia prever uma desgraça. Aconselhou tirá-lo dali.

Em consequência deste encontro, que considerou como duplo desaforo, o ministro jurou perder o atrevido jesuíta. Também o tornava ciumento a celebridade que Malagrida alcançou na época do terrível terremoto de 1755. Malagrida morrerá e com ele toda a Companhia de Jesus.

Acompanhemos primeiro a sorte de Malagrida. Em 1758 houve um atentado contra el-rei  D. José I. Pouco depois o Padre Malagrida foi preso, acusado de cumplicidade no atentado e encerrado sem julgamento, durante dois anos, nas masmorras subterrâneas. Entretanto pombal preparou o tribunal que devia dar aparência legal à sua vingança. O núncio apostólico foi removido de Portugal, para o ministro ter mais liberdade de ação. Na Inquisição Pombal removeu os inquisidores que não lhe agradavam e os substituiu por indivíduos de sua feição. A que ponto ele dominava o rei, ficou patente pela ousadia de remover o próprio irmão de D. José I do cargo de inquisidor-geral e substitui-lo por seu próprio irmão Paulo Carvalho. Também foi removido Frei Francisco de Tomás, O.P., porque declarara que não concorria para a condenação do desgraçado jesuíta, porque não via prova alguma dos crimes que lhe increpavam. O velho frade foi desterrado para Angola, morrendo na viagem.

Finalmente Malagrida  foi citado diante do tribunal. Teve que apresentar-se com a batina meio apodrecida pelo ar da masmorra. Durante dois anos não lhe tinham concedido mudar de roupa.

Cumplicidade no atentado contra el-rei não era da alçada do tribunal eclesiástico, pelo que Pombal forjou  novas acusações apropriadas. Malagrida teria escrito duas obras de conteúdo ridículo; por exemplo que Santa Ana fizera antes de nascer três votos: um ao Pai Eterno, outro ao Filho e o terceiro ao Espírito Santo, etc. Consta que uma destas obras fora escrita por um infame que recebera de Pombal como recompensa uma pensão de 1:300$000 rs.

Quanto mais tarde Luís XV, rei da França, leu a sentença do Santo Ofício, exclamou indignado: “Nesse caso também eu devia mandar executar esse desgraçado louco “des Pétites Maisons”, que se julga Pai Eterno!”

Em janeiro de 1761 apareceu a escandalosa sentença que fez exclamar e próprio Voltaire: “Ao excesso  do ridículo e do absurdo ajunta-se o excesso do horror!” Malagrida era declarado réu de heresia, de blasfêmia, de falsas profecias e por tais crimes devia ser degradado das ordens e relaxado ao braço secular. O tribunal civil julgou reais os “enormes crimes” e lavrou a sentença, condenando o apóstolo a ser garrotado pela mão do algoz e queimado na praça pública de Lisboa. A execução foi realizada aos 21-9-1761.

Enquanto Malagrida penava nas masmorras, desenrolou-se no reino de Portugal e nas suas colônias outra tragédia ainda mais horrorosa (Cfr. História dos jesuítas no ministério do Marquês de Pombal, por Cristóvão Teófilo de Murr, 2ª ed., Porto Alegre, 1923). Sem ter a menor prova de culpabilidade, Pombal fez arrebanhar todos os jesuítas do Reino e atirá-los às ribas marítimas da Itália, com sumo desprezo da Santa Sé. Do mesmo modo os jesuítas das colônias foram apinhados em estreitas embarcações, trazidos para Lisboa e dali levados ao Estado Pontifício. As indicações dos números variam. Averiguamos as seguintes: Da história de Murr deduzimos que 220 foram tirados só do Brasil. Pastor (História dos Papas, XVI, 1) eleva a 1.100 os jesuítas depositados nas praias pontifícias. Outros sim, segundo Murr, morreram durante a perseguição 700 jesuítas, na maior parte em conseqüência dos maus tratos nas embarcações.

Nas masmorras de São Julião, o furor incluíra 124 jesuítas, que não foram deportados, permanecendo quase 20 anos na prisão, em condições tais que fizeram exclamar a um carcereiro: aqui tudo apodrece fora os jesuítas. A Quarta parte morreu.

