A Historicidade dos Evangelhos – EB (Parte 3)

8)  Jesus perante o tribunal de Pilatos

No relato
evangélico da Paixão. existe um episódio muito conheci­do dentro do processo de
Jesus perante Pilatos. Nós nos referimos ao fato de que o Procurador romano,
não encontrando delito digno de mor­te no acusado, o quer pôr em liberdade. Porém,
as autoridades judaicas pedem sua morte na cruz e reclamam a liberdade de
Barrabás, que, sem dúvida, era um delinquente político, culpado, de uma ou
outra forma, do delito de sedição contra Roma. Este episódio não causaria
nenhuma surpresa, se não fosse pelo fato de que os Evangelhos parecem fundar a
petição dos judeus  em um costume
jurídico. Eis aqui como a descreve São João: “É costume entre vós que vos ponha
em liberdade alguém pela Páscoa (Jo 18,39). Pois bem, fora dos Evangelhos, nem
em escri­tos Judaicos nem em documentos pagãos encontramos a menor alusão a
esta espécie de anistia anual que o Procurador romano da Judéia con­cedia por
ocasião da festa da Páscoa. Esta ausência de documentos que falem de semelhante
anistia, suscitou uma avalanche de críticas contra a historicidade do relato
evangélico. Uma prova a mais – segundo certos críticos – da inconsistência
histérica da tradição evangélica. Uma mostra disso são estas palavras cheias de
ironia do francês C. Guigenbert:

“Eis aqui
outro episódio notavelmente estranho. Em primeiro lugar; não possuímos, fora
dos Evangelhos, nenhum testemunho sobre o surpreendente costume… Como é
possível que um malfeitor; inclusive muito perigoso, deva ser posto em
liberdade, se o povo o reclama, sem que nenhum escrito judeu nos fale deste
exorbitante privilégio?”.

E, mais, a
ausência de corroboração histórica, fora dos Evange­lhos. do suposto costume e
que serve de base ao episódio da libertação de Barrabás, levou os estudiosos a
considerar todo o relato como legendário: estaríamos diante de unia lenda cuja
intenção seria pôr em relevo o enorme delito dos judeus, que preferiram a
liberdade de um homicida à do Salvador, pois pediram a morte de Jesus. Apesar
de que o Procurador romano quis libertar Jesus, a multidão, à qual o fantástico
costume da anistia pascal dava o direito de decidir, se negou. Para repli­car a
estas objeções, comecemos por perguntar: é certo que os Evan­gelhos falam
unanimemente desse costume?

a)  Análise dos textos

Uma leitura
atenta das passagens evangélicas que falam da anistia pascal como um costume,
põe imediatamente de manifesto que o testemunho deste costume não é
precisamente unânime.  Só em São João (18, 39) parece
haver uma referência explícita ao “costume” de libertar um preso por ocasião da
Páscoa.  No extremo oposto se encontra
São Lucas: seu relato do episódio não menciona em absoluto o costume.  De São Mateus, costuma-se dizer que, em
linhas gerais, seu relato da Paixão é uma versão literariamente melhorada do
segundo Evangelho.  Neste caso da libertação
de Barrabás, podemos falar certamente de melhor redação em São Mateus, porém não é
seguro que venha a dizer o mesmo que são Marcos.  Impõe-se, portanto, um atento estudo do
relato como o lemos no Evangelho de São Marcos, que os estudiosos consideram
ser o mais primitivo.

