A cura espiritual

O bispo Teodoreto conta que a mãe dele, quando estava doente da vista, foi procurar um santo anacoreta, que morava nos arredores de Antioquia, e pediu a ele que a curasse. Era uma mulher ainda jovem e mundana. Antes de curar o corpo, porém, o santo anacoreta quis curar a sua alma. Então lhe falou com estas palavras:

– O que a senhora acha deste fato: um artista muito hábil pinta um retrato; chega um aprendiz e vai corrigindo a obra do mestre. Estica as sobrancelhas, muda a cor da pele, maquia o rosto de branco e vermelho. O que a senhora pensa: não teria razão o autor do retrato de ficar zangado com o presunçoso ignorante? Minha mãe, continuava o bispo Teodoreto, entendeu a lição e daquele momento em diante deixou todo o luxo da roupa, dos enfeites e da maquiagem.

Com aquelas simples palavras e sem brigar o santo da história quis curar não somente o corpo da mulher, mas também a sua maneira de viver. Quis libertá-la das excessivas preocupações com a sua aparência para ajudá-la a buscar um sentido mais profundo e grande da sua vida.

No diálogo com Nicodemos, que encontramos no evangelho deste domingo, Jesus também quis ajudar aquele homem, que o visitava na boca da noite, a sair da escuridão para se deixar iluminar pela luz plena. O evangelista João aproveita o diálogo de Jesus com Nicodemos para nos transmitir grandes ensinamentos. Jesus lhe fala de um novo nascimento, o da vida eterna e da missão do próprio Filho que não veio para condenar, mas para salvar a humanidade.

A linguagem não é simples, podemos dizer que é radical, sem meias medidas. Se a luz veio ao mundo, as trevas devem desaparecer. Assim a vida eterna consiste em acreditar no Filho de Deus. Quem acreditar participará dessa vida; quem não acreditar por si mesmo vai se excluindo desta vida. Podemos nos perguntar, por que tanta radicalidade? O evangelista quer nos ajudar a tomar uma decisão, a não ficar eternamente na dúvida ou na falta de fé. Nicodemos era uma autoridade dos judeus, portanto pode representar todo o povo convidado a acolher o próprio Jesus. No entanto Nicodemos pode representar, também, todas as pessoas de boa vontade que continuam buscando algo mais, porque não se satisfazem com simples costumes tradicionais, com as opiniões da moda ou raciocínios alheios. É por isso que Jesus, um pouco antes da página do evangelho deste domingo, diz a Nicodemos que é preciso “renascer”.

Nós todos recebemos a vida corporal, uma vez por todas, como presente de Deus e dos nossos pais, mas a vida, digamos, espiritual, nós todos devemos buscar junto com as respostas às perguntas decisivas da nossa existência. No parto físico, foi a nossa mãe quem sofreu; no parto espiritual, cada um de nós sofre a sua parte na busca de esclarecimento e, sobretudo, na urgência de tomar alguma decisão que possa nortear e motivar o seu viver.

Afinal, todos somos obrigados a realizar contínuos julgamentos: o que vale e o que não vale, o que gera vida e o que gera morte para mim e para os outros. Também quem não se preocupa, de fato, com grandes motivações em sua vida, sempre pode decidir entre o que é mais vantajoso e cômodo para si e o que, pensa, possa prejudicá-lo e incomodá-lo.

Nas palavras de Jesus a Nicodemos renascer é encontrar a luz, um caminho claro pelo qual andar; um caminho certo que é ele mesmo: o Senhor. De certa forma, a cada decisão que nós tomamos estamos “renascendo”. Se a decisão é para a luz, a verdade, o bem, nós renascemos também para o bem,  tornamo-nos criaturas renovadas, porque transformadas pelo amor. Ao contrário, escolhendo as obras do mal, a mentira e a injustiça, também somos transformados, mas em criaturas fechadas no egoísmo, no ódio, na vingança, na morte; pessoas que se autoexcluem de um vida nova, na qual não acreditam.

A vaidade por exemplo, da qual ninguém escapa, seja homem ou mulher, aparentemente é coisa pouca, no entanto pode nos conduzir a uma exagerada preocupação com as nossas aparências. Daí a competição para ficarmos cada vez mais bonitos; com isso podemos chegar a julgar também os outros pela exterioridade. Se o nosso grande ídolo é a nossa forma física, o amor fraterno, a solidariedade e, mais ainda, a atenção aos desfigurados da vida, passam em segundo plano ou não têm mais valor nenhum. Jesus, que curou tantos doentes, quis, porém, oferecer a todos a salvação, isto é, uma vida nova, um renascer. A nossa vida física passa, mas quem crê nele entra no caminho da vida eterna; não medidos pelas coisas materiais, mas pelas “obras da luz”, a prática da justiça e do amor. Todos nós precisamos sempre desta cura espiritual; está em jogo a vida eterna.

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Dom Pedro José Conti
Bispo de Macapá (AP)

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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