Quando D. José I morreu, em 1777, uma das primeiras providências da rainha sucessora, D. Maria, foi a de destituir o onipotente ministro. Não foi processado em consideração da sua idade avançada, mas desterrado de Lisboa. A queda de Pombal significou a libertação do que restava dos 124 jesuítas. Ressurgiram das sinistras masmorras como de um túmulo. Ao mesmo tempo foram libertados  mais 800 presos políticos, vítimas do tirano.

Também as outras ordens religiosas eram perseguidas por Pombal. Entre  outras medidas pérfidas ele fomentava nos mosteiros a decadência da disciplina para tornar os monges desprezíveis e poder acusá-los de indignos e criminosos.

O ex-ministro desterrado morreu em 1780, na idade de 83 anos. Parece que a terra se recusou a receber os despojos mortais de semelhante tirano. Tinha escolhido o sepulcro no seu condado de Oeiras. A corte se opôs. Assim permaneceu insepultado durante mais de 50 anos. Na invasão francesa o esquife foi arrombado e roubado de todas as condecorações e adornos valiosos. O corpo foi queimado. Mais tarde os franciscanos, guardas do seu corpo, recolheram os restos que ainda em 1832 se achavam num canto da capela franciscana em Pombal. Naquele ano um membro da Companhia de Jesus restaurada “vingou” seus confrades perseguidos, rezando a missa “corpore praesente” pelo descanso de Sebastião  José de Carvalho, Conde de Oeiras e Marquês de pombal.

Recapitulação

Divergem as opiniões dos historiadores sobre a conveniência e utilidade dos tribunais da Inquisição. No julgamento devemos omitir razões ditadas pelo sentimentalismo. Sem dúvida os métodos usados repugnam aos sentimentos de homens modernos, mas a mesma repugnância nos causam também os tribunais civis daqueles tempos, e contudo ninguém dirá que  não deviam ter existido. Reprovamos a forma mas não a instituição, reconhecendo sua necessidade. Se a Inquisição não  tivesse alcançado resultados úteis, pelo menos os melhores representantes da hierarquia eclesiástica teriam pedido sua abolição. Na realidade não se  pode negar que, ao lado de efeitos prejudiciais, a Inquisição teve influência salutar. Sem o esforço comum dos poderes secular e eclesiástico, o Ocidente cristão teria provavelmente terminado num caos de inúmeras seitas, de credos e tendências opostas, com todas as conseqüências de perseguições, ódios, assassínios, insurreições, guerras civis. Foram, como vimos, os inícios destes males que alarmaram os governos e conduziram à criação do órgão repressivo.

De modo semelhante fala o Dictionnaire de Théologie Catholique: “Em vista do caráter anti-social dos cátaros e outros sectários, devemos reconhecer que a causa da ortodoxia não era outra senão a da civilização e do progresso. Se o catarismo se tornasse só igual ao catolicismo, os efeitos teriam sido desastrosos. Se o ascetismo que professavam se tornasse universal, devia levar à extinção da raça humana. Eles consideravam pecado qualquer esforço de melhoramento  material, o que teria paralisado completamente o progresso da sociedade”.

A seita antissocial dos cátaros desapareceu e da mesma forma foram surpresas outras seitas. Repetidas vezes neste estudo tivemos ocasião de focalizar como efeito benéfico o apaziguamento do povo e a preservação dos países latinos da invasão do protestantismo.

Na Antiguidade e Idade Média o cristianismo já tinha levantado a humanidade da profunda degradação do paganismo. Renascera a pureza dos costumes, a honradez e honestidade nas relações humanas, a dignidade da mulher, a  liberdade pessoal. Garantindo a unidade da fé a Inquisição concorreu poderosamente ao progresso e brilho da cultura ocidental, à mais perfeita da história, da qual até hoje todos nós participamos.

Quando a Inquisição perdeu sua influência e se originou a grande cisão na fé que dividiu o Ocidente em dois campos, o católico e o protestante, os efeitos prejudiciais logo se manifestaram. Além das guerras de religião já citadas, sintomas da decadência eram as desenfreadas perseguições das bruxas, pavorosa revivência das superstições e o declínio geral da religiosidade.