Mc 15, 6.  Das duas passagens nas quais se
costuma ler neste Evangelho uma alusão ao costume da anistia, segundo uma
tradição muito extensa, a primeira diz: “Cada ano pela festa costumava
soltar-lhes um preso, o que pediam” (Mc 15,6). Todavia devemos pontualizar esta
tradução do texto grego não se impõe em absoluto. A expressão inicial grega não tem
necessariamente sentido distributivo de “cada festa ” (da Páscoa).  Pode-se usar também para designar o momento
em que tem lugar um fato único, não repetido nem repetitivo, como demostram
exemplos evidentes nas obras de Flávio Josefo (Bel. 1,229; Ant., 208).  Esta expressão, portanto, pode-se traduzir
simplesmente por “na festa”, “por ocasião da festa”, sem que seja necessário
ler nela alguma alusão a uma repetição da anistia. O segundo elemento deste
versículo que parece indicar um costume, é o valor iterativo que se costuma dar
ao imperfeito grego, tal como faz a Vulgata: “solebat”.  Pois bem, este valor iterativo não é o único
que tem o imperfeito grego.  Junto a ele,
é freqüente o que podemos chamar valor de futuro próximo no passado.  E assim São Marcos pode querer dizer: “Na
festa, ou por ocasião da festa, ia-lhes soltar um preso, que pediam”.

Portanto,
este versículo do relato pode-se entender no sentido de que Pilatos, que tinha
sua residência regular em Cesareia, por ocasião da Páscoa, durante a qual se
trasladava a Jerusalém, daria a liberdade a um preso político que as
autoridades judaicas e os amigos apoiavam. 
Nada nos obriga a ver aqui uma alusão a suposta anistia regular de um
réu a pedido do povo por ocasião da Páscoa.

Mc 15, 8:
parece que dois versículos mais adiante o texto grego de São marcos fala
abertamente de uma anistia costumeira. 
Pelo menos assim o dão por certo algumas traduções como esta: “A
multidão, subindo, se pôs a pedir a graça acostumada” (Huby-Benoit).  Pois bem, é preciso reconhecer, pelo puro
exame linguístico, que o texto grego não tem este sentido.  De fato, quando se faz uma tradução
estritamente literal, a versão que resulta é muito violenta, a saber: “E,
subindo, a multidão começou a pedir como costumava fazer-lhe(s)” (E. Lomeyer).
A estridência do texto reside na troca de sujeito ao passar da primeira oração
– “começou a pedir” – à Segunda – “costumava fazer-lhes”. – Na primeira parte o
sujeito é a multidão, na segunda Pilatos. 
O fato de que na primeira parte o sujeito é a multidão, parece exigir
que na Segunda se fale também de algo que fazia a multidão.  A redação de São Marcos é de uma lógica desconcertante.

Uma vez
mais, a explicação deste estranho texto grego de São Marcos e a eliminação da
não menos estranha anistia pascal nos são dadas pela origem aramaica.  Vejamos. 
Se por baixo do imperfeito do verbo grego fazer supomos um particípio do
verbo aramaico que tenha o mesmo significado 
(o aramaico utiliza com muita freqüência os particípios, quando nós
usamos outras formas verbais), nós nos encontramos perante o paradoxo de que o
particípio aramaico deste verbo pode ser lido como ativo ou como passivo.  O texto grego de São Marcos neste versículo,
com suas estranhezas de redação, é o resultado de se haver concedido ao
particípio aramaico o valor ativo cujo sujeito – implícito, não se esqueça – é
Pilatos.  Mas pode ocorrer que na
passagem do aramaico para o grego se lera mal, ou seja, se interpretara como
ativo um particípio passivo escrito com as mesmas consoantes.  Nesta confusão está a causa da estridência do
texto que hoje lemos.  Bem agora, no
aramaico o particípio passivo do verbo “fazer”, além de “feito”, pode
significar “acostumado a”, e, construído em oração nominal, pode equivaler a
“acostumar”.

Em
consequência, o original aramaico de São Marcos pode querer dizer algo bastante
diverso, a saber: “E, subindo, a multidão começou a pedir como era de costume
deles, ou seja, como costumavam.  Não há,
portanto, troca de sujeito ao passar do primeiro membro, “começou a pedir”, ao
segundo, “como era de costume”. 
Encontramo-nos assim diante de uma proposição que nada tem de elíptico e
que faz sentido sem necessidade de suprir coisa alguma.  A estridência do grego tem sua origem –
repelimos – em um erro de leitura, facilmente explicável em uma escritura quase
exclusivamente de consoantes; o tradutor leu as consoantes como particípio
ativo, e logicamente se serviu do imperfeito ativo grego para traduzi-lo.  A possibilidade de confusão dos particípios
aramaicos foi confirmada pelos descobrimentos do deserto de Judá, a partir de
1947, onde encontramos ambos os particípios escritos com idêntica perfeição.

O costume
de Mc 15, 8

Forçados
pelo estranho grego de São Marcos e pela surpreendente alusão a uma anistia
anual, da qual não há notícia fora dos Evangelhos, recorremos ao substrato
aramaico, que nos deu este resultado: 
“E, subindo, a multidão começou a pedir como era de seu costume.”  O original semítico, portanto, não diz que
Pilatos, ou o procurador romano, tinha o costume de libertar um preso na
Páscoa, nem diz que a multidão costumava apresentar-se diante do pretório, para
reclamara este privilégio ao chegar tal data, mas simplesmente alude a que a
multidão tinha o costume de reunir-se diante do palácio-pretório e reclamar
algo.  Deste costume temos muitos
testemunhos nos escritos de Flávio Josefo. 
O texto original nos fala, portanto, de um fato isolado e perfeitamente
explicável ao marco da carreira política de Pilatos: tratava-se de uma anistia
concreta para conseguir o favor do povo em um momento difícil de sua
carreira.  Qual fosse a causa desta
tensão que pretendeu resolver mediante tal anistia, não o sabemos com certeza,
ainda que bem pudesse ser a morte de Sejano (ano 31 d.C.).  Sejano era o homem mais poderoso do Império
Romano depois de Tibério; acusado de conspiração foi esquartejado pelas turbas em Roma. 
Com sua morte, foram caindo também os que haviam sido
amigos do Ministro desaparecido.  Neste
contexto se explicaria muito bem que Pilatos, para se congraçar com os judeus e
não perder o cargo (pois era amigo de Sejano), tenha recorrido ao expediente de
libertar presos a pedido do povo.

Tenha-se em
conta que não são estas duas passagens de São Marcos as únicas em que uma
dificuldade geográfica ou histórica pode ser resolvida mediante a sólida
hipótese de que a língua original deste Evangelho não foi o grego, mas o
aramaico.  Semelhante aos dois textos
citados, e inclusive bem mais difíceis que estes, podemos apresentar uns vinte
a mais. E não esqueçamos que o Evangelho de São Marcos é o mais breve de todos,
pois consta apenas de 16 capítulos.

Conclusão

Ao nosso
entender, uma das causas pelas quais se questiona o valor histórico dos
Evangelhos é o fato de terem sido escritos para cristãos, por testemunhas que
não são neutras.  Todavia, ninguém
rechaçou o valor histórico dos dados biográficos de Sócrates transmitidos por
seus discípulos Xenofonte e Platão, nem se nega a realidade das façanhas de
César narradas por ele mesmo, ou seja, por testemunhas interessadas.  Mas na realidade o verdadeiro motivo de
que  se tenha introduzido a dúvida sobre
a fidelidade dos Evangelhos, é que se julga impossível e que afirmam: que Deus
se tenha feito homem.  Assim se
expressava D. F. Strauss, autor de uma famosa vida de Jesus:

“Não
consigo imaginar como a natureza divina e a natureza humana podiam ser partes
integrantes, diferentes e todavia unidas de uma pessoa histórica.  Aquilo que a razão concebe se converte em
medida do que possa acontecer na realidade. 
O que não entra dentro dessa medida, não existe ou é absurdo”.