Aqui devemos considerar também uma opinião, expressa até por historiadores católicos. Lamentam que a Igreja se tenha apresentado ao povo cristão com face tão sinistra, como perseguidora e opressora do homem humilde, gerando nele o pavor, a aversão  à religião e o anticlericalismo.

Os fatos históricos, como vimos, provam o contrário. A aversão à religião verdadeira e o anticlericalismo encontravam-se, naquele tempo, precisamente entre os hereges, antes de qualquer ação inquisitorial. Foi o povo que com mais insistência, muitas vezes com fanatismo, reclamava a perseguição dos dissidentes e, vezes sem conta, se deixou arrastar a levantes sangrentos. Aplaudiu o tribunal da fé e aquietou-se, com a sua aparição. Sentia-se seguro e protegido pela Inquisição. Os autos-de-fé eram realmente demonstrações entusiásticas de fé ardente. O povo afluía em massa para protestar sua fidelidade a Deus, à Igreja e à pátria. Muitos comparam os autos-de-fé com os congressos religiosos dos nossos dias. O próprio ato era uma festa religiosa.

O Santo Ofício é um produto do seu tempo. Contudo ele apresentou  distintivos particulares, em que aparecem os efeitos do espírito clemente, humano, pedagógico e civilizador da religião cristã. Sua tendência fundamental era medicinal, não vingativa. A reintegração do criminoso na sociedade humana, que muitos consideram uma conquista dos nossos dias, era a praxe antiguíssima e primordial da Igreja. “Pelo que se vê, desde o princípio, a Inquisição foi mais benévola e progressista do que os tribunais seculares, pois estes não davam ao réu a liberdade de reconhecer seu  extravio, enquanto aquela não entregava ao braço secular aqueles que abjuravam seu erro nas mãos do bispo, senão apenas os pertinazes, com o que subtraiu numerosos extraviados à prisão e até ao cadafalso, evitando a confiscação dos seus bens e por conseguinte a ruína e miséria de suas famílias” (Espasa).

O Dictionnaire de Théologie Catholique acrescenta: “Em suma, podemos pensar que a instituição e o funcionamento dos tribunais da Inquisição realizavam um verdadeiro progresso nos costumes; não somente eles tinham acabado com a era das execuções sumárias, mas ainda tinham diminuído consideravelmente as condenações que rematavam com a pena de morte. Ademais, muitos condenados mereciam a morte por outros crimes de direito comum. A Inquisição só se explica e justifica pela mentalidade daqueles que representavam o poder civil e o poder religioso na Idade Média e pelo horror que lhes inspiravam o crime da heresia. Para compreender semelhante instituição é preciso formar-se uma alma ancestral”.

Notemos que esta conclusão não é completa, lembrando só o horror da heresia e omitindo o grave dilema em que se achava o poder civil e religioso ou de sucumbir ou de reagir com todos os meios possíveis.

Confronto com o mundo moderno

Vivemos numa época democrática que se gaba de ter dado as nações a liberdade social e pessoal. Tão hipnotizado é o homem moderno desta liberdade que a quer absoluta e se revolta contra qualquer limitação. Proclama-se a liberdade política e chega-se ao extremo de exigir tolerância até para atividades francamente subversivas, permitindo greves políticas, calúnias contra os governos livres, doutrinação revolucionária das massas. O que acontecerá quando aquela semente medrar? Em flagrante contradição com o princípio exagerado da liberdade, quase todos os países livres admitem aquele partido que vê seu ideal na completa ditadura, nominalmente a ditadura do proletariado, na realidade uma oligarquia tirânica, que achou  sua  expressão inconfundível na Rússia, na China e países satélites. Nunca houve escravização tão completa como debaixo de jugo comunista e sua Inquisição moderna: a polícia secreta NKVD ou MVD, pratica sem proceder jurídico, torturas, execuções, morte lenta em campos de concentração numa extensão  astronômica. Alucinados pela quimera de liberdade absoluta abrimos caminho e facilitamos o advento da nossa escravização. Assustados os propagandistas desta liberdade, que se enterra a si mesma, já vêem como em certas regiões o povo desnorteado chega à dominação pelas eleições democráticas. Porém não concluem que se deva dar cabo à desorientação sistemática  do povo.