Semelhante
atitude implica a negação da categoria da possibilidade, fechando a razão em sua
própria medida e impossibilitando-a de conhecer a realidade ou realizar um
verdadeiro estudo dos dados históricos. 
Seria necessário recordar o que dizia Hamlet a seu bom amigo Horácio:
“Existem mais coisas no céu e na terra, Horácio, que na tua filosofia”; isto é,
a realidade é maior do que a nossa percepção ou concepção da mesma.

A
investigação histórica, é verdade, não pode concluir coisa alguma sobre a
Divindade de Jesus, mas pode estudar as pegadas que um fato excepcional deixou
na história e reconhecer que sua explicação exaustiva não encontra outra
hipótese mais adequada que a oferecida pelas testemunhas do fato.  Neste sentido, a investigação histórica não
gera a fé, mas pode mostrar a racionalidade da mesma, respondendo às objeções
que a crítica moderna e racionalista construiu ao longo dos últimos
séculos.  E, isto, não o fazemos por
defender os direitos divinos de Jesus, mas os direitos do homem concreto.  Nós nos negamos a aceitar as falsidades que
certa exegese construiu como barreiras que impedem o homem de hoje de se
aproximar de Jesus e reconhecer o verdadeiro dom, a vida plena. Assim como São
Paulo discutia e debatia todos aqueles que se opunham ao Cristianismo,
considerando-os não inimigos de Deus, mas inimigos dos homens, pois pretendiam
impedir sua participação na plenitude da vida que é o Acontecimento Cristão,
assim também nós nos esforçamos por resolver as dificuldades ou objeções que
contra a fé da Igreja têm levantado certos críticos modernos em nome de uma
suposta exaltação e libertação do homem, que resultou ser a maior e mais
maldita escravidão.

A
racionalidade da fé é provada por nosso estudo dos Evangelhos, mas sobretudo é
confirmada pela resposta às exigências humanas por quem adere aos que
testemunham e vivem o Acontecimento Cristão. Só esta experiência explica a
rápida difusão do Cristianismo. 
Recorde-se que, muito poucos anos depois da morte e ressurreição de
Jesus, São Paulo vai a Damasco para encarcerar os judeus que haviam crido nele;
também muito rapidamente existem cristãos em Antioquia da Síria e, no começo da
década de 40, existia uma comunidade cristã em Roma (para fazer referência só
aos dados do NT).  Por outro lado, a
leitura dos escritos do NT, sobretudo pela organização formidável com que atua
e vive a Igreja.  Nestes escritos da
Igreja primitiva também apalpamos o calor com que os primeiros crentes em Jesus Cristo se
sentiam enriquecidos pela nova fé que lhes haviam trazido os Apóstolos, suas
testemunhas diretas.  Tais escritos falam
de um fato extraordinário que se apresenta como definitivo para as exigências e
expectativas do coração humano.
_________________________

Fontes

1 Eusébio
de Cesareia. HE, VII, 22, 7-10.

2 H.
Risenfeld, p. 20-22.

3 H.
Risenfeld, p. Os encontros do NT aos quais alude são: 1Cor 11,23-25; 15,3; Gal
1,12 etc.

4 Eusébio
de Cesareia, HE, III, 24-6;

5 H. S.
Reimarus.  A ambição de Jesus e seus
discípulos. Leiden 1970, 119.

6 C. Guignebert

7 Cf., por
exemplo, Hebreu, GenAp 2,17; 10,14; Aramaico: óstracon e contrato de
Murabba’at.

8 Flávio
Josefo, Bel 2,4 (sucessão de Arquelau no reino; para conseguir a simpatia do
povo); Bel 2, 175-176 (revolta por causa do uso que Pilatos fez do dinheiro do
templo); Ant 18,60 (mesmo episódio, contém esta frase: “começaram a gritar…
como costuma fazer a multidão”); Ant 20, 215 (substituição do procurador Albino
por Gesio Floro).

9 D. F.
Strauss.  A vida de Jesus ou o exame
crítico de sua história, Milão 1965, 628.

10 W.
Shakspeare, Hamlet.

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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