Exige-se hoje completa liberdade de opinião e de imprensa. Nenhuma polícia tem o direito de impedir os agitadores de toda espécie nas suas atividades, provocando o ódio dos operários contra os seus patrões, caluniando de imperialismo a economia livre. A licenciosidade pública, a imoralidade em recintos fechados, as exibições escandalosas e desmoralizadoras dos cinemas, rádio, televisão vão aumentando num ritmo de avalanche devastadora. Só dois ou três decênios trouxeram mais depravação dos costumes do que muitos séculos anteriores.

Consideremos só um caso em que o Estado falta manifestadamente a seu dever de preservar o povo de influxos deletérios. Todos os homens sensatos concordam em que o espiritismo seja prejudicial, desmoralizador e povoador dos manicômios. Contudo permite-se que o povo ingênuo e ignorante seja afiliado em massa a este movimento pernicioso.

Finalmente observa-se friamente a apostasia da religião, como se sua falta não abrisse lacuna fatal na nossa cultura e civilização. É permitida toda a propaganda anti-religiosa e as difamações dos representantes das confissões religiosas.

Será certa ou só razoável esta orientação? Os nossos antepassados tinham opiniões diferentes. Eles também queriam liberdade, mas uma liberdade produtiva, que dá paz à coletividade, eleva o homem e o dispõe corretamente para o fim da vida humana e as suas relações com o Criador. Na realidade os povos do passado viviam mais satisfeitos do que as massas de hoje.

Incrimina-se a Idade Média e os tempos subsequentes por terem praticado a crudelíssima cremação de homens vivos. Mas o que vimos em nossos dias? Durante a última guerra armaram-se tanques e soldados com os horríveis lança-chamas que acertavam suas vítimas a 80 ou 100 metros de distância. Esta arma infernal tinha a finalidade declarada de queimar vivos os adversários e é impossível avaliar o número de milhares que em poucos anos morreram desta morte horrenda. Negamos a validade do pretexto de que na guerra tudo é permitido. Os governos modernos, e não só aqueles que considerávamos inferiores, arrogaram-se o direito de queimar vivos, não delinquentes como os tribunais do passado, mas soldados, obrigados a lutar e inocentes do conflito.

Nós reprovamos os procederes dos nossos antepassados, eles por sua vez ficariam sumamente indignados pela moderna guerra total, com seus bombardeios em que morreram dilacerados, intoxicados, queimados vivos centenas de milhares de inocentes desde crianças até anciães. Foram lançados milhões de bombas incendiárias sobre pacíficas moradas. Foram destruídos imensos valores culturais e monumentos históricos.

Não vamos infligir aos povos do passado, admiráveis na sua ardente religiosidade, a injúria de os comparar com os degenerados pagãos modernos, encarnados principalmente nos nazistas que pareciam definitivamente sepultados debaixo da cultura cristã. Os nazistas, obedecendo cega e criminosamente a um chefe tresloucado, exterminaram, além de outras vítimas, cinco milhões, outros falam de sete milhões de judeus, entre os quais um milhão de crianças. Um crime inominável e único na história, uma ignomínia para o gênero humano. Ainda tinham a hipocrisia de acusar os judeus de ter alguma vez cerca de 3.000 anos atrás, exterminado seus inimigos, talvez alguns milhares. Os mesmos nazistas desenterravam muitos escândalos cometidos por pessoas ou partidos políticos católicos. Contudo emudeceram aos poucos em relação à Inquisição por que  temiam o confronto dos seus métodos com os procederes do tribunal religioso.

Os crimes dos comunistas contra a  vida de inocentes superam ainda em número as vítimas dos nazistas. E ambos, nazistas e comunistas, fizeram e fazem-se réus de torturas com crueldade “científica”, diante das quais empalidecem as torturas do passado. Não podemos fazer uma própria comparação entre os crentes antigos e os materialistas modernos. Estes se colocaram à margem da cultura e da moral, tornando manifesto – o que precisamente os antigos queriam evitar pela instituição do tribunal religioso da Inquisição – que a decadência  religiosa é a maior desgraça do  gênero humano.